Uma gentil contribuição de José Luis Hopffer C. Almada para este blog. Neste texto, o poeta e crítico literário cabo-verdiano, por meio do pseudônimo Dionísio de Deus Y Fonteana, celebra a memória de António Pedro, que para Manuel Ferreira em Aventura Crioula, "nos parece ter sido António Pedro um dos que teria dado um contributo para a mudança literária em Cabo Verde. Não será despropósito nenhum ligar o seu nome à fase dos primeiros sintomas do modernismo literário cabo-verdiano (...)". (FERRREIRA, 1985, p. 292-293).
Abraços,
Ricardo Riso
ANTÓNIO PEDRO:
A SAGA ISLENHA DE UM POETA DE CABOVERDIANIDADE BISSEXTA
VISTA POR DIONÍSIO DE DEUS Y FONTEANA
Dezembro de 1909
Tempos de infância
António Pedro nasceu no plateau da cidade da Praia.
Se não no real, pelo menos no simbólico.
Na casa-grande plantada sobre a colina do Laranjo e a ribeira que lhe perfazia o verde e a fortuna.
Morgadio e arquitectura de Trás-os-Montes (o metropolitano, não o tarrafalense!) viram os seus olhos semicerrarem-se face ao intenso brilho do sol caboverdiano.
A 9 deDezembro de 1909, como sagitário.
Ó criatura de tantas promessas por cumprir!
Por ter começado por ouvir um patois anglolusodjarfogobadio, o seu signo iluminou-se, desde sempre, de uma aura de universalidade sem céus nem raízes aparentes. A tentação da total transgressão habitou-lhe então o coração, ainda infante, ao mesmo tempo que uma insondável e sempre súbita queda para as raízes pétreas. O signo de sagitário era nele premonição de um espírito em constante deambular, entre o vale do Laranjo e o mundo, entre o primeiro patois escutado com o borbulhar do leite materno e a babel da modernidade, entre Santiago e o Império, entre a purgueira e o pinheiro.
Cresceu no plateau. Se não no real, pelo menos no simbólico.
Na sociedade colonial ensolarada de ritmo e de bulício.
Na sociedade colonial enclausurada no recato e na solidão da cidade-repartição.
Provincianamente alegre e atónito face às romarias da justaposição e da interpenetração entre a lusitanidade e a africanidade, e os múltiplos coitos que paulatinamente geraram a crioulidade, e os muitos incestos que engendraram os filhos híbridos das ilhas e as suas feições afro-latinas, sempre autênticas na plena assunção da sua bastardia biológica e cultural, a qual, aliás, ficaria depois gravada no célebre axioma “Cabo Verde não é nem Europa, nem África, Cabo Verde é Cabo Verde”.
(“Ou tautologia, segundo outros pontos de vista mais cáusticos- interfere um aprendiz de intelectual recém-diplomado por uma universidade obviamente estrangeira – como o do vate da cidade que ousou escrever uma série de poemas subversivos, como “Fome” ou “Eis-me aqui, África”. Curiosamente o mais subversivo desses poemas, intitulado “Quando a vida nascer” foi publicado, pela primeira vez, no Boletim Cabo Verde, importantíssima revista cultural editada na Praia religiosamente em todos os meses do calendário entre os anos de 1949 e 1964. Quiçá tenha sido o Boletim Cabo Verde a mais importante revista cultural caboverdiana do período colonial, se levarmos em conta a riqueza e a variedade do seu conteúdo ensaístico e literário e a diversidade estética e geracional dos que nela colaboraram, mas também caracterizada pela sua sujeição à tutela e à censura directas do governo colonial enquanto propriedade da administração da província e porta-voz da ideologia colonial então dominante. Tanto mais que as suas primeiras páginas eram reservadas aos discursos e às obras do governador e às chamadas políticas coloniais de fomento, para além da ininterrupta idolatria do chefe máximo do Estado Novo colonial-fascista e do culto de uma certa histeria patriótico-imperial, como aquela que se verificou aquando da invasão do chamado Estado português da Índia (formado por Goa, Damão e Diu) pela União Indiana de Nehru. Nessa óptica, funcionava como uma espécie de jornal oficioso do Governo da província/colónia. Deve ter sido por esta razão que o inrevelado autor do libelo acusatório anti-claridoso Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana (consabidamente publicado sob um nome emprestado a um avassalado versejador desses tempos de bloqueio e, em tempos, renomado autor de alguns dos poemas mais emblemáticos da nova largada político-cultural), tenha preferido manter na mais estrita clandestinidade o excelente ensaio-panfleto político de denúncia total do sistema colonial-racista vigente em Cabo Verde e de desmascaramento das políticas de reforma colonial empreendidas por Adriano Moreira, assinando-o com o pseudónimo castiçamente badio A. Punói”.
“ Não obstante os constrangimentos acima referidos, o Boletim Cabo Verde marcou toda uma época. Basta dizer que a maior parte da poesia de Jorge Barbosa, incluindo a de teor mais contestatário (como o paradigmático “Panfletário”), mas excluindo outros de quase ruptura política (como “Meio-Milénio”, “Nau Negreira” ou “Memorial de São Tomé” e outros integrantes de livros que tentou dar à estampa durante a primavera marcelista), e quase toda a obra cronística e ficcional de Maria Helena Spencer foram dadas a conhecer no Boletim Cabo Verde. Oficioso em parte, sim senhor!, mas nada que se comparasse com o seu sucessor, o famigerado semanário Arquipélago, de conotação abertamente colonial-fascista e implacável defensor do status quo, numa época em que já proliferavam os movimentos de libertação nacional e eram mais do que evidentes os sinais da queda próxima do império colonial português”-esclarece bem-humorado o poeta existencialista da cidade, também ele estreante no Boletim Cabo Verde, no qual, aliás, comprovou na sua própria pele a veracidade do axioma “pior a emenda que o soneto”, quando um poema seu dado à estampa no mesmo Boletim Cabo Verde, foi sujeito ao crivo estético do juiz da comarca (anote-se em roda-pé, que nas horas vagas esse austero magistrado se ocupava com as letras, deste modo pretendendo participar na vida cultural da pequena cidade colonial e aí deixar a sua inconfundível marca, outorgando-se o papel de mentor e mestre das novas gerações, mesmo se à revelia das mesmas. Até que o conseguiu ao se meter com a promessa de poeta que era então um dos mais importantes literatos da actualidade” ”-riu-se o poeta predilecto da cidade). Sublinhe-se que o Machado (assim se chamava o magistrado inquisidor da jovem poesia islenha que, segundo sei, nada tem a ver em termos de laços de parentesco com o famigerado sargento Maschado, sim, aquele em cuja boca mijou Nhanha Bonbolon, nominho de Ana da Veiga, a líder da revolta de Ribeirão Manuel), em vez de optar pela censura pura, ainda que fundada em critérios alegadamente estéticos, de um poeta neófito (“como tantos outros jovens principiantes nas lides literárias que, na altura, tentavam dar nas vistas”-faz questão de sublinhar o poeta galardoado que era o principiante na poesia da altura) preferiu re-escrever os poemas do mesmo principiante e mostrar em praça pública (isto é, nas páginas do Boletim Cabo Verde) como é que o poema do estreante em literatura deveria ter sido escrito).
Acrescente-se ainda um pequeno parêntesis aposto não se sabe se por um defensor confesso - não do axioma literário acima referido, mas do axioma identitário também anteriormente referenciado-, ou se por um desses críticos mais cáusticos da mesma expressão tautológica (“não sendo nem cabo, nem verde (pelo menos na maior parte do ano no que se refere aos terrenos de sequeiro nas chamadas ilhas agrícolas, para não falar de algumas ilhas francamente áridas e escassamente dotadas de ridículas manchas de regadio ou de bosquejos de florestas), optou Gabriel Mariano por grafar Caboverde (numa única palavra e sem hífen), a um tempo continente e arquipélago culturais, pondo assim termo a eventuais paradoxos identitários e sentimentos de orfandade continental, desde sempre muito comuns entre os caboverdianos).
(“Neste caso mais propensos à busca do pai, ou do seu rosto abstracto e severo, do que da mãe (ou do afago afectuoso do seu ventre irrenunciável), por razões aliás mais do que compreensíveis, como seja a herança de bens simbólicos de grande relevância, como os apelidos que realmente contam porque se perpetuam nos nomes dos filhos machos e nos dos seus descendentes varões, e de parte da riqueza e das vivências acumuladas como património material e imaterial”-acrescenta o poeta predilecto da cidade, aliás, de tez branca, cor que lhe foi legada pelo pais, luso-descendentes, se bem que caboverdianos de gema).
Depois, criança ainda, alheio a todas as conjecturas existenciais, ignorante de todas as conjunturas sociais e das respectivas vestes coloniais, mas habitado pelo wanderlust que lhe foi precocemente inoculado pelo signo com que nasceu, António Pedro saiu pelo mundo.
1929-1938
Tempos de regresso
Tempo de saudade.
Saudade ou sodádi? Mas existirão essenciais diferenças entre as duas curiosas melancolias em face da ausência e da perda da árvore da infância?
Chamamento da infância ou da paternidade?
Talvez da maternidade?
Talvez de um qualquer Pik’ lion, ainda desconhecido?
Certamente do Laranjo.
António Pedro regressa ao plateau.
E ainda do mar espanta-se: “Bé, o pó da ventania sufoca! /...lá na baía ou doca/…parece melhor/ embora fosse careca/a terra seca e adormentasse já» (novo parêntesis desta vez aposto por um indefectível defensor do passado verdejante da cidade da Praia (aliás, profusamente atestado nos coqueirais da sua orla marítima, na floresta da Achadinha, nos mangais do Taiti, nas hortas do Palmarejo), para além de irrepreensível adversário das teses propugnadoras da muito propalada inabitabilidade passada da cidade capital, alegadamente devido à natureza supostamente pantanosa dos vales que a circundavam, e, por isso, muito propiciadoras da propagação do paludismo, da cólera e de outras doenças infecciosas, particularmente mortíferas para os europeus recém-arribados: presume-se, por isso, que Março foi o mês da chegada de António Pedro à sua cidade natal, dada a ventania que então por aí grassava. Ventania essa, que, todavia, não pode ser confundida com a bruma seca dos dias de hoje, bruma seca essa recentemente importada de outras paragens sahelianas, ou, dizem as más línguas, trazida por aqueles que, há poucas décadas arribados à ilha maior, não prescindem da regularidade do seu pé de vento pois que se maravilham com um fenómeno que consideram integrante da sua personalidade e da sua identidade colectivas e, por isso, muito se vêm extasiando em dançar ao vento…).
Envolto pela poeira, António Pedro atravessou o cais (“sim! O cais de São Januário! Aquele que as bestas obtusas da Câmara Municipal mandaram demolir para acharem um traçado mais consentâneo e mais barato para a nova marginal”-Exasperou-se o poeta-jurista da cidade, conhecido defensor dos direitos humanos, amante de jazz e de wisky velho, e autor do primeiro manifesto que questionou as políticas culturais prosseguidas pelo regime de partido único, então recém-instituído. Entretanto, enquanto os ânimos se exaltavam à volta do martírio a que a cidade vem sendo sujeita por diferentes gerações de políticos e de técnicos, todos eles detentores de muito pouco afecto e de escassíssima empatia pela cidade, com a cumplicidade ou, pelo menos, com a silenciosa indiferença da população, martírio esse profusamente ilustrado na cada vez maior descaracterização da cidade e no crescente e cada vez mais indomável caos urbanístico que nela reina, António Pedro), lançou um olhar curioso e alongado pelos botes varados ao longo da Praia Grande de Chã de Areia e pela vizinhança emaranhada de coqueirais (sempre exóticos aos olhos de quem esteve, durante anos a fio, longe dos trópicos) que se estendia pelo Taiti e pela Várzea da Companhia, passou pelos antiquíssimos edifícios administrativos e pelos armazéns das alfândegas, subiu a rampa de São Januário, atravessou o coração da cidade alta e foi à busca do mistério dos rochedos de cá, encastelados nas penedias do cruzeiro, nas encostas do hospital provincial e do edifício da fazenda, ou refastelados sobre o vale do Laranjo e de outras ribeiras da freguesia de Nossa Senhora da Graça.
Adolescente luso, jovem luso-caboverdiano (“isso não, a expressão ainda não existia, nós os islenhos éramos todos portugueses e caboverdianos ou, melhor, portugueses de Cabo Verde! Também não existia ainda a possibilidade da dupla nacionalidade. Afinal éramos uma simples colónia ultramarina, ademais uma insignificante, mísera e famélica terra de Portugal de aquém e além mar, em consequência não dispúnhamos de nacionalidade própria. Por isso, maravilha-se agora o Orlando Pereira: nasionalidadi dja nu ten dja! Melhor seria dizer branco português de Cabo Verde crescido na metrópole?”-interroga-se o poeta predilecto da cidade) ou teen-ager santiaguense (“curioso”, acrescenta o vate mais celebrizado da cidade, “cai bem o termo teen-ager devido às ascendências inglesas do gajo, mesmo se, por alturas do seu regresso à sua cidade natal, ele já não fosse propriamente um teen-ager, mas um jovem adulto!”)?
Dicotomia cultural, estalagmites de lusitanidade ou penedos de caboverdianidade no imenso oceano das solicitações culturalistas cosmopolitas e das auto-sugestões identitárias, confluência dos afluentes das origens todas de tantas heranças nas águas da universalidade cuja foz seria a cidade da Praia, melancólica defronte do seu rio imaginário?
Enfim, português, português ultramarino, luso-africano, branco afro-lusitano, europeu meso-atlântico, minhoto retornado ou badio branco irreversivelmente postado no miradouro da sempre atraente e inapagável civilização europeia?
“Irreverente modernista era o que ele era, o António Pedro, de tantas e múltiplas ascendências, de tantas e diversas andanças!”-sufragou, com voz cristalina, se bem que póstuma, o único e convicto companheiro das lides plásticas e das tertúlias que encontrou no provincianismo beato e caseiro da sua cidade natal.
E continuava o caldeamento cultural e todos, ainda que a contragosto, imaginavam-se nadando no caldo pagão da miscigenação.
(“Embora a contragosto dos cronistas oficiosos e dos pensadores mais eurocêntricos e concêntricos na preservação, a todo o custo, da chamada missão civilizadora de Portugal em África e de que Cabo Verde seria, a um tempo, a ilustração mais eloquente e um agente privilegiado, e, por isso, mais renitentes à aceitação dos benefícios da mestiçagem cultural e dos efeitos positivos resultantes do diálogo civilizacional e da interpenetração de raças e culturas, de que Cabo Verde é uma pequena, mas bela ilustração”-iludia-se, anos mais tarde, um passante da cidade a propósito do caldeirão de ensaio da mestiçagem que, segundo esse escritor metropolitano tornado caboverdiano adoptivo, seguramente no plano da maioritária escrita ficcional, e adepto convicto e divulgador prolífero das teses então em voga nos círculos intelectuais dominantes no arquipélago, terá sido e continuaria a ser Cabo Verde até à completa crioulização da ilha de Santiago mediante a extirpação dos resquícios de áfrica (como a tabanca, o batuque, a magia negra, a renitência messiânica dos rabelados) que, lamentava-se em desencontrados sentimentos de desprezo, respeito e despeito, ainda sobreviviam nessa ilha meridional de Cabo Verde e teimavam em marcam o rosto mais visível da sua cultura ou, melhor, a face mais típica da ilha sociológica, outra, que é o seu hinterland, a qual se encontraria num estádio de evolução cultural (isto é, de assimilação à cultura europeia dominante) muito desconforme do estádio de aceitação (o mais avançado, como é sabido, no processo de aculturação à civilização europeia) a que chegaram as nossas restantes ilhas, com destaque para as de barlavento(e aqui entravam as muitas citações dos mestres claridosos, com excepção de Jorge Barbosa que, sendo natural e profundo conhecedor da ilha de Santiago, não alinhava nestes modos de ostracização e de negro-africanização das suas expressões culturais afro-crioulas mais distintas).
Com a topografia da sua pequena cidade natal soterrada na mais recôndita loca da memória, António Pedro vivia com íntima ansiedade o seu regresso, que sabia ser fugaz, à terra natal e o reencontro com a sua vida quotidiana, com as suas pulsões, com as suas expressões idiossincráticas, com as suas manifestações culturais mais típicas. E era firme a sua convicção, funda a sua intenção e inabalável a sua vontade de penetrar-lhes o âmago, de dissecar-lhes o espírito, de entender-lhes o sentido, de neles se envolver para melhor se envolver com as gentes das ilhas, seguramente futuras personagens que teriam que desfilar e transfigurar-se na sua escrita, na sua pintura, no seu teatro, nas suas mãos inventivas. Imensa era a força que o propulsava na contínua superação das barreiras que se iam erigindo na atmosfera elitista e centrípeta que então dominava e sufocava a cidade-repartição, em cujas verdejantes imediações tinha nascido e passado a primeira infância. Tantas as suspeições inoculadas pelos preconceitos eurocêntricos dominantes, tantas as barreiras engendradas pelo desconhecimento do meio e por tantos anos de ausência!
Aproximou-se, pois, da ilha e dos seus moradores, a mente inundada de dúvidas, embora com o firme propósito de não se diluir nos usos e costumes das populações das ilhas, mesmo daquelas dos estratos sociais mais ilustrados nas coisas da cultura moderna ou das fontes clássicas da civilização europeia. Convinha-lhe preservar a sua actual personalidade moldada em tempos e espaços vários da Europa, nos quais, aliás, se tinha sentido completamente em casa, depois de um breve período de sensação de vazio e espanto adveniente da falta do sol e da poeira que agora o circundam e quase o sufocam. O papel que se reservara era o de tornar-se cúmplice das gentes das ilhas. Um cúmplice obviamente aberto a todas as dimensões do seu ser ou, pelo menos, àquelas dimensões que lograsse perscrutar. Com o distanciamento necessário à sua melhor compreensão, com o distanciamento que, de todo o modo, lhe foi outorgado pela longa ausência e, para sermos claros, com o distanciamento que se esperaria de um branco (algo mestiçado, embora), descendente de famílias possidentes e que, embora ainda moço, se foi dotando de invulgares conhecimentos do mundo e das suas mais recentes revoluções estéticas, mormente nos domínios das artes plásticas, literárias e dramatúrgicas modernas, ainda quase inteiramente desconhecidas nessas ilhas abandonadas. Pretendia, pois, envolver-se com a ambiência parda e a atmosfera luminescente que dele se aproximavam pachorrentamente e transportar a ilha e a cidade, e com elas as suas gentes, e os seus rostos, e as suas almas, para as insondáveis dimensões das saudades futuras que se haveriam de alimentar das imagens que agora se petrificavam na arte que, ainda tímida, se escondia na sua retina.
E, sôfrego, lançou-se todo e inteiro às novas sensações.
Sem falsos temores, sem fingimentos, sem ressentimentos, sem pruridos, sem outras congeminações que não as de traduzir em arte o que os olhos viam, o corpo sentia, a mente dissecava, a alma aplaudia, rejeitava ou condenava à indiferença de coisa outra, dos outros, sem outro vínculo com ele, se não o de apresentar-se como matéria de reflexão artística.
No Diário: Vi um batuque/ baque bacanal/-pobres selvagens/e a morna/ morna/bole mole/ já velha …”. Ironia versilibrista. Modernismo jorrando, lívido, estrangeirado e cara-pálido, todavia irreverente e livre, liberto das babas do ultra-romantismo e da grandiloquência camoniana estranhamente acasalados nas hespérides (essas perdidas ilhas arsinárias!) com os restos do fim do mundo!
Ó desenvolvimento separado na separata que é o puro sonho ou pesadelo automático!
Entrementes, escrevia um nativista: “o badio porque o mais africano e negro dos caboverdianos é o culturalmente mais atrasado e, obviamente, o menos civilizado de todos eles”. Curiosamente, esse nativista tinha-se envolvido numa das mais importantes polémicas estéticas que tiveram lugar em Cabo Verde, quando nos inícios dos anos trinta do século se posicionara contra a titubeante irrupção do modernismo literário em Cabo Verde, argumentando que o verso devidamente cingido na rima, na métrica e em outras formas fixas era a única indumentária adequada à poesia e desqualificando os cultores modernos do versilibrismo como perigosos bolchevistas literários. Assinale-se que, nesta expressão acusatória (“bolchevistas literários”) se sintetizam todos os paradoxos e ambivalências nos quais navegava a geração dele contemporânea. Nesta óptica, ele terá sido o exemplo mais acabado das contradições e das ambiguidades que perpassavam os literatos e demais letrados do nativismo político, como atestam as suas profundas convicções de homem republicano de esquerda e progressista admirador de Marx, o mestre venerando, e membro encartado do Partido Socialista Português, e as suas celebradas capacidades de exímio émulo neo-clássico do autor de Os Lusíadas – se bem que um tanto serôdio - da poesia camoniana e de intrépido cultor e defensor do idioma caboverdiano, se bem que nas margens delimitadas pela sua filiação neo-latina. É, igualmente, assim que ele se evidenciou como co-precursor tanto do culto da Atlântida (transmutada, por vezes em labor simultâneo com José Lopes, em Hespérides, Jardim das Hespérides ou ilhas arsinárias) e da esquizofrenia cultural crioula, oscilante entre o amor da mátria natal e a veneração da pátria imperial e monumental dos descobridores, missionários, letrados e, mais de que tudo, de Camões, o seu símbolo, o seu canto, como também da África mediterrânica, faraónica e esfíngica, todavia sempre venerada como berço da civilização ocidental, e, a contrario, por exemplo, da démarche mais tarde empreendida por Cheikh Anta Diop, em contraponto à África negra, tida por pagã, animista e selvagem, habitada por criaturas tisnadas, abandonadas às trevas da ignorância e, por isso, necessitadas das luzes da civilização cristã e ocidental, quiçá somente passíveis de serem alcançadas mediante a obra do colonizador europeu e seu mais proficiente cultor, o colonizador português, como consideravam e advogavam em altos e, por vezes, impacientes brados os filhos islenhos da mãe-pátria lusitana, nossos ancestrais e respeitados compatriotas.
Oh! Tempos de múltiplos pressentimentos e de muitos ressentimentos!
Tempos de todas as exaltações! Tempos de veneração do vulcão da ilha das lavas cuspindo orgulho e rectidão na língua materna! Tempos da louvação da altivez das criaturas e da sua limpa emersão das lendas, das frutas douradas, dos tempos antiquíssimos das batalhas memoráveis e dos monstros vencidos!
Tempos de culto da língua pátria dos poetas da expansão lusa!
Tempos de ressurreição da pele negra insurrecta do marechal tricolor das Antilhas e de outros lugares de liberdade dos irmãos de raça e de desgraça!
Tempos de subjugação ao abecedário da vassalagem e aos labirintos da sua decifração, com o corpo escuro circunscrito à amnésia e à quotidiana sublimação do cárcere e da carestia em moradas outras, dos deuses antigos, dos deuses nossos contemporâneos, estranhos, estratificados.
Para, alguns anos depois, arrematar um outro génio da insularidade, sedentário da província do meio do mar, do lar insular modelar do nosso processo supostamente acelerado e exemplar de aristocratização cultural e, em vida, sedento das raízes do seu torrão natal, e das outras, recém-adquiridas e devidamente transladadas para o sopé do monte verde e aí para sempre sepultadas com os seus futuros restos mortais com vista privilegiada para o Porto Grande e para os navios demandando o norte e/ou o nor/noroeste dos mares do Atlântico. “Precisamente a ilha de Cabo Verde (Santiago) que se encontra numa fase mais atrasada de evolução aculturativa, está mais avançada linguisticamente do que as outras, embora apenas no aspecto fonético”.
Oh! Tempos de busca e de auto-diluição!
Oh! Tempos da caboverdianidade espartilhada entre a lusitanidade, a luso-crioulidade, a afro-crioulidade e a africanidade!
Oh! Tempos de muita inflexão e de pouca penitência!
A terra jazia, entretanto, inerte no seu diálogo silencioso com os parceiros, mas também com os morgados, com os comerciantes, com os seminaristas, com os professores primários.
Inadaptado e louco modernista era o que era o António Pedro.
“Louco e bendito modernista é o que ele é", corroborou, ainda em tempo útil, Jaime de Figueiredo, comovido e entusiasmado, a Jorge Barbosa, discípulo hesperitano, então muito dado às brumas da antiguidade greco-latina devidamente envoltas em rima e métrica clássica.
“Oh azuis, por demais azuis céus que me ofuscam o brilho castanho e o pardo verde da terra! Oh céus sem pátria!”.
As palavras continuavam a crepitar incongruentes, espartilhadas entre o plateau e os subúrbios, entre a saga aventurosa dos sonhos loiros libidinosos e os ventres proeminentes, infestados de lombrigas, das crianças em tempos de miséria e de muita fome, sideradas ante o casebre abandonado, o arco de ferro do menino enferrujando-se com as brincadeiras desvanecidas pelas estiagens e o desassossego do mar sempre, sempre dentro dele e dos caboverdianos anónimos, humildes, seus irmãos.
“Este homem é um Nero e pretende atear fogo à cidadela das nossas tradições mais civilizadas”-clamaram os estudantes radicados do outro lado de onde sopra o vento, secundados pelos neuróticos moradores da beira-mar onde, com estonteante regularidade, por sua vez, baila o vento.
“E traz à praça pública as nossas chagas, pois que de chagas se trata quando se nomeia o batuque, e a terra seca, e a preta. Oh! Vergonha do mondrongo-badio insultando herético o nosso fado que é a morna! Oh! Nefasto agente das artes degeneradas!”.
E, destemperados, congregaram-se em torno da raiva e do ódio, embevecidos com o auto-da-fé que acabavam de efectuar, e com as cinzas das primeiras letras pós-hesperitanas escritas e impressas em terras de Cabo Verde com o selo tipográfico da Imprensa Nacional de Cabo Verde, sedeada na cidade da Praia.
“Bendito modernista é o que ele é, esse cultor da liberdade poética e da sátira versilibrista!”, exclamou Jorge Barbosa e pôs-se febrilmente a escrever versos libertos da serôdia coacção da rima e da métrica e a debitar poemas sobre os mares caseiros da praia negra e da saragaça, o cutelo dos picos após a chuva, as negras e mulatas e respectivas ancas sensuais e dançarinas no pilar do milho, a estiagem, as meninas portuárias de S. Vicente, a ambiência neurasténica da ilha do Sal, os quinhentos anos de desventura e abandono do balanço final da lusitanidade colonial, e, impaciente com os tempos da maturação do tempo, pôs-se a congeminar destemidos versos panfletários destinados à memória futura das novas gerações contestatárias e nacionalistas. Versos esses que, embora clandestinos, eram recitados de forma sorrateira em muito restritos círculos de confrades, amigos e admiradores.
Entretanto, o pilão continuava retinindo nos quintais, e nos terreiros sagravam-se os ritos funerários e mandavam-se recados aos finados e ao senhor da chuva e, assim, prosseguia a trágica edificação da identidade do povo da ilha, do arquipélago do verde renitente e do diário milagre da sobrevivência.
Alguns anos mais tarde, um outro poeta, também ele branco nascido sob o signo de sagitário no plateau, mas nele criado até à idade adulta, sentado num café de Lisboa, assediado pela doença, pela saudade e pelo inverno, dessendentava-se nos sequeiros de Mato Engenho e de Dàcabalaio e sonhava um outro amanhã para as suas distantes e amadas ilhas, e as suas levadas enormes, e os seus trapiches pilando, e o seu cheiro de melaço vivificando as ânsias de felicidade na terra finalmente nossa, do povo das ilhas (“estás a atribuir-lhe de forma abusiva essa última expressão, consabidamente da lavra clandestina de Manuel Duarte. O António Nunes era simplesmente um poeta neo-realista que transitou do ultra-romantismo para o cânone claridoso salpicando-o dos ritmos de pilão e de outros sinais afro-crioulistas por influência de Teixeira de Sousa e da poesia negritudinista do mulato santomense crescido na diáspora portuguesa da capital do império, Francisco José Tenreiro de seus nomes civil e poético completos. As leiras de terra que serão nossas inserem-se mais num projecto de reforma agrária de teor socialista, ou, melhor, democrático-popular, como propugnavam os comunistas portugueses, companheiros de jornada de Teixeira de Sousa que, aliás, introduziu António Nunes nas tertúlias neo-realistas do Café Gelo de Lisboa, do que numa visão independentista, como, aliás, se viria a verificar com a postura titubeante do romancista foguense quanto a esta última questão, não obstante o seu entranhado anti-fascismo e o seu inquestionável progressismo político-social, primeiramente de cariz mais comunista e revolucionário, depois de teor mais socialista e reformista ”- interpelou-me, visivelmente incomodado, o poeta-mor, ex-preso político e combatente da liberdade da pátria. Aliás, não te esqueças desse outro poeta caboverdiano radicado na metrópole e muito ligado aos círculos neo-realistas da poesia do (anti) bloqueio. Na verdade, nascido na ilha da Boavista, foi levado para Lisboa ainda de tenra idade, tendo aí crescido e morrido, feito homem e poeta navegante entre o seio familiar crioulo caboverdiano e a ambiência circundante europeia e cultor de duas poéticas, complementares nas temáticas e nas sensibilidades trazidas à cena. São dele a Ilha e a Solidão e Missiva, de incidência caboverdiana, mas também os muito celebrizados Pátria, Lugar de Exílio e A Invenção do Amor, de temática predominantemente portuguesa e/ou universalista, mas sempre de altíssimo teor libertário e anti-fascista. No progressivismo residirão os seus pontos de encontro com o poeta Sagitário, saudoso da cidade natal, longínqua e pequena).
Porque sagitário morreu o demiurgo do poema de amanhã esquizofrénico num hospício da pátria monumental da miséria desvalida do povo, enclausurado no coração do império.
Santiago continuava especado entre o mar e o pilão, entre o sul e a estiagem, aguardando pacientemente, meses atrás dos meses, anos atrás dos anos, a estação das águas, das sementeiras, das mondas, das remondas, das trismondas, das colheitas dos risos, dos frutos, da alegria,
Os cavalos relinchavam continuamente em Santa Catarina, as folhas dos poilões rumorejavam entre Setembro e Março, o azul entranhava-se à distância e aos ecos ressoando entre as colinas sob o profético deambular de Nhu Naxu.
1938-1966
Tempos de outros regressos e de outras partidas
Veio o António Pedro na sombra do nacional-sindicalismo, do surrealismo, do periodismo e do Marechal Carmona (então presidente da pseudo-república portuguesa do Estado Novo em exercício de soberania por terras ultramarinas), viu a claridade e sorriu satisfeito.
O arquipélago tornou-se com o império a retaguarda do mundo. Tudo cheirava a pólvora e holocausto. Crioulos caboverdianos nascidos afro-americanos ou latinos do Mississipi desembarcavam nas costas de Dunquerque. Judeus de Cabo Vede agarravam-se ao Sião de Achada Riba, enquanto António Pedro proferia convincentes ditongos de liberdade entre o nevoeiro de Londres.
O arquipélago tornou-se, contra o império, a retaguarda da voz. E os corpos islenhos calcinados entre os oboés, descobriam-se escuros, castanhos e libertários.
António Pedro habitava ainda as muitas moradas das diásporas.
De 1966 até à eternidade
Morreu o pai minhoto, escriba assíduo na revista maior da província/colónia dos seus tempos praianos, veio e viu como a terra ainda era seca, de um continuado odor castanho salpicado de verde.
Foi-se e nunca mais voltou, o sagitário de tantas promessas não cumpridas, o homem-teatro de tantas máscaras assumidas quiçá para melhor perscrutar as diversas tonalidades da dor e as diversas matizes da paixão, o artista plástico e o poeta surrealista que, desprevenido, também se embebedou da terra nua e árida e das suas imponentes colinas azuis, e se fez eco dos rochedos de Laranjo e da Serra da Arga, ao som improvável da morna, que, serenada em serenata, teimava em arrebatá-lo para o transe de uns desajeitados passos de maxixe.
JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA
Praia, 21 de Julho de 1987 (versão original publicada na revista Fragmentos, de 1987)
Revisto e refundido em Lisboa, aos 16, 17, 20 e 21 de Dezembro de 2010, aos 30 de Janeiro, e aos 1, 6 e 9 de Fevereiro de 2011