No compasso sistólico e diastólico do passo ou o infindável caminho da poesia de Trajanno Nankhova Trajanno
Por Ricardo Riso
Após o doloroso processo de lutas anticoloniais e a constituição dos estados independentes africanos durante o século XX, acompanha-se com imenso interesse a supressão das carências e as tentativas de desenvolvimento com os parcos recursos financeiros dessas nações em meio a políticas externas – muitas vezes com apoio interno – nem sempre favoráveis ao bem de seus povos. O caso de Angola não foi diferente, principalmente no pós-independência, em razão da longa guerra civil que desestabilizou o país até a reconstrução proporcionada pelo acordo de paz em 2002.
Nesse conturbado cenário angolano a literatura e seus agentes continuaram a desenvolver-se, configurando, já no primeiro decênio deste século, uma elogiável consolidação e amadurecimento de nomes revelados a partir dos anos 1980. Trata-se de uma geração de escritores nascida no período de 1955-1965 que ficou conhecida como a geração das incertezas, como assim define o crítico literário e também poeta Luis Kandjimbo, em virtude de “na obra de todos eles, os temas mencionados emergem de uma profunda experiência geracional avassaladora e catastrófica, em que pesa a revolução, a guerra, a intolerância política” (SECCO, 2003, p. 189).
Nesse período amplia-se a heterogeneidade da poesia angolana, novas estéticas são apresentadas, experiências formais tornam-se constantes e reformulações temáticas passam a ser frequentes, aprofundando o caminho iniciado por nomes como Arlindo Barbeitos, David Mestre e Ruy Duarte de Carvalho na década de 1970 e deixando para o registro da História o período de engajamento político explícito da literatura angolana. Para Carmen Lucia Tindó Secco, a nova geração apresenta um
“novo lirismo, reagindo a esse desencanto dominante no contexto social do país, abandona a utopia do nós coletivo e o engajamento revolucionário da poesia de combate. Funda uma poesis que dá vazão ao amor e às emoções individuais, assumindo um viés existencial e uma dicção universalista. Sob o signo de Eros, os poetas buscam exorcizar a morte e a dor. Operando uma revolução no âmago da linguagem, levam às últimas conseqüências a metaconsciência poética já praticada, desde os anos 70, por alguns dos poetas de Angola. (...) Ao suspender a prática cantalutista, lança na consciência dos leitores imagens do mundo mais humanas do que as tecidas pelas ideologias, desencadeando o desejo por uma vida mais autêntica e livre, pela qual vale a pena lutar” (SECCO, 2003, p. 189).
Depara-se hoje com uma produção comprometida com a depuração da linguagem poética, demonstrando um nível estético maduro e louvável, diversificado e pungente, configurando seus agentes em verdadeiros artífices da poesia em língua portuguesa. São os casos de José Luis Mendonça, João Maimona, João Tala e Trajanno Nankhova Trajanno. Este, talvez um caso singular na trajetória literária angolana devido às especificidades de sua poeisis, constatação atingida após a leitura do surpreendente Caminhos da Mente (Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2005).
Jordão Augusto Trajanno nasceu em Luanda a 12 de Dezembro de 1958 e utiliza o nome literário Trajanno Nankhova Trajanno. Sua obra divide-se em poesia e textos para o teatro. Caminhos da Mente é o seu quinto livro de poemas.
Caminhos da Mente reúne um conjunto de poemas de extrema complexidade, intenso estranhamento e plena fascinação proporcionada ao leitor. Dividido rigorosamente em dez partes que são intituladas “Incidências” pelo poeta, cada uma com sete poemas acrescidos de dez “pré-poemas”, assim denominados por Ana de Sá em prefácio do livro. Cada “Incidência” apresenta títulos sugestivos e intrigantes a chamar atenção do leitor, pois “uma nova visão de mundo está em curso”, assim afirma o sujeito lírico como se quisesse alertar o leitor. Dessa maneira, são apresentados títulos que desestabilizam as retinas, tais como “Asterismo Sinfónico do Silêncio”, “Luz Algébrica da Alva”, “Solenidade Telúrica da Flor” e “Composto Sistólico e Diastólico do Passo”. Nomes que mexem com os sentidos, demonstram o intenso labor do poeta em busca da lapidação da palavra e o pleno compromisso com o seu ofício, a tessitura da poesia:
em pintura desnuda e feminina a pastar
de ternura em ternura
a cidade pousa nua de verso em verso
a mão presente no hálito cósmico da renovação do reino
atitude mental das chamas e dos lábios em chamas
nos escaninhos dos oceanos continuo a compor
com traço e suor do rosto a aura dos espelhos” (p. 94).
Nessas “incidências”, as temáticas passam por uma espiritualidade peculiar, analogias a artes como a pintura e a música, o ar – elemento da natureza – encontra-se em diversos momentos em signos cósmicos, das aves e do voo, assim como a constante presença do universo onírico, a realização do sonho como forma de anunciar um novo momento para Angola, o país do sujeito lírico, após o acordo de paz: “nos eternos caminhos da mente/ minha pátria é um esboço bucólico aberto ao cosmos” (p. 46). Agora, o sujeito lírico se quer livre para sonhar, recriar a união de seus pares, reconfigurar os sentidos, para isso a poesia será a matriz e o motriz para desenlaçar o verbo e trazer uma “nova aurora semântica” (p. 28), ampliando e reformulando os sentidos das palavras.
Para o novo tempo da pátria anunciado pelo sujeito lírico, necessária a metaforização do discurso “nas palavras marginais que é preciso refazer”, por isso metáforas díspares e dissonantes e o uso do imperativo exigem sentidos aguçados:
no côncavo do sino uma melodia e é preciso escutar
no luar da adolescência
uma virgem utopia inquieta que é preciso seduzir
na sombra de todo cálice um encanto estranho encanto
e é preciso decantar
uma estátua de silêncio audível na ausência das vozes
que é preciso perceber (p. 26)
O sujeito lírico na maior parte dos poemas apresenta-se na primeira pessoa do singular, percebe-se também a utilização do verso livre, das rimas internas e da ausência de pontuação, contribuindo para a desestabilização da fácil compreensão diante de inusitadas imagens que aliam música, sonho e aves; imagens possíveis pelo vasto universo do verbo poético, elaborador de instrumentos para a sinfonia do silêncio:
persegue-me esdrúxula partitura de um sonho
dédalo que se encanta e desencanta
a imagem de um bolo de aniversário infantil me afoita
hei-de pedir ao anunciante das chuvas
uma guitarra-eólia de nove cordas entregue às aves
tenho que governar o caminho de meus sons após as aves (...)
- hei-de caminhar! tornar-me verdadeira mente
parecido a mim
pelos espaços vazios sorrir somente da prédica proferida
pelas aves (p. 25)
No ilimitado “horizonte verbal” amplificado pela mão-asa do sujeito lírico que propõe o retorno à infância em “Voz Alvacenta do Gesto” (Segunda Incidência), o aprendizado para um novo mundo reformulado na poesia: “permito-me chegar bem à beira da infância/ e concebo um exército a sorrir/ aprendo com o mar e o rio a distinguir a voz/ da foz em encontro com o verso/ a irrigar o horto e o paraíso a um passo da morte e do siso” (p. 31).
A “transcendência humana dos sons (...) em instante onírico” (p. 33) transfigurará a nova pátria, pois “amanhã o movimento da alva será outro”, confirmará a mudança e os angolanos unidos em um só ideal: “algures alguém pensa em mim neste instante/ os passos rejeitam a solidão” (p. 33). Percebemos a projeção no futuro, de uma nova era, de um tom épico. Ana de Sá discorre muito bem acerca do caráter épico dos poemas: “Os verbos conjugados preferencialmente no futuro conferem um valor projectivo à narração de uma Pátria e dos seus integrantes, fundada num passado e, em especial, num desejo de futuro em paz” (p. 16).
O sujeito lírico anseia um novo cotidiano, contudo, as décadas de dor e sofrimento fratricida deixam marcas indeléveis na memória. Apesar da esperança e da constituição de “formas atrevidas formas irregulares” para cicatrizar as feridas do outrora, o leitor depara-se com a insegurança na repetição da condicional “talvez”, assim como a apreensão de que os erros do passado sejam retomados e a incerteza com o porvir são materializados na poesia: “o dia evoca formas atrevidas formas irregulares/ ao amanhecer talvez ao amanhecer bocas estilizadas cantem/ ao abrigo do sorriso/ talvez ao amanhecer sintetizemos a alva/ na mão a esperança/ sobre a dança é uma canoa ximbicada pelo tempo/ - talvez ao amanhecer” (p. 35).
Entretanto, a utopia encontra seu espaço na poesia, “a brisa reinventa estações (...)/ os rios continuam num caminho igual e renovado/ as asas novamente acreditam na força humana do mel” (p. 36) e “agora que floresce o sol na palma da mão de todas as mãos/ (...) trago comigo para este novo abrigo células de um lúcido/ paraíso” (p. 44), ideias conjuntas para uma pátria preparando-se para reconstrução, “as minhas e as suas todas as nossas palavras numa única/ marcha de cruz” (p. 45). Ou seja, a voz individual do sujeito lírico conotada à voz coletiva dos angolanos, “vozes anônimas falam na minha voz” (p. 37), ou pelo menos aspira, “vozes anônimas ‘talvez não tanto’ falam na minha voz” (p. 37).
A incerteza com o futuro gera inquietação. O sujeito lírico recorrerá às aves e ao desejo de voar. Como voar não pertence à condição física humana, cabe o mergulho ao âmago do ser para tentar realizar o impossível embarcando em “outra nave”, a nave da palavra poética, por fim e ao cabo, libertadora, e assim superar sua angústia na gradação do poema “Luz Algébrica da Alva – 2ª indução”:
confrange-me não poder deslindar a prece das aves
enquanto voam cada rosa é uma fonte de brisa
em cada brisa há um candelabro há um amplexo
um baile de vozes um cálice volúvel
um olhar esdrúxulo
uma atitude de exílio
na certeza libida da incerteza libida (...)
sem destino outra viagem outra paisagem em outra nave
sigo ansioso o destino das aves” (p. 73).
Sob o signo da emoção e com a preocupação ininterrupta de renovar a linguagem, a poesia de Trajanno Nankhova Trajanno demonstra um cariz de extremo intimismo, realizando a utopia na tessitura poética, transformando “palavras amargas/ em devaneios que se adocicam/ na estranha relação entre a chuva e o chão” (p. 91). O desassossego do sujeito lírico percorre os diversos caminhos da metapoética que levam ao interior do ser:
sobre útil linha longitudinal segue a imaginação
da palma da mão
reconheço a luz reconheço o olor recomeço o passo
no altar da moda modelar
outra moda procuro talhar esta mágica sem par (...)
que abraça a poesia vê-se a cidade a caminhar na gramática
sensual dos sons a irrigar o cravo lilás do ventre
onde a saudade amou a solidão por plácida compreensão à flor
sinto-me distante da primeira meta
sinto-me no lugar bendito onde me reconheço
abre-se inesperada paisagem da mente
percebo estar a usar o mesmo caminho que me leva a mim (p. 96).
A diferenciada poesia deste sujeito lírico configura-se em uma intensa viagem intimista que busca associar a sua inquietação com a do país, ambos a procura do melhor caminho para o novo tempo de paz: “todos os meus caminhos seguem o desvelo diurno do caminho/ todos os meus caminhos têm fim/ em cada sombra perfume e luz em cada asa tétrica/ todos os meus caminhos sonham tornarem-se um caminho” (p. 68).
Com a colaboração de imagens insólitas, o sujeito lírico percorre o universo onírico, esparge o simbolismo voraz de sua poesia em metáforas impactantes para reencontrar o caminho do país na harmonia entre os homens: “o instante onírico de pátria é um caminho minúsculo/ por percorrer na insónia/ é uma mansidão de ideias a navegar na flor humana da voz/ a primeira água matinal destes olhos/ é fluvial rio materno de um País/ reencontrado no compasso sistólico e diástólico do passo” (p. 118).
Por fim, constatamos após a leitura de Caminhos da Mente que a arrebatadora e singular poesia de Trajanno Nankhova Trajanno ainda é prenhe para novas imagens, reformulações estético-formais, renovações semânticas, sobretudo pela excelência alcançada a poesia de Trajanno apresenta novos paradigmas à literatura angolana, mostrando o quanto ainda é fecundo o caminho das letras e o quanto pode ser infinito o caminho da paz.
em algum instante lá mais adiante hei-de embalar
meu presente no auxílio dos sons na formação da palavra
na angústia da mão que estrutura o incontido
no sonho
o sino devolve o signo e a sina axiluanda à volta da lua
insistente mente de mel quase como herdeiro
de herói
uma mão acena outra mão
um olhar afaga outro olhar um hino mora no olhar
catálogo exposto de pauta aberta em oferenda à kianda
pranto e fruta fruta e encanto pela autópsia do pranto
aos pés do oceano no calor das cores
na argamassa da promessa e na sublimidade da colheita
em algum instante lá mais adiante verei o sol. (p. 88)
BIBLIOGRAFIA:
KANDJIMBO, Luís. Breve Panorâmica das Recentes Tendências da Poesia Angolana. In: Austral, Revista de Bordo da TAAG, nº 22, 1997, p. 27. Apud: SECCO, Carmen Lucia Tindó R. A haste e a ostra: uma poética da catástrofe e do sonho. In: A magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as Literaturas de Angola e Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph, 2003. p. 188-197.
SECCO, Carmen Lucia Tindó R. A haste e a ostra: uma poética da catástrofe e do sonho. In: A magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as Literaturas de Angola e Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph, 2003. p. 188-197.
TRAJANNO, Trajanno Nankhova. Caminhos da Mente. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2005.