Por Ricardo Riso
Agradecimento especial à autora.
O merecido reconhecimento da diversificada obra de Maria Celestina Fernandes para o público infanto-juvenil atingiu um dos seus melhores momentos com o livro As Amigas em Kalandula, ilustrado pelo competente Victorino Kiala e editado pelo Instituto Nacional das Indústrias Culturais de Angola no ano passado. Por isso a justa escolha do Prêmio Literário Jardim do Livro Infantil em sua edição de 2010, consagrando Celestina Fernandes como das principais partícipes na formação literária dos pequenos angolanos. Afinal, já são mais de dez títulos para este segmento desta autora nascida no Lubango, Angola, em 1945, que também atua na poesia, romance e crônica. Devido à longa trajetória, recebeu o prêmio de Mérito do Ministério da Cultura de 2009.
A contagiante narrativa de As Amigas em Kalandula tece uma viagem de magia e sonhos por meio da palavra, da palavra oral tal como um griot, o narrador de Fernandes possui extrema habilidade ao não se distanciar, oferecendo com maestria o espaço adequado para os seus apontamentos e para as falas das personagens dando vida ao que narra. É nesse fio envolvente da tradição oral que a autora a reinventa e a transpõe para a literatura infantil. Esse procedimento remete ao que Walter Benjamin aponta em “O narrador”, no qual o intelectual afirma que “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo”, e aqui deparamo-nos com o encantamento da narrativa escrita de Celestina Fernandes que se aproxima ao máximo de uma narrativa oral.
O enredo é simples e fascinante: um pequeno grupo de formigas encanta-se com uma matéria de televisão sobre as quedas d’água de Kalandula, um dos pontos turísticos de Angola. Devido à distância, sonham com a possibilidade de conhecerem o lugar e contam com a ajuda de duas rãs para procura uma maneira de fazer a viagem de Luanda ao lugar paradisíaco. A solução encontrada para a travessia é que as formigas embarquem em uma caravana rumo a Kalandula. Dessa maneira chegam às quedas d’água e para felicidade completa o passeio ganha novo itinerário, dirigindo-se às grandes pedras negras de Pungo Andongo. Ao final, a plena satisfação com a viagem e o retorno para Luanda.
A beleza da narrativa de Celestina Fernandes se dá com a valorização dos aspectos geográficos angolanos durante a descrição da travessia até Malange e a vegetação tropical, o cruzamento por riachos e rios como o grande Kwanza e o rio Lucala (o rio das quedas); as observações que estimulam a atenção para as diferenças, inclusive para aspectos sociais, e incentivam o olhar aguçado dos pequeninos por causa das “várias localidades, umas mais pitorescas, outras mais povoadas, umas mais pobres de arvoredo e de plantações e por todo o lado as pessoas sorriam, até as crianças de aspecto mais debilitado sorriam” (p. 14). O deslumbramento com a visão das quedas d’água, o arco-íris que se forma e a visão das grandes pedras negras de Pungo Andongo, além da imponência das pedras trata-se de um lugar mítico em razão das possíveis pegadas da rainha Njinga Mbandi, célebre por sua luta de resistência contra o colonialismo português.
Outro ponto de destaque é a empolgação com a paz oriunda pelo fim da guerra registrada nos comentários dos personagens humanos, deslumbrando um futuro próximo com a possibilidade do turismo e de que outras pessoas possam cruzar o país e conhecer Kalandula: “Estou mesmo a imaginar a quantidade de pessoas que virá até estas bandas quando melhorarem as condições (...)/ – Ah! Vai ser mesmo turismo a sério.../ – Será, com a santa paz tudo é possível, senão não estaríamos aqui tão à vontade!” (p. 19). Fato de igual emoção repete-se diante da maravilha que é contemplar as pedras negras, a consequente valorização do país incentivando as crianças a conhecerem o sítio e assim acarinhar a autoestima dos jovens angolanos: “Que espanto! Adorei ver as grandes quedas da nossa terra, mas a verdade é que existem outras cataratas pelo país e no estrangeiro, agora estes monstros assim, não sei se voltarei a encontrar coisa parecida em algum lugar...” (p. 22)
Por outro lado, a narrativa não deixa de mencionar algumas mazelas do país como as marcas de dor de um passado ainda recente, presente na estupidez violenta das minas, que permanecem na memória coletiva ainda se curando das fraturas daquele tempo: “Meninas, cuidado hein! Olhem bem onde pisam, pode haver ainda minas por aqui, estão a ouvir? – e foi com toda a precaução que circularam pelos sítios mais afastados.” (p. 17); e sociais, como a combinação inadequada de consumo excessivo de bebidas alcoólicas e trânsito: “Que loucura! Ainda há a estrada de regresso e essa gente nunca mais pára de beber? É por isso que a festa acaba muitas vezes em choro e lamentações, que bem poderiam ser evitados se acatassem o conselho ‘beber ou conduzir há que escolher’” (p. 20).
Para além do exposto acima, ficamos sabendo um pouco do comportamento das rãs e das formigas, do trânsito caótico de Luanda e a “condução do arranca-trava, trava-arranca...” Ou seja, estamos diante de uma narrativa rica, diversificada e encantadora. Envolvente na perseverança do sonho e na alegria em realizá-los, fascinante nas manifestações de contentamento diante das belezas das diferentes paisagens de Angola a estimular as crianças, por conseguinte os adultos, a conhecê-los. As Amigas em Kalandula de Maria Celestina Fernandes consagra o seu marcante percurso literário com uma história muitíssima bem contada, uma bela homenagem e um convite a conhecermos este exuberante país que é Angola.
As Amigas em Kalandula
de Maria Celestina Fernandes
Ilustrações de Victorino Kiala
Luanda: Instituto Nacional das Indústrias Culturais, Coleção Sol Nascente, 2010.