domingo, 27 de fevereiro de 2011

Arménio Vieira e Filinto Elísio no Cronópios

Neste final de semana tive meus dois primeiros textos publicados no Cronópios, influente portal de literatura brasileira. São as minhas resenhas para Li Cores & Ad Vinhos, de Filinto Elísio, e O Poema, a Viagem, o Sonho, de Arménio Vieira. Fico feliz por contribuir à visibilidade da literatura cabo-verdiana contemporânea em um outro e amplo espaço dedicado à literatura.
Abraços,
Ricardo Riso

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Manuel Bandeira e Filinto Elísio – transgressão e ironia em prol da poesia


Manuel Bandeira e Filinto Elísio – transgressão e ironia em prol da poesia
Ricardo Riso
24-26 de fevereiro de 2011
RESUMO: Incontestável a influência de Manuel Bandeira na poesia cabo-verdiana, motivando imagens de esperança como a “estrela da manhã” e movimentos literários como o pasargadismo evasionista e utópico assumido pelos escritores da revista Claridade, assim como reações contrárias, como o antipasargadismo, da geração da Nova Largada, de intensa reivindicação político-social. Por causa da emergência histórica da luta anticolonial, a ironia, figura marcante na poética de Bandeira, e o jogo lúdico com as palavras foram relegados no decorrer das décadas. Filinto Elísio, poeta revelado nos anos 1980, recupera essas características de Bandeira e mostra-nos o quanto um olhar ampliado para a obra do poeta brasileiro ainda pode apresentar novos referenciais para a poesia de Cabo Verde.

É notória a influência do modernismo brasileiro na literatura de Cabo Verde, mais precisamente na geração da revista Claridade (1936-1960), representanda, dentre tantos outros, por Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes. Os claridosos, assim conhecidos, visualizavam no exemplo dos modernistas brasileiros uma vertente para pensar o arquipélago, suas contradições e dilemas distanciando-os da metrópole portuguesa. Surge nos intelectuais desse período, pois a Claridade não era uma revista apenas de literatura e abarcava outras áreas do saber, um olhar aprofundando dos problemas sociais do país, ou como afirma Manuel Ferreira: “Os modernos textos brasileiros andaram de mão em mão no momento em que os jovens intelectuais cabo-verdianos descobriam a urgência de rigorosa objectividade socio-literária” (FERREIRA, 1985, p. 261).
Baltasar Lopes, um dos idealizadores dessa proposta, assim narra a recepção dos textos dos modernistas brasileiros:
Há pouco mais de vinte anos eu e um grupo de reduzidos amigos começamos a pensar no nosso problema, isto é, no problema de Cabo Verde. Precisávamos de certezas sistemáticas que só nos podiam vir, como auxílio metodológico e como investigação, de outras latitudes. Ora aconteceu que por aquelas alturas nos caíram nas mãos fraternalmente juntas, em sistema de empréstimo, alguns livros que consideramos essenciais pro doma nostra. Na ficção o José Lins do Rego d’O menino de Engenho e do Bangüê, o Jorge Amado do Jubiabá e Mar Morto; o Amândio Fontes d’Os Corumbas; o Marques Rabelo d’O caso da Mentira, que conhecemos por Ribeiro Couto. Em poesia foi um ‘alumbramento’ a “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, que, salvo um ou outro pormenor, eu visualizava com as suas figuras dramáticas, na minha vila da Ribeira Brava. (idem, p. 259)

Para além dos romances regionalistas – e aqui podemos acrescentar “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos –, percebemos o impacto causado pela poesia de Manuel Bandeira na geração claridosa e “as reverberações do tema de Pasárgada, colhido da poesia de Manuel Bandeira, alçaram-no a matriz poética do arquipélago, tendo como seu principal cultor o poeta Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes) que o legou entusiasticamente a outros escritores” (GOMES, 2008, p. 115). Dessa maneira, Osvaldo Alcântara, com maior ênfase, e outros escritores cabo-verdianos seguem o verso de Bandeira, “Não quero mais saber do lirismo que não é libertador”, e incorporam o pasargadismo que inspirou o desejo de evasão para outro espaço conotado a justiça social e no poder libertador da palavra poética.
Entretanto, o evasionismo proposto pelo pasargadismo e o desejo de emigrar sofreram severas críticas com o passar dos anos em razão da insustentável submissão colonial, já com a revista Certeza (1944), de cariz marxista, e a geração da Nova Largada contrária ao pasargadismo, ao evasionismo e ao terra-longismo, porém a favor de um olhar que recuperava as raízes crioulas e de veementes críticas ao colonialismo, para dissabor da metrópole, mas ainda assim “conservando a lição do quotidiano e o substracto telúrico veiculados pelos claridosos” (ALMADA, 2010, p. 3). Vários são os poetas da Nova Largada, dentre tantos, Aguinaldo Fonseca, António Nunes, Yolanda Morazzo, Ovídio Martins, chegando a atingir nomes revelados ao final dos anos 1950, tais como Onésimo Silveira, Mário Fonseca, Oswaldo Osório, Arménio Vieira e Kaoberdiano Dambará. Essa postura radicalizada dos novalargadistas é muito bem exposta no poema Anti-evasão de Ovídio Martins, que é enfático no seu antipasargadismo: Pedirei/ Suplicarei/ Chorarei// Não vou para Pasárgada// Atirar-me-ei ao chão/ e prenderei nas mãos convulsas/ ervas e pedras de sangue// Não vou para Pasárgada/ Gritarei/ Berrarei/ Matarei// Não vou para Pasárgada (ANDRADE, 1977, p. 48.)
Na década de 1950, as guerras de libertação das colônias africanas tornaram-se uma realidade e revelavam ao mundo o absurdo do colonialismo, os ideais pan-africanistas espalhavam-se pelos continentes, fundava-se o PAIGC (Partido Africano pela Independência de Guiné e Cabo Verde) sob a liderança de Amílcar Cabral, mas antes este jovem lançava um importante texto “Apontamentos sobre a poesia cabo-verdiana”[i] (1952), premonitório no dizer de Manuel Ferreira (FERREIRA, 1985, p. 304), acerca dos novos rumos que caberiam aos futuros atores da literatura cabo-verdiana assumirem após o chão fecundado por Claridade e Certeza:
Os seus poetas – o contato com o mundo é cada vez maior – sentem e sabem que, para além da realidade caboverdiana, existe uma outra realidade humana de que não podem alhear-se. Sentem e sabem que não é apenas em Cabo Verde que há “gritos lancinantes pela noite silenciosa” e “homens vagabundos” que “fitam estrelas que a madrugada esculpiu”. (...)
Mas a evolução da poesia cabo-verdiana não pode parar. Ela tem de transcender a “resignação” e a “esperança. A “insularidade total” e as secas não bastam para justificar uma estagnação perene. As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho da evasão, o desejo de “querer partir” não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos poetas – os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum – compete cantá-lo. O caboverdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos poetas. (CABRAL, 1976, p. 21)

Na virada dos anos 1950 para 1960 a intransigência da ditadura salazarista também seria sentida, a repressão aumentaria sua escala desencadeando as guerras coloniais. Por outro lado, poetas como Mário Fonseca, que parafrasearia a “postulação irritada da fraternidade” (FONSECA, 1998, p. 166) de Aimé Cesaire, marcam a mudança de postura de sua geração e o antipasagardismo seria radicalizado em suplementos literários como Suplemento Cultural (1958), Boletim Gil Eanes (1959) e Seló (1962). Ruptura que seria escancarada por Onésimo da Silveira, representante da “geração que não vai para Pasárgada”, no seu “Consciencialização da literatura caboverdiana”, livro com severas críticas – e injustas, frisamos – aos claridosos, motivando o poeta e ensaísta a afirmar que:
a literatura caboverdiana, estando profundamente ferida de inautenticidade, não traduz nem produziu uma mentalidade consciencializada e daí se ter tornado, como não é difícil verificar, em título de prestígio da elite que a vem encabeçando e não em força ao serviço de Cabo Verde e suas gentes. (SILVEIRA, 1963, p. 8)

O cantalutismo passaria a prevalecer na poesia, a independência das duas pátrias-irmãs assim sonhada por Amílcar Cabral se concretizaria.
Entretanto, com as décadas de 1980/1990, as transformações político-sociais não se realizam e os escritores começam a sentir a necessidade de discutir os rumos que a nação seguiu, assim como os caminhos da poesia, estagnados desde então. Segundo Carmen Lucia Tindó Secco:
Após a euforia da independência, no final dos anos 80 e início de 90, a novíssima “geração” de escritores começou a denunciar o vazio cultural no Arquipélago, além de constatar que a fome e a miséria não foram extintas. Houve uma desilusão em relação aos valores cantalutistas que animaram a poética da independência. A poesia então, deixou de cantar apenas o social e passou a operar também com os sentimentos individuais, com o existencial e o universal. Esse novo lirismo se caracterizou por construções metapoéticas e passou a repensar tanto os caminhos sociais, como os da própria poesia. (SECCO, 1999. p. 20)

Salutar recordarmos as pertinentes observações contidas nas epístolas de Timóteo Tio Tiofe (heterônimo de João Manuel Varela) e merecedoras de nosso logro acerca das responsabilidades das gerações posteriores à Claridade – nesse momento por um prisma diferente do mencionado por Cabral –, como muito bem apontou o poeta em sua “Primeira Epístola ao irmão António”, datada do ano de 1974. As críticas são incisivas diante do panorama literário do país, pois Tiofe aspira que
(...) os nossos poetas sejam mais exigentes na sua preparação cultural e na factura da sua poesia que os seus predecessores. A poesia cabo-verdiana está numa encruzilhada. Possuímos um antepassado de valor Jorge Barbosa. Precisamos ultrapassá-lo para fazer progredir a poesia do nosso país. (TIOFE, 2001, p. 136)
e assim encerra:
Nunca me cansarei de proclamar: para nós, escritores de hoje, tal é a maior herança que nos deixaram os homens da Claridade. Ela não é pequena, mas, justamente porque reconhecemos a nossa dívida, é importante saber onde pararam, até onde chegaram, para podermos ir mais longe. E aqui recordo: eles lançaram as bases duma “escrita cabo-verdiana” e cabe agora aos que seguem dar uma certa envergadura a essa escrita específica e estruturá-la, torná-la, numa palavra, digna do nome de literatura. (idem, 2001,  p. 144)
Posteriormente, Tiofe, na “Oitava Epístola ao irmão António”, atestaria a transformação da poesia cabo-verdiana e a compreensão da poesia de cariz metafísico de seu outro heterônimo, João Vário. “Há já alguns anos que muitos patrícios começaram a aceitar esse tipo de poesia, como a praticá-la. Em suma, mudou-se o paradigma” (TIOFE, p. 303). A poesia de Vário sofreu pesadas críticas e foi legada ao ostracismo como bem apontou o poeta e ensaísta José Luis Hopffer Almada no artigo “Que caminhos para a poesia cabo-verdiana? Parte II – O Exemplo já antigo de João Vário” (ALMADA, 2010), desde que sua escrita veio à luz em pleno período cantalutista. Tal discriminação já havia sido relatada por Manuel Ferreira e que reclamava a reintegração de João Vário às letras do arquipélago:
Trata-se de um corpus a ser reintegrado, como se disse, na literatura cabo-verdiana, ainda que os temas, as mensagens, a linguagem, independentemente da sua importância e qualidade, não se ajustem àquilo que se vem convencionando chamar-se a cabo-verdianidade. Mas (...) não há mais fundamento para uma discriminação deste teor, exclusivamente de caráter estético-ideológico. (FERREIRA, 1986, p. 63-64)
Como veio a emergir nas décadas de 1980/1990, o panorama mudou com a empolgação de uma nova geração de poetas que começava a se revelar em publicações diversas como Sopinha de Alfabeto, Voz di Letra, Ponto e Vírgula, Aríope, Raízes, Fragmentos etc. até serem reunidos na Mirabilis – de veias ao sol – antologia dos novíssimos poetas caboverdianos, organizada por José Luis Hopffer C. Almada. No prefácio da obra, Almada faz analogia à flor do deserto, a mirabilis, e procura mostrar a força de uma geração amargurada com os descumprimentos das promessas feitas pela revolução, e assim exprimir a força do verbo poético como local de reflexão do tempo em que vive:
Fustigada pelos ventos (da incompreensão!), pelo sol (da hipocrisia!), pelos tempos vários do mau tempo literário, desse tempo querendo-se vegetação literária. No deserto, cresce a geração mirabílica, feita signo na margem desértica do mar. De veias ao sol. As veias da indagação. As veias alagadas da terra das estradas, da poeira do dia-a-dia, do massapé dos campos, do lixo dos caminhos suburbanos, do desespero recoberto de moscas, baratas e outros vermes. As veias loucas do mar, do marítimo lirismo dos dias afogados nos ciúmes dos montes. As veias, veias de vida, de morte, de desespero, das quatro estações místicas do que se medita no refúgio do silêncio. Veias do camponês e da enxada neste coito de séculos com a terra. Ao sol, hipócrita por entre a bruma e os cerros. Sol, signo de luz. Sol que ilumina. Sol que queima e ofusca o caminhar. Sol dependurado da perseverança secular.
Mirabilis – de veias ao sol. Geração mirabílica indagando o sol.
“No Deserto cresce a Mirabilis”. Diz o poeta Orlando Rodrigues. “Embora de veias ao sol”. Adita Rodrigo de Sousa, para que das imagens do deserto cresçam as palavras da nossa geração e delas reste, ao menos, o cadáver da poesia. Sugere Mito, o poeta plástico, ou que o cadáver se metamorfoseie em flor e espinho, num panorama azul, de onírico, sugere Mito, o plástico poeta. Uma única rosa é a Mirabilis, e dela queda um sol de sangue. O sol da poesia mirabílica. (ALMADA, 1991. pp. 26-27)

Hoje é com bom grado que “a existência de um sistema literário cabo-verdiano consolidado tem servido de esteio aos novos poetas e ficcionistas para trilharem caminhos diferenciados”, como afirma Hopffer Almada (ALMADA, 2010, p. 3). Sendo assim, ter a liberdade para revisitar a obra de Manuel Bandeira sem as referências à “estrela da manhã” ou ao pasargadismo, ou ao antipasargadismo, podemos dizer que é uma conquista consolidada pela chamada geração mirabílica, frisando sempre a heterogeneidade dessa geração que jamais se configurou um grupo unificado. Fato este que não impede de receber críticas daqueles que acusam esses poetas de “inautenticidade e apatridia literárias”, pois se deveria respeitar
uma imaginada ou real autenticidade literária caboverdiana, devendo ser, por isso, tratada como património e causa intocáveis e devidamente preservada de malfazejos desvios, contaminações e outras conspurcações estéticas, estético-ideológicas e temáticas (ALMADA, 2010, p. 1).

No entendimento dessa crítica, isso seria assaz grave, pois esse “novo evasionismo teria como característica diferenciadora e distintiva a fuga pura e simples ao tratamento de temáticas tipicamente caboverdianas” (ALMADA, 2010, p. 1).
Todavia, a arte é feita de transgressão, de desafios ao cânone estabelecido e ninguém melhor que o cabo-verdiano da ilha de Santiago, Filinto Elísio Correia e Silva, para representar essa postura em seu já longo percurso literário, que passa pela poesia, crônica e romance com enorme desenvoltura e excelência. Dentre tantos títulos, destacamos Li Cores & Ad Vinhos (poesia, 2009) e Outros sais na beira mar (romance, 2010).
O sempre ousado Filinto Elísio recupera uma característica de Manuel Bandeira que foi pouco explorada na literatura cabo-verdiana, trata-se da verve irônica que tanto marcou a versátil obra poética do modernista brasileiro. A ironia e o seu poder de desestabilizar, ampliando e ressignificando os sentidos anestesiados pelo cotidiano encaixa-se perfeitamente na subversão da linguagem, naquilo que Roland Barthes assim enuncia como “trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (BARTHES, 1977, p. 16). Trapaça praticada por Elísio desde a saudosa e provocadora revista Sopinha do Alfabeto (1986), idealizada pelo artista plástico e poeta Mito Elias, que foi lançada durante o cinquentenário da revista Claridade e “contribuindo assim para o combate à quase letargia cultural em que nos mergulhamos.”
Nos poemas de Bandeira a ironia aparece de diversas formas. Portanto, é importante recordarmos a sua presença na poesia como ao final de “Pneumotórax”: “ – O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado./ – Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?/ – Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino” (BANDEIRA, 1976, p. 63).
Ou seja, diante do inevitável mal, a ironia faz-se presente e eleva a pertinência da arte na vida. De outra maneira, o sujeito lírico recorre à banalidade do cotidiano para expor a tragicidade do homem no “Poema tirado de uma notícia de jornal” e com o seu final inesperado que, de tão estúpido, chega a ser irônico: “João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número / Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro/ Bebeu/ Cantou/ Dançou/ Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.” (idem, p. 73).
Célebres são os poemas onomásticos reunidos no livro Mafuá do Malungo, como se o poeta quisesse decifrar signos ocultos nos nomes, sente-se estimulado a criar poemas inteiros a partir de antropônimos, desvelando a ludicidade com que trata a poesia, como no singelo Eunice: “Eunice meiga,/ Eunice linda.../ Que mais ainda?/ – Eunice Veiga!” (idem, p. 197). Decifração que o faz apelar para o neologismo, diante daquilo que a vivência diária está impossibilitada de oferecer e das regras normativas e restritivas da língua determinam, que somente a palavra poética, libertária por si, pode manifestar: “Beijo pouco, falo menos ainda./ Mas invento palavras/ Que traduzem a ternura mais funda/ E mais cotidiana./ Inventei, por exemplo, o verbo teadorar./ Intransitivo:/ Teadoro, Teodora. (idem, p. 136).
As figuras de som como a onomatopeia e as propostas modernistas de transgressão irônica apropriam-se de temas populares e do folclore, alimentando o fazer poético e tornando-se marcantes no poema “Berimbau”: “Os aguapés dos aguaçais/ Nos igapós dos Japurás/ Bolem, bolem, bolem./ Chama o saci: - Si si si si!/ - Ui ui ui ui ui! uiva a iara/ Nos aguaçais dos igapós/ Dos Japurás e dos Purus.” (idem, p. 56).
O jogo lúdico com as palavras possui uma associação fundamental na poesia de Bandeira, a musicalidade. Esta originada da própria essência da poesia, ainda assim recriada pelo poeta que se apropria de canções populares para transformá-las em poemas, tais como “Na rua do sabão” com os seus versos iniciais “Cai cai balão” e em “Rondó do Capitão” e o seu “Bão balalão”. Nos dois poemas a ironia se apresenta de forma melancólica. No primeiro, um menino pobre monta o seu balão e o solta, só que as outras crianças da sua rua tentam derrubar o seu balão, mas “como se o enchesse o soprinho tísico do José”, alcançando o céu e caindo longe dali, “caiu no mar – nas águas puras do mar alto” (idem, p. 55). Enquanto no segundo, versa-se a partir do suplicante pedido para que o senhor capitão retire o peso do coração do sujeito lírico, a amargurada esperança.
Após essa breve apresentação das manifestações transgressoras da ironia e da ludicidade com as palavras na poesia de Manuel Bandeira dentro do panorama literário brasileiro de sua época, podemos passar para o poema “arre_pendência” do seu novo livro, Me_xendo no Baú, de Filinto Elísio, e tentarmos demonstrar como a vertente irônica está presente na obra deste praiense, quais os recursos utilizados e quais as associações com Bandeira.
Filinto Elísio tem pleno domínio do ritmo, da métrica, da musicalidade da palavra poética, assim como Manuel Bandeira. No poema “arre_pendência”, a transgressão da linguagem proposta por Elísio remete-nos à ironia e à musicalidade do brasileiro, mas a transgressão da linguagem se anuncia na contaminação de termos e sinais gráficos da internet na poesia. Elísio criativamente faz farto uso das consoantes, o que nos faz recordar Bandeira no celebradíssimo poema “Os Sapos”: “O meu verso é bom/ Frumeto sem joio./ Faço rimas com/ Consoantes de apoio” (idem, p. 25). Esse predomínio das consoantes é uma característica da linguagem usada pelos jovens que suprimem as vogais em seus textos na internet. Enquanto isso, o sujeito lírico elisiano associa o som dos fonemas ao sentido das palavras: “S exílio/ S lírio/ C de cílio/ e de você/ esse delírio” (ELÍSIO, 2011, p. 49). Valendo-se da ironia e da ludicidade com as palavras, Elísio nos apresenta esse delírio surrealista de fortes conotações concretistas e assim incorporando a importância do aspecto visual ao poema. Para além do exposto, contemporâneo que é e procurando expandir os limites do fazer poético, apropria-se da maneira como as consoantes são empregadas na web: “acha o povo/ seu/ k/ minho” (idem, p. 49).
O seu propósito de “desoficinar a poesia” neste Me_xendo no Baú chama atenção pelo farto uso da tecla “underscore”  - “_” - (ou underline), deslocando nossos sentidos como no título do poema, um neologismo que já nos impressiona por si, mas também pela carga de ironia que contém, “arre_pendência”. E não há arrependimentos nos riscos aos quais o poeta se submete.
Depreendemos que a poesia elisiana se propõe inovadora, por isso o sujeito lírico afirma aos leitores: “existencializa-te/ cristaliza-te/ upgrada-te” (idem, p. 49); ou seja, há uma necessidade de renovar os olhares perante as novas tecnologias que pertencem ao nosso cotidiano, procurar absolver a revitalização da linguagem poética e assim encarar as experiências que o sujeito lírico anuncia. Entretanto, parecendo prever o apedrejamento que será exposto com suas transgressões, o sujeito lírico protege-se inserido no caminho vanguardista escolhido, provoca com as novas manifestações da arte – o grafitti e a webart – e solicita: “mas/ não me piches/ no graffiti/ nem me_gapixels/ em photoshop” (idem, p. 49).
Além do diálogo com a ironia e a ludicidade de Bandeira, este “arre_pendência” de Filinto Elísio apropria-se dos versos iniciais do poema “Rondó do Capitão” do poeta brasileiro. Este poema foi mais um dentre vários inspirados nas cantigas infantis e temas folclóricos. Elísio, que brinca com as palavras como Bandeira, recria os versos da cantiga, “bão balalão/ senhor capitão”, fazendo deste uma anáfora e renovando o segundo verso: “bão balalão/ cabeça de cão” e “bão balalão/ não tem coração” (idem, p. 49) para em seguida expor livres associações de ideias, típicas do automatismo surrealista.
Consciente de que “broxa rima” (idem, p. 49), o sujeito lírico experimenta a onomatopeia em “ta te ti to tu/ ou/ tu to ti te ta” (idem, p. 49) para logo após incorporar o olhar crítico e castrador dos que rejeitam as inovações, “(andas maluco tu)” (idem, p. 49). O sujeito lírico segue fazendo arte com as palavras, explorando a polissemia, homenageando pensadores, degustando o sabor da palavra, “viva sartre/ arte/ tarte de limão” (idem, p. 49), para encerrar de forma inusitada e irônica essa grata transgressão poética: “consorte// queres beijo/ ou/ pão de queijo?” (idem, p. 49).
Assumir a transgressão da linguagem poética requer uma dose excessiva de coragem, algo que a obra literária de Filinto Elísio vem demonstrando com enorme escala ao longo dos anos. Neste arre_pendência, e podemos estender para todo o conteúdo de Me_xendo no Baú, Elísio parece estimulado pelos versos do poema-manifesto “Poética”, de Manuel Bandeira, no qual o vate brasileiro afirma estar “farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado”, portanto vaticina: “Quero antes o lirismo dos loucos/ O lirismo dos bêbedos/ O lirismo difícil e pungente dos bêbedos/ O lirismo dos clowns de Shakespeare// - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação” (BANDEIRA, 1976, p. 63-64).
Sendo assim, explorando novas possibilidades semânticas que os recentes meios de comunicação podem oferecer, mantendo a preocupação e a busca incessante por uma palavra cada vez mais depurada, Filinto Elísio navega com desenvoltura entre a tradição e a modernidade do sistema literário cabo-verdiano com uma escrita que recupera de Manuel Bandeira a sua ironia e a sua ludicidade, de maneira desassombrada das reivindicações sociais da “estrela da manhã” ou de quaisquer referências pasargadista ou antipasargadista comuns às letras do arquipélago, porém de extrema necessidade em suas épocas.
Com seu “hino de liberdade”, o poeta apresenta-nos uma original proposta poética que provavelmente incitará e incidirá aos mais jovens a busca por novos caminhos, mostrando-os a vitalidade da poesia produzida em Cabo Verde, da possibilidade de se percorrer uma trajetória que pode se afastar do telurismo evasionista identitário ou de reivindicações sociais novalargadistas e dialogar com propostas vanguardistas distantes daquelas que determinada crítica de alguns em algures, de natureza tradicionalista, pretende manter engessadas. O poeta praiense demonstra que ainda há um vasto mar a ser navegado, transgredindo e ressemantizando palavras, deslocando imagens e sons, desestabilizando os sentidos inertes e esmorecendo aqueles que querem uma poesia sem riscos. Filinto Elísio, este vate, faz da sua insularidade na literatura de Cabo Verde um vasto mar a ser navegado. Sem medo.



BIBLIOGRAFIA:
ALMADA, José Luis Hopffer C. Mirabilis – de veias ao sol. Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos. Lisboa: Caminho, 1999.
ALMADA, José Luis Hopffer C. Problemáticas lusógrafas e o papel da língua portuguesa na emergência da identidade literária caboverdiana e na universalização da poesia caboverdiana contemporânea. África e Africanidades. Rio de Janeiro, Ano 3, n. 11, p. 1-43, novembro, 2010.
ANDRADE, Mário de. Antologia temática de poesia africana: na noite grávida de punhais – Volume I. Lisboa: Sá da Costa, 1977.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1977.
BANDEIRA, Manuel. Antologia Poética. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
CABRAL, Amílcar. Apontamentos sobre a poesia caboverdiana. In: Vozes. Petrópolis, n. 1, p. 15-21, 1976.
ELÍSIO, Filinto. Me_xendo no Baú. Lisboa: Letras Várias, 2011.
FERREIRA, Manuel. Aventura Crioula. Lisboa: Plátamo, 1985.
FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São Paulo: Ática, 1987.
FONSECA, Mário. Se a luz é para todos. Praia: Publicom, 1998.
GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde – literatura em chão de cultura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
SECCO, Carmen L. T. R. (Org.). Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Cabo Verde. Rio de Janeiro: UFRJ, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, 1999. v.2.
SILVEIRA, Onésimo. Consciencialização na literatura caboverdiana. Lisboa: Edição da Casa dos Estudantes do Império, 1963.
TIOFE, Timóteo Tio. O Primeiro e o Segundo Livro de Notcha. Mindelo: Pequenas Tiragens, 2001.

WEBGRAFIA:
ALMADA, José Luis Hopffer C. Breves apontamentos a propósito de recentes polémicas sobre a identidade literária caboverdiana. Disponível em < http://tertuliacrioula.com/2010/08/que-caminhos-para-a-poesia-caboverdiana-parte-1/ > Acessado em 27 de agosto de 2010.
ALMADA, José Luis Hopffer C. Que caminhos para a poesia cabo-verdiana? Parte II – O exemplo já antigo de João Vário. Disponível em < http://tertuliacrioula.com/2010/08/que-caminhos-para-a-poesia-caboverdiana-parte-2/ > Acessado em 27 de agosto de 2010.
SOPINHA DE ALFABETO. n. 1, p. 1, 1986. Disponível em < http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1Pag1.htm > Acessado em 24 de fevereiro de 2011.





[i] Amílcar Cabral, “Apontamentos sobre a poesia cabo-verdiana”, in Cabo Verde – Boletim e Propaganda e Informação, ano III, nº 28. Praia, Cabo Verde, 1 de janeiro de 1952.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Pedro Matos - "Midju di Fogu" (livro)

"Midju di Fogu", de Pedro Andrade Matos, é lançado em Cabo Verde

"Pelos meandros do texto, o vinho Manecon brota das uvas nascidas em meio à pedra negra e vulcânica que domina as paisagens áridas, entre mar e rochedos", escreve Simone Caputo Gomes, da USP.

Da Redação

Praia - "Midju di Fogu" é o título do livro de memória e afectos de Pedro Andrade Matos que é lançado nesta quinta-feira (24) na Casa de Memória da Ilha do Fogo, em Cabo Verde, com apresentação de Alberto Nunes e Fausto do Rosário.

Natural da Ilha do Fogo, no arquipélago de Cabo Verde, Pedro Andrade Matos é graduado em Relações Internacionais pela Universidade Católica de Minas Gerais (PUC) e mestrando em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), residindo actualmente em Belo Horizonte.

No próximo sábado (26),"Midju di Fogu" (Milho de Fogo), livro de estreia de Pedro Matos, um natural da "ilha do vulcão", será apresentado no Palácio da Cultura Ildo Lobo, na Cidade da Praia, capital do país, pelo escritor caboverdiano Filinto Elísio.

Nas palavras de Simone Caputo Gomes, professora de Literaturas Africanas da Universidade de São Paulo (USP), "pelos meandros do texto, o vinho Manecon brota das uvas nascidas em meio à pedra negra e vulcânica que domina as paisagens áridas, entre mar e rochedos, entre arbustos (como a purgueira) balançados pelo louco vento".

"Os homens cavam a terra, as mulheres jogam as sementes do milho e as crianças cobrem as covas com os pés, num djuntamô (juntar as mãos) para que o chão, fecundado, possa “vestir o povo de água” e conceder-lhe a abundância na “terra molhada”, lê-se no texto de apresentação de "Midju di Fogu", um livro que "promete ao leitor uma bela sementeira", diz Simone Caputo Gomes.

Filinto Elísio e os novos caminhos para “desoficinar a poesia”


Filinto Elísio e os novos caminhos para “desoficinar a poesia”
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 182, p. 13, de 24/02/2011.
Meu primeiro contato com a poesia de Filinto Elísio se deu com o livro Das Frutas Serenadas, ocasião que tive oportunidade de conhecê-lo na USP, Brasil. Com o avanço das páginas do referido livro, vi que estava à frente de uma poesis que vivenciava sua insularidade dentro da literatura cabo-verdiana. Deparei-me com um vigor surpreendente que privilegiava a metapoética aliada a uma deliciosa união de sinestesia e exacerbado erotismo, para além do pleno uso das rimas internas, assonâncias e aliterações subvertendo a estrutura do soneto, configurando o poeta como um excelente sonetista. Evidências que seriam aperfeiçoadas com o livro seguinte, Li Cores & Ad Vinhos, e a plena maturidade de Filinto em seu ofício.
Entretanto, o inquieto poeta resolveu aventurar-se pelo romance, aliás, o antirromance, rompendo com tudo o que já tinha sido escrito até então em seu país, e jogou nas ruas Outros Sais na Beira-Mar. Um outro assombro, como sempre prazeroso, diante do audacioso hibridismo proposto pela narrativa fragmentada de Elísio, mesclando diferentes gêneros literários e incorporando características textuais da internet, como os e-mails.
Em sua permanente desassossegada criação literária o autor decide retornar à poesia. O que esperar de um novo livro de poesia de Filinto Elísio? Algo transgressivo, no mínimo, assim o escritor habituou-me.
Recebo Me_xendo no baú que sairá pela portuguesa Letras Várias, em caprichada edição com pinturas do português Luís Geraldes e um CD com os poemas declamados por João Branco e Nancy Vieira. Passo rapidamente os olhos pelas páginas e percebo que Filinto retoma características do passado e os sonetos, predominantes nos dois últimos livros, são abandonados, ou melhor, há apenas um. Agora os versos são curtos, breves, a lembrar os tempos Do lado de cá da rosa.
Me_xendo no baú está dividido em cinco cadernos, totalizando 35 poemas. Os cadernos possuem títulos curiosos em razão da grafia escolhida pelo poeta, deslocando nossos sentidos sendo reconfigurados pela sonoridade das palavras, arte na qual Elísio é mestre como são os grandes nomes da poesia: Ó de ceia das i_lhas. Formado por dez poemas, este primeiro caderno propõe-se uma peculiar leitura das ilhas de Cabo Verde “antes do verbo”. Diante dos sentidos desgastados das palavras pela insensibilidade da contemporaneidade, o poeta “pensa palavras primordiais” para ressignificar a história das ilhas em forma de poesia, esmaecidas pelos fragmentos da memória e dignificá-las com a força libertadora do verbo poético. O derradeiro caderno retorna ao país e o poeta celebra as manifestações musicais das ilhas em belíssimos poemas. Estão lá a morna (reatualizada), a coladeira, a tabanka, o cola son jon, o funaná, o batuque – e a comovente homenagem às mulheres: “na re_tina de aquém & mar/ mulheres da grande ilha/ tam_borilam entre suas coxas/ o destino de serem outras deusas/ a_finação das máguas – suas lem_branças…”. Surpreendo-me com o criativo neologismo “máguas”, a unir a mágoa das mulheres abandonadas por seus homens e a água do mar, esse mar que leva os companheiros para a terra-longe.
Desarranjar os estáticos sentidos semânticos dos nossos tempos, perscrutador das palavras, poeta. Palavra, erotismo, poesia, a geografia das ilhas a serviço da poeisis de Elísio, navegador de uma linha tênue que invoca exclamações. “São o caos querendo o cosmos” para a peculiar grafia de sua poesia. Não por acaso, o ar, elemento da natureza representando o voo, a liberdade da palavra poética, presentifica-se. Percepções inertes na agitação dilaceradora do cotidiano. Cabe ao poeta restaurar as “coisas levi_tantes” e fecundar “lavra_s novas”.
“Persistem em mim todas as fomes”. A fome que devastou o povo das ilhas em tempos idos se demonstra insaciável na incessante recriação do verbo poético. A sinestesia permanece marcante, a erotização estonteante, palavra poética de puro desejo, versos surgidos na efemeridade da vida, o que o leva a dessacralizar o desejo, sendo fiel ao seu instinto masculino: “versejo-te sendo este desejo/ uma estranha forma de cruz”.
A celebração simbolista nas metáforas inusitadas, a intertextualidade com Arthur Rimbaud e com a própria obra: “rosa do lado de cá?”; as referências obrigatórias do poeta: o Fernando Pessoa de “Ode Marítima” e “Autopsicografia”, e o mineiro Carlos Drummond de Andrade das Gerais de tanto agrado do poeta de Santiago, para além do universal expresso nas citações da mitologia egípcia.
Em seu “tabu_leiro” de palavras, a investigação ininterrupta dos sons e a sua musicalidade em diferentes grafias – “em mi fá sol lá da melo dia” e “musicar fonemas” –, substancia-se com o farto recurso de termos e maneiras de escrita apropriados da internet, “S grafema impreciso/ VC de vossemecê”; na supressão de vogais e a crítica ao empobrecimento da língua portuguesa tratada de forma invertida: “amiúde sem vogais/ de ataúde consoantes:/ amar-te em MR-T/ FDR-T gemendo assaz letras/ CMR-T engolindo-as todas”; assim como, a ironia de um surrealismo delirante que somente um poeta transgressor como Elísio poderia proporcionar: “S exílio/ S lírio/ C de cílio/ e de você/ esse delírio”.
Por outro lado, a reverência a um cânone da literatura de Cabo Verde, profundo admirador da expressão máxima da poesia, a sua musicalidade. Falo de Corsino Fortes de “Pão & Fonema” e “Árvore e Tambor”: “aliterando em T/ (corsino verseja tambor)/ metaforizando em P/ (cor & sino tal poesia)”.
Criatividade extrema, ludicidade com as palavras, o poeta a cantar o seu “hino de liberdade”, a criar inusitadas pontes com um mestre da sonoridade das palavras como Manuel Bandeira – em desassombro de qualquer pasargadismo ou antipasagardismo da história literária cabo-verdiana – e o seu poema “Rondó do Capitão”, utilizando versos livres, imagens automáticas e surreais, onomatopeias, versos impregnados por temos da computação – “mas/ não me piches/ no graffiti/ nem me_gapixels/ em photoshop”. Por isso o poeta afirma para mim, para o leitor, “upgrada-te”. Sentimento necessário para acompanhar o intenso uso da tecla “underscore” (ou underline) fartamente aplicado na internet, que ora serve para reforçar o gozo sexual em “den_goso”, ora para jogos lúdicos como as “equações estéticas” de “Intradoxos”: “a_barco/ b_arco/ c_rco/ ...de circo meu bem”. Transgressão na linguagem que procura restaurar sentidos profundos dissolvidos pelo tempo, lucidamente reconstruídos no processo constante de “desoficinar a poesia”.
Me_xendo no baú revela a ludicidade em harmonia com a complexidade criativa de um poeta que se atreve a inovar, a se apropriar de referenciais contemporâneos para sua escrita. Não é por menos que afirma: “querem de mim ainda as transgressões”. Filinto, todas, se possível. Que continue “vasculhando o ú” de sua poesia, deslocando as imagens, recriando palavras e sons, desestabilizando os incautos da poesia sem tesão, revisitando as ilhas do arquipélago, celebrando suas músicas, esfarpando “metrificações e versos”, valorizando os poetas que o formaram... por arriscar novos caminhos para a sua poesia, Filinto Elísio amplia a vastidão de seu mar e fortalece a insularidade de sua trajetória na literatura cabo-verdiana, tornando-se um obrigatório mar a ser navegado. Com prazer, sempre.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Resenha de Li Cores & Ad Vinhos, de Filinto Elísio, no Buala

Amigos(as),


Minha resenha de Li Cores & Ad Vinhos, livro de poesia de Filinto Elísio com ilustrações de Mito Elias está publicado no Buala.




Ricardo Riso

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Camila Mont-Rond – Amor na Ilha e outras Paragens (livro)


Camila Mont-Rond – Amor na Ilha e outras Paragens (sinopse)

Camila Mont-Rond é o pseudônimo de Ondina Maria Fonseca Rodrigues Ferreira. Neste livro de contos deparamo-nos com histórias de pessoas comuns fragmentadas pelas variadas circunstâncias impostas pela vida. A contista enfatiza a condição da mulher cabo-verdiana, subjugada em uma sociedade patriarcal que comete injustiças de diversas e cruéis ordens. As histórias se passam em diferentes tempos que vão desde o século XVI, a luta pela independência e os dias atuais. Os espaços se dão tanto nas ilhas do arquipélago quanto na terra-longe, sendo os efeitos da emigração sentidos de forma positiva ou negativa pelas personagens.

Detentora de uma narrativa envolvente e concisa, elegante e sutil nos detalhes que mascaram os destinos das mulheres cabo-verdianas, este livro proporcionará gratas surpresas para quem atravessar suas páginas e assim conhecer um pouco de Cabo Verde pela sóbria prosa de Camila Mont-Rond.

Ricardo Riso

Este livro e outros títulos da Artiletra, editora cabo-verdiana, encontram-se à venda na Kitabu - Livraria Negra (Rio de Janeiro - Brasil).

Osvaldo Azevedo – Regresso à Vila do Vale (livro)


Osvaldo Azevedo – Regresso à Vila do Vale (sinopse)

Este livro de Osvaldo Azevedo, também ilustrado por ele, reúne poemas e contos que em sua maioria recriam os “mil mistérios e tesouros que guardam a Vila do Vale”, local de origem do escritor. Filho do poeta Pedro Corsino Azevedo, esta publicação está dividida por poemas introdutórios, uma dedicatória e três cadernos.

No caderno inicial estão agrupados poemas e contos de intensa rememoração da infância, na restrita visão de mundo dos pequenos sempre prontos para descobrir o universo dos adultos. Os contos testemunham o cotidiano de uma pacata vila durante o período colonial, sendo os animais protagonistas em algumas narrativas, como a de “O Brilhante”, o bravo cavalo de um tempo em que “a terra ainda esperava a manifestação máscula de um homem”. O caderno seguinte preocupa-se com a relação ilhéu-mar, enquanto o derradeiro apresenta intimismo e lirismo, para além das divagações acerca do ocaso da vida.

Um livro de agradável leitura de um veterano das letras de Cabo Verde.

Ricardo Riso

Este livro e outros títulos da Artiletra, editora cabo-verdiana, encontram-se à venda na Kitabu - Livraria Negra (Rio de Janeiro - Brasil).

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Mario Lucio Sousa – Para nunca mais falarmos de amor (livro)


Mario Lucio Sousa – Para nunca mais falarmos de amor (sinopse)

Em 1999 Mario Lucio Sousa concretiza a sua 3ª incursão literária. Este consagrado músico cabo-verdiano possui uma carreira consistente e celebrada tanto na literatura quanto no teatro, como comprova a sua estreia na poesia com o “Nascimento de um Mundo” (1991).

Em “Para nunca mais falarmos de amor”, o autor brinda-nos com uma temática destelurizada do cânone literário cabo-verdiano, poemas breves e concisos, agradáveis experiências com os hai-kais em imagens inusitadas e por vezes irônicas.

Sousa capta na observação da simplicidade do cotidiano a matéria para os seus poemas, embora encontre no ser humano e na beleza da vida as substâncias para a sua poesia. Nesse sentido, inferimos a comovente presença de um lirismo amoroso acompanhado de um respeito à condição humana no que se refere às suas ânsias, angústias e nas suas contradições diante das adversidades.

Com uma singela carta do autor aos editores ilustrando a capa do livro, deparamo-nos com 84 pequenos poemas sinceros, em alguns momentos dolorosos, reveladores de um artista com a sensibilidade à flor da pele pronto para desnudar o belo da poesia, o bom de viver.
Ricardo Riso

Este livro e outros títulos da Artiletra, editora cabo-verdiana, encontram-se à venda na Kitabu - Livraria Negra (Rio de Janeiro - Brasil).

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Carta Aberta ao Ziraldo, por Ana Maria Gonçalves

Recomendo a leitura deste excelente texto de Ana Maria Gonçalves que desmascara a democracia racial brasileira e tem a propriedade de desconstruir mais um cânone literário brasileiro, apresentando a opção declaradamente racista de sua obra.


Ricardo Riso




Carta Aberta ao Ziraldo, por Ana Maria Gonçalves



Caro Ziraldo,
Olho a triste figura de Monteiro Lobato abraçado a uma mulata, estampada nas camisetas do bloco carnavalesco carioca "Que merda é essa?" e vejo que foi obra sua. Fiquei curiosa para saber se você conhece a opinião de Lobato sobre os mestiços brasileiros e, de verdade, queria que não. Eu te respeitava, Ziraldo. Esperava que fosse o seu senso de humor falando mais alto do que a ignorância dos fatos, e por breves momentos até me senti vingada. Vingada contra o racismo do eugenista Monteiro Lobatoque, em carta ao amigo Godofredo Rangel, desabafou: "(...)Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi?” “Desastre na Central.” Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problema terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!..." (em "A barca de Gleyre". São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133).
Para ler o restante do texto, clique aqui.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Arménio Vieira por Ricardo Riso na revista Triplov (Portugal)



Publicada na revista portuguesa Triplov, minha resenha do livro O poema, a viagem, o sonho, de Arménio Vieira, primeiro cabo-verdiano a ser galardoado com o Prêmio Camões, em sua edição de 2009.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Corsino Fortes - A cabeça calva de Deus (livro lançado no Brasil)


Livro: A cabeça calva de Deus
Autor: Corsino Fortes
ISBN 10: 8575313909
ISBN 13: 9788575313909
Gênero: Literatura Portuguesa Contemporânea/Poesia
Edição: 1ª edição
Páginas: 288
Formato: 14 X 21 cm
Peso: 325 g
Organização e prólogo: Floriano Martins
Coleção: Ponte Velha
Artista convidado: Fernando Gonçalves
Posfácio: Ana Mafalda Leite
A Escrituras Editora, dentro da Coleção Ponte Velha, edição apoiada pelo Ministério da Cultura de Portugal e pela Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB/Portugal), publica A cabeça calva de Deus, de Corsino Fortes. A organização e prólogo da obra são de Floriano Martins e as ilustrações de Fernando Gonçalves.
A cabeça calva de Deus intitula uma trilogia poética iniciada com a publicação de Pão & Fonema (1974), seguida de Árvore & Tambor (1986) e agora concluída com o livro Pedras de Sol & Substâncias (2001), obra poética de Corsino Fortes que foi objeto de diversos estudos e que faz parte de várias antologias em língua inglesa, portuguesa, francesa, italiana, holandesa, entre outras.
Segundo Ana Mafalda Leite, no posfácio, “A cabeça calva de Deuscondensa o universo caboverdiano pela sua potência engendradora a partir das suas limitações geoclimáticas e telúricas. Abandonadas pelos deuses no meio do Atlântico, as dez ilhas caboverdianas, a caminho da África, Europa e América, com a nudez mineral da secura, incorporam nelas a força poética e rítmica com que a poesia fundamental de Corsino Fortes as canta em tom épico e sagrado”.
Sobre o autor:
Corsino António Fortes
 nasceu em 14 de fevereiro de 1933, em Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. Licenciado em Direito (Lisboa, 1966), veio a exercer as funções de delegado do Ministério Público e juiz de direito, em Angola, até ser exonerado a seu pedido, em abril de 1975, do cargo de magistrado. Em 1974-1975, como militante ativo do P.A.I.G.C. exerceu as funções de representante do Partido em Angola, de diretor-geral dos Assuntos Judiciários da República da Guiné-Bissau e de emissário especial da República de Cabo Verde junto dos Governos da República Popular de Angola e da República Democrática de São Tomé e Príncipe. Entre 1975 e 1981, foi embaixador extraordinário e plenipotenciário da República de Cabo Verde junto da República Portuguesa, desempenhando idênticas funções junto dos Governos de Espanha, França, Itália, Noruega e Islândia. Em 1981, foi nomeado secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro e, em 1983, secretário de Estado da Comunicação Social. Entre 1986 e 1989, regressa à diplomacia como embaixador de Cabo Verde junto da República Popular de Angola. Entre 1989 e 1991, exerce as funções de ministro da Justiça pelo Governo de Cabo Verde. Hoje exerce as seguintes funções: Presidente da Fundação Amílcar Cabral, Presidente do Conselho de Administração da Inpar – Companhia Cabo-Verdiana de Seguros, Vice-presidente do Conselho de Administração da Caixa Econômica de Cabo Verde, e Sócio-fundador da Associação dos Escritores cabo-verdianos. Foi condecorado pelo Governo Português com a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique e com a Grã-Cruz da Ordem de Mérito, pelo Governo Francês com o Grand officier de L’ordre nacional du Mérite: e pela Presidência da República de Cabo Verde com a Ordem do Vulcão.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Artiletra (Cabo Verde) livros à venda na Kitabu (RJ)

(clique na imagem para ampliá-la)
Prezados,

sempre procurando formas para ampliar e facilitar o acesso do público brasileiro aos livros dos escritores das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, iniciei uma parceria com a Edições Artiletra. Agora seus livros estão à venda na Kitabu - Livraria Negra, à rua Joaquim Silva 17, Lapa - Rio de Janeiro/RJ. Além dos livros de Valentinous Velhinho, Mario Lucio Sousa, Kaká Barbosa, entre outros, o histórico jore - jornal-revista de Educação, Ciência e Cultura, Artiletra, nº 105/106 - novembro/dezembro-2010, também está à venda.

Agradeço ajuda para a divulgação.
Grande abraço,
Ricardo Riso


A relação dos livros da Artiletra:


Camila Mont-Rond - Amor na Ilha e Outras Paragens

Dionísia Velhinho Rodrigues - Na Minha Terra Também se Ama
Kaká Barboza - Konfison na Finata
Kwame Kondé - Escritos sobre Teatro
Mario Lucio Sousa - Para Nunca Mais Falarmos de Amor

Osvaldo Azevedo - Regresso à Vila do Vale


Vadinho Velhinho - No Ponto do Rebuçado
Valentinous Velhinho - Adeus Loucura Adeus
Valentinous Velhinho - Relâmpagos em Terra
Valentinous Velhinho - O túmulo da Fênix
Valentinous Velhinho - Tenho o Infinito Trancado em Casa

Curso Mitologias Africanas e Afro-brasileiras na Sala de Aula

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

António Pedro, por José Luis Hopffer C. Almada

Uma gentil contribuição de José Luis Hopffer C. Almada para este blog. Neste texto, o poeta e crítico literário cabo-verdiano, por meio do pseudônimo Dionísio de Deus Y Fonteana, celebra a memória de António Pedro, que para Manuel Ferreira em Aventura Crioula, "nos parece ter sido António Pedro um dos que teria dado um contributo para a mudança literária em Cabo Verde. Não será despropósito nenhum ligar o seu nome à fase dos primeiros sintomas do modernismo literário cabo-verdiano (...)". (FERRREIRA, 1985, p. 292-293).
Abraços,
Ricardo Riso 


                                   ANTÓNIO PEDRO:
A SAGA ISLENHA DE UM POETA DE CABOVERDIANIDADE BISSEXTA
VISTA POR DIONÍSIO DE DEUS Y FONTEANA

                                   Dezembro de 1909
                                       Tempos de infância

António Pedro nasceu no plateau da cidade da Praia.
Se não no real, pelo menos no simbólico.
Na casa-grande plantada sobre a colina do Laranjo e a ribeira que lhe perfazia o verde e a fortuna.
Morgadio e arquitectura de Trás-os-Montes (o metropolitano, não o tarrafalense!) viram os seus olhos semicerrarem-se face ao intenso brilho do sol caboverdiano.
A 9 deDezembro de 1909, como sagitário.
Ó criatura de tantas promessas por cumprir!
Por ter começado por ouvir um patois anglolusodjarfogobadio, o seu signo iluminou-se, desde sempre, de uma aura de universalidade sem céus nem raízes aparentes. A tentação da total transgressão habitou-lhe então o coração, ainda infante, ao mesmo tempo que uma insondável e sempre súbita queda para as raízes pétreas. O signo de sagitário era nele premonição de um espírito em constante deambular, entre o vale do Laranjo e o mundo, entre o primeiro patois escutado com o borbulhar do leite materno e a babel da modernidade, entre Santiago e o Império, entre a purgueira e o pinheiro.
Cresceu no plateau. Se não no real, pelo menos no simbólico.
Na sociedade colonial ensolarada de ritmo e de bulício.
Na sociedade colonial enclausurada no recato e na solidão da cidade-repartição.
Provincianamente alegre e atónito face às romarias da justaposição e da interpenetração entre a lusitanidade e a africanidade, e os múltiplos coitos que paulatinamente geraram a crioulidade, e os muitos incestos que engendraram os filhos híbridos das ilhas e as suas feições afro-latinas, sempre autênticas na plena assunção da sua bastardia biológica e cultural, a qual, aliás, ficaria depois gravada no célebre axioma “Cabo Verde não é nem Europa, nem África, Cabo Verde é Cabo Verde”.
(“Ou tautologia, segundo outros pontos de vista mais cáusticos- interfere um aprendiz de intelectual recém-diplomado por uma universidade obviamente estrangeira – como o do vate da cidade que ousou escrever uma série de poemas subversivos, como “Fome” ou “Eis-me aqui, África”. Curiosamente o mais subversivo desses poemas, intitulado “Quando a vida nascer” foi publicado, pela primeira vez, no Boletim Cabo Verde, importantíssima revista cultural editada na Praia religiosamente em todos os meses do calendário entre os anos de 1949 e 1964. Quiçá tenha sido o Boletim Cabo Verde a mais importante revista cultural caboverdiana do período colonial, se levarmos em conta a riqueza e a variedade do seu conteúdo ensaístico e literário e a diversidade estética e geracional dos que nela colaboraram, mas também caracterizada pela sua sujeição à tutela e à censura directas do governo colonial enquanto propriedade da administração da província e porta-voz da ideologia colonial então dominante. Tanto mais que as suas primeiras páginas eram reservadas aos discursos e às obras do governador e às chamadas políticas coloniais de fomento, para além da ininterrupta idolatria do chefe máximo do Estado Novo colonial-fascista e do culto de uma certa histeria patriótico-imperial, como aquela que se verificou aquando da invasão do chamado Estado português da Índia (formado por Goa, Damão e Diu) pela União Indiana de Nehru. Nessa óptica, funcionava como uma espécie de jornal oficioso do Governo da província/colónia. Deve ter sido por esta razão que o inrevelado autor do libelo acusatório anti-claridoso Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana (consabidamente publicado sob um nome emprestado a um avassalado versejador desses tempos de bloqueio e, em tempos, renomado autor de alguns dos poemas mais emblemáticos da nova largada político-cultural), tenha preferido manter na mais estrita clandestinidade o excelente ensaio-panfleto político de denúncia total do sistema colonial-racista vigente em Cabo Verde e de desmascaramento das políticas de reforma colonial empreendidas por Adriano Moreira, assinando-o com o pseudónimo castiçamente badio A. Punói”.
“ Não obstante os constrangimentos acima referidos, o Boletim Cabo Verde marcou toda uma época. Basta dizer que a maior parte da poesia de Jorge Barbosa, incluindo a de teor mais contestatário (como o paradigmático “Panfletário”), mas excluindo outros de quase ruptura política (como “Meio-Milénio”, “Nau Negreira” ou “Memorial de São Tomé” e outros integrantes de livros que tentou dar à estampa durante a primavera marcelista), e quase toda a obra cronística e ficcional de Maria Helena Spencer foram dadas a conhecer no Boletim Cabo Verde. Oficioso em parte, sim senhor!, mas nada que se comparasse com o seu sucessor, o famigerado semanário Arquipélago, de conotação abertamente colonial-fascista e implacável defensor do status quo, numa época em que já proliferavam os movimentos de libertação nacional e eram mais do que evidentes os sinais da queda próxima do império colonial português”-esclarece bem-humorado o poeta existencialista da cidade, também ele estreante no Boletim Cabo Verde, no qual, aliás, comprovou na sua própria pele a veracidade do axioma “pior a emenda que o soneto”, quando um poema seu dado à estampa no mesmo Boletim Cabo Verde, foi sujeito ao crivo estético do juiz da comarca (anote-se em roda-pé, que nas horas vagas esse austero magistrado se ocupava com as letras, deste modo pretendendo participar na vida cultural da pequena cidade colonial e aí deixar a sua inconfundível marca, outorgando-se o papel de mentor e mestre das novas gerações, mesmo se à revelia das mesmas. Até que o conseguiu ao se meter com a promessa de poeta que era então um dos mais importantes literatos da actualidade” ”-riu-se o poeta predilecto da cidade). Sublinhe-se que o Machado (assim se chamava o magistrado inquisidor da jovem poesia islenha que, segundo sei, nada tem a ver em termos de laços de parentesco com o famigerado sargento Maschado, sim, aquele em cuja boca mijou Nhanha Bonbolon, nominho de Ana da Veiga, a líder da revolta de Ribeirão Manuel), em vez de optar pela censura pura, ainda que fundada em critérios alegadamente estéticos, de um poeta neófito (“como tantos outros jovens principiantes nas lides literárias que, na altura, tentavam dar nas vistas”-faz questão de sublinhar o poeta galardoado que era o principiante na poesia da altura) preferiu re-escrever os poemas do mesmo principiante e mostrar em praça pública (isto é, nas páginas do Boletim Cabo Verde) como é que o poema do estreante em literatura deveria ter sido escrito).
Acrescente-se ainda um pequeno parêntesis aposto não se sabe se por um defensor confesso - não do axioma literário acima referido, mas do axioma identitário também anteriormente referenciado-, ou se por um desses críticos mais cáusticos da mesma expressão tautológica (“não sendo nem cabo, nem verde (pelo menos na maior parte do ano no que se refere aos terrenos de sequeiro nas chamadas ilhas agrícolas, para não falar de algumas ilhas francamente áridas e escassamente dotadas de ridículas manchas de regadio ou de bosquejos de florestas), optou Gabriel Mariano por grafar Caboverde (numa única palavra e sem hífen), a um tempo continente e arquipélago culturais, pondo assim termo a eventuais paradoxos identitários e sentimentos de orfandade continental, desde sempre muito comuns entre os caboverdianos).
(“Neste caso mais propensos à busca do pai, ou do seu rosto abstracto e severo, do que da mãe (ou do afago afectuoso do seu ventre irrenunciável), por razões aliás mais do que compreensíveis, como seja a herança de bens simbólicos de grande relevância, como os apelidos que realmente contam porque se perpetuam nos nomes dos filhos machos e nos dos seus descendentes varões, e de parte da riqueza e das vivências acumuladas como património material e imaterial”-acrescenta o poeta predilecto da cidade, aliás, de tez branca, cor que lhe foi legada pelo pais, luso-descendentes, se bem que caboverdianos de gema).
Depois, criança ainda, alheio a todas as conjecturas existenciais, ignorante de todas as conjunturas sociais e das respectivas vestes coloniais, mas habitado pelo wanderlust que lhe foi precocemente inoculado pelo signo com que nasceu, António Pedro saiu pelo mundo.

                                                 1929-1938
                                       Tempos de regresso
Tempo de saudade.
Saudade ou sodádi? Mas existirão essenciais diferenças entre as duas curiosas melancolias em face da ausência e da perda da árvore da infância?
Chamamento da infância ou da paternidade?
Talvez da maternidade?
Talvez de um qualquer Pik’ lion, ainda desconhecido?
Certamente do Laranjo.
António Pedro regressa ao plateau.
E ainda do mar espanta-se: “Bé, o pó da ventania sufoca! /...lá na baía ou doca/…parece melhor/ embora fosse careca/a terra seca e adormentasse já» (novo parêntesis desta vez aposto por um indefectível defensor do passado verdejante da cidade da Praia (aliás, profusamente atestado nos coqueirais da sua orla marítima, na floresta da Achadinha, nos mangais do Taiti, nas hortas do Palmarejo), para além de irrepreensível adversário das teses propugnadoras da muito propalada inabitabilidade passada da cidade capital, alegadamente devido à natureza supostamente pantanosa dos vales que a circundavam, e, por isso, muito propiciadoras da propagação do paludismo, da cólera e de outras doenças infecciosas, particularmente mortíferas para os europeus recém-arribados: presume-se, por isso, que Março foi o mês da chegada de António Pedro à sua cidade natal, dada a ventania que então por aí grassava. Ventania essa, que, todavia, não pode ser confundida com a bruma seca dos dias de hoje, bruma seca essa recentemente importada de outras paragens sahelianas, ou, dizem as más línguas, trazida por aqueles que, há poucas décadas arribados à ilha maior, não prescindem da regularidade do seu pé de vento pois que se maravilham com um fenómeno que consideram integrante da sua personalidade e da sua identidade colectivas e, por isso, muito se vêm extasiando em dançar ao vento…).
Envolto pela poeira, António Pedro atravessou o cais (“sim! O cais de São Januário! Aquele que as bestas obtusas da Câmara Municipal mandaram demolir para acharem um traçado mais consentâneo e mais barato para a nova marginal”-Exasperou-se o poeta-jurista da cidade, conhecido defensor dos direitos humanos, amante de jazz e de wisky velho, e autor do primeiro manifesto que questionou as políticas culturais prosseguidas pelo regime de partido único, então recém-instituído. Entretanto, enquanto os ânimos se exaltavam à volta do martírio a que a cidade vem sendo sujeita por diferentes gerações de políticos e de técnicos, todos eles detentores de muito pouco afecto e de escassíssima empatia pela cidade, com a cumplicidade ou, pelo menos, com a silenciosa indiferença da população, martírio esse profusamente ilustrado na cada vez maior descaracterização da cidade e no crescente e cada vez mais indomável caos urbanístico que nela reina, António Pedro), lançou um olhar curioso e alongado pelos botes varados ao longo da Praia Grande de Chã de Areia e pela vizinhança emaranhada de coqueirais (sempre exóticos aos olhos de quem esteve, durante anos a fio, longe dos trópicos) que se estendia pelo Taiti e pela Várzea da Companhia, passou pelos antiquíssimos edifícios administrativos e pelos armazéns das alfândegas, subiu a rampa de São Januário, atravessou o coração da cidade alta e foi à busca do mistério dos rochedos de cá, encastelados nas penedias do cruzeiro, nas encostas do hospital provincial e do edifício da fazenda, ou refastelados sobre o vale do Laranjo e de outras ribeiras da freguesia de Nossa Senhora da Graça.
Adolescente luso, jovem luso-caboverdiano (“isso não, a expressão ainda não existia, nós os islenhos éramos todos portugueses e caboverdianos ou, melhor, portugueses de Cabo Verde! Também não existia ainda a possibilidade da dupla nacionalidade. Afinal éramos uma simples colónia ultramarina, ademais uma insignificante, mísera e famélica terra de Portugal de aquém e além mar, em consequência não dispúnhamos de nacionalidade própria. Por isso, maravilha-se agora o Orlando Pereira: nasionalidadi dja nu ten dja! Melhor seria dizer branco português de Cabo Verde crescido na metrópole?”-interroga-se o poeta predilecto da cidade) ou teen-ager santiaguense (“curioso”, acrescenta o vate mais celebrizado da cidade, “cai bem o termo teen-ager devido às ascendências inglesas do gajo, mesmo se, por alturas do seu regresso à sua cidade natal, ele já não fosse propriamente um teen-ager, mas um jovem adulto!”)?
Dicotomia cultural, estalagmites de lusitanidade ou penedos de caboverdianidade no imenso oceano das solicitações culturalistas cosmopolitas e das auto-sugestões identitárias, confluência dos afluentes das origens todas de tantas heranças nas águas da universalidade cuja foz seria a cidade da Praia, melancólica defronte do seu rio imaginário?
Enfim, português, português ultramarino, luso-africano, branco afro-lusitano, europeu meso-atlântico, minhoto retornado ou badio branco irreversivelmente postado no miradouro da sempre atraente e inapagável civilização europeia?
“Irreverente modernista era o que ele era, o António Pedro, de tantas e múltiplas ascendências, de tantas e diversas andanças!”-sufragou, com voz cristalina, se bem que póstuma, o único e convicto companheiro das lides plásticas e das tertúlias que encontrou no provincianismo beato e caseiro da sua cidade natal.
E continuava o caldeamento cultural e todos, ainda que a contragosto, imaginavam-se nadando no caldo pagão da miscigenação.
(“Embora a contragosto dos cronistas oficiosos e dos pensadores mais eurocêntricos e concêntricos na preservação, a todo o custo, da chamada missão civilizadora de Portugal em África e de que Cabo Verde seria, a um tempo, a ilustração mais eloquente e um agente privilegiado, e, por isso, mais renitentes à aceitação dos benefícios da mestiçagem cultural e dos efeitos positivos resultantes do diálogo civilizacional e da interpenetração de raças e culturas, de que Cabo Verde é uma pequena, mas bela ilustração”-iludia-se, anos mais tarde, um passante da cidade a propósito do caldeirão de ensaio da mestiçagem que, segundo esse escritor metropolitano tornado caboverdiano adoptivo, seguramente no plano da maioritária escrita ficcional, e adepto convicto e divulgador prolífero das teses então em voga nos círculos intelectuais dominantes no arquipélago, terá sido e continuaria a ser Cabo Verde até à completa crioulização da ilha de Santiago mediante a extirpação dos resquícios de áfrica (como a tabanca, o batuque, a magia negra, a renitência messiânica dos rabelados) que, lamentava-se em desencontrados sentimentos de desprezo, respeito e despeito, ainda sobreviviam nessa ilha meridional de Cabo Verde e teimavam em marcam o rosto mais visível da sua cultura ou, melhor, a face mais típica da ilha sociológica, outra, que é o seu hinterland, a qual se encontraria num estádio de evolução cultural (isto é, de assimilação à cultura europeia dominante) muito desconforme do estádio de aceitação (o mais avançado, como é sabido, no processo de aculturação à civilização europeia) a que chegaram as nossas restantes ilhas, com destaque para as de barlavento(e aqui entravam as muitas citações dos mestres claridosos, com excepção de Jorge Barbosa que, sendo natural e profundo conhecedor da ilha de Santiago, não alinhava nestes modos de ostracização e de negro-africanização das suas expressões culturais afro-crioulas mais distintas).
Com a topografia da sua pequena cidade natal soterrada na mais recôndita loca da memória, António Pedro vivia com íntima ansiedade o seu regresso, que sabia ser fugaz, à terra natal e o reencontro com a sua vida quotidiana, com as suas pulsões, com as suas expressões idiossincráticas, com as suas manifestações culturais mais típicas. E era firme a sua convicção, funda a sua intenção e inabalável a sua vontade de penetrar-lhes o âmago, de dissecar-lhes o espírito, de entender-lhes o sentido, de neles se envolver para melhor se envolver com as gentes das ilhas, seguramente futuras personagens que teriam que desfilar e transfigurar-se na sua escrita, na sua pintura, no seu teatro, nas suas mãos inventivas. Imensa era a força que o propulsava na contínua superação das barreiras que se iam erigindo na atmosfera elitista e centrípeta que então dominava e sufocava a cidade-repartição, em cujas verdejantes imediações tinha nascido e passado a primeira infância. Tantas as suspeições inoculadas pelos preconceitos eurocêntricos dominantes, tantas as barreiras engendradas pelo desconhecimento do meio e por tantos anos de ausência!
Aproximou-se, pois, da ilha e dos seus moradores, a mente inundada de dúvidas, embora com o firme propósito de não se diluir nos usos e costumes das populações das ilhas, mesmo daquelas dos estratos sociais mais ilustrados nas coisas da cultura moderna ou das fontes clássicas da civilização europeia. Convinha-lhe preservar a sua actual personalidade moldada em tempos e espaços vários da Europa, nos quais, aliás, se tinha sentido completamente em casa, depois de um breve período de sensação de vazio e espanto adveniente da falta do sol e da poeira que agora o circundam e quase o sufocam. O papel que se reservara era o de tornar-se cúmplice das gentes das ilhas. Um cúmplice obviamente aberto a todas as dimensões do seu ser ou, pelo menos, àquelas dimensões que lograsse perscrutar. Com o distanciamento necessário à sua melhor compreensão, com o distanciamento que, de todo o modo, lhe foi outorgado pela longa ausência e, para sermos claros, com o distanciamento que se esperaria de um branco (algo mestiçado, embora), descendente de famílias possidentes e que, embora ainda moço, se foi dotando de invulgares conhecimentos do mundo e das suas mais recentes revoluções estéticas, mormente nos domínios das artes plásticas, literárias e dramatúrgicas modernas, ainda quase inteiramente desconhecidas nessas ilhas abandonadas. Pretendia, pois, envolver-se com a ambiência parda e a atmosfera luminescente que dele se aproximavam pachorrentamente e transportar a ilha e a cidade, e com elas as suas gentes, e os seus rostos, e as suas almas, para as insondáveis dimensões das saudades futuras que se haveriam de alimentar das imagens que agora se petrificavam na arte que, ainda tímida, se escondia na sua retina.
E, sôfrego, lançou-se todo e inteiro às novas sensações.
Sem falsos temores, sem fingimentos, sem ressentimentos, sem pruridos, sem outras congeminações que não as de traduzir em arte o que os olhos viam, o corpo sentia, a mente dissecava, a alma aplaudia, rejeitava ou condenava à indiferença de coisa outra, dos outros, sem outro vínculo com ele, se não o de apresentar-se como matéria de reflexão artística.
No Diário: Vi um batuque/ baque bacanal/-pobres selvagens/e a morna/ morna/bole mole/ já velha …”. Ironia versilibrista. Modernismo jorrando, lívido, estrangeirado e cara-pálido, todavia irreverente e livre, liberto das babas do ultra-romantismo e da grandiloquência camoniana estranhamente acasalados nas hespérides (essas perdidas ilhas arsinárias!) com os restos do fim do mundo!
Ó desenvolvimento separado na separata que é o puro sonho ou pesadelo automático!
Entrementes, escrevia um nativista: “o badio porque o mais africano e negro dos caboverdianos é o culturalmente mais atrasado e, obviamente, o menos civilizado de todos eles”. Curiosamente, esse nativista tinha-se envolvido numa das mais importantes polémicas estéticas que tiveram lugar em Cabo Verde, quando nos inícios dos anos trinta do século se posicionara contra a titubeante irrupção do modernismo literário em Cabo Verde, argumentando que o verso devidamente cingido na rima, na métrica e em outras formas fixas era a única indumentária adequada à poesia e desqualificando os cultores modernos do versilibrismo como perigosos bolchevistas literários. Assinale-se que, nesta expressão acusatória (“bolchevistas literários”) se sintetizam todos os paradoxos e ambivalências nos quais navegava a geração dele contemporânea. Nesta óptica, ele terá sido o exemplo mais acabado das contradições e das ambiguidades que perpassavam os literatos e demais letrados do nativismo político, como atestam as suas profundas convicções de homem republicano de esquerda e progressista admirador de Marx, o mestre venerando, e membro encartado do Partido Socialista Português, e as suas celebradas capacidades de exímio émulo neo-clássico do autor de Os Lusíadas – se bem que um tanto serôdio - da poesia camoniana e de intrépido cultor e defensor do idioma caboverdiano, se bem que nas margens delimitadas pela sua filiação neo-latina. É, igualmente, assim que ele se evidenciou como co-precursor tanto do culto da Atlântida (transmutada, por vezes em labor simultâneo com José Lopes, em Hespérides, Jardim das Hespérides ou ilhas arsinárias) e da esquizofrenia cultural crioula, oscilante entre o amor da mátria natal e a veneração da pátria imperial e monumental dos descobridores, missionários, letrados e, mais de que tudo, de Camões, o seu símbolo, o seu canto, como também da África mediterrânica, faraónica e esfíngica, todavia sempre venerada como berço da civilização ocidental, e, a contrario, por exemplo, da démarche mais tarde empreendida por Cheikh Anta Diop, em contraponto à África negra, tida por pagã, animista e selvagem, habitada por criaturas tisnadas, abandonadas às trevas da ignorância e, por isso, necessitadas das luzes da civilização cristã e ocidental, quiçá somente passíveis de serem alcançadas mediante a obra do colonizador europeu e seu mais proficiente cultor, o colonizador português, como consideravam e advogavam em altos e, por vezes, impacientes brados os filhos islenhos da mãe-pátria lusitana, nossos ancestrais e respeitados compatriotas.
Oh! Tempos de múltiplos pressentimentos e de muitos ressentimentos!
Tempos de todas as exaltações! Tempos de veneração do vulcão da ilha das lavas cuspindo orgulho e rectidão na língua materna! Tempos da louvação da altivez das criaturas e da sua limpa emersão das lendas, das frutas douradas, dos tempos antiquíssimos das batalhas memoráveis e dos monstros vencidos!
Tempos de culto da língua pátria dos poetas da expansão lusa!
Tempos de ressurreição da pele negra insurrecta do marechal tricolor das Antilhas e de outros lugares de liberdade dos irmãos de raça e de desgraça!
Tempos de subjugação ao abecedário da vassalagem e aos labirintos da sua decifração, com o corpo escuro circunscrito à amnésia e à quotidiana sublimação do cárcere e da carestia em moradas outras, dos deuses antigos, dos deuses nossos contemporâneos, estranhos, estratificados.
Para, alguns anos depois, arrematar um outro génio da insularidade, sedentário da província do meio do mar, do lar insular modelar do nosso processo supostamente acelerado e exemplar de aristocratização cultural e, em vida, sedento das raízes do seu torrão natal, e das outras, recém-adquiridas e devidamente transladadas para o sopé do monte verde e aí para sempre sepultadas com os seus futuros restos mortais com vista privilegiada para o Porto Grande e para os navios demandando o norte e/ou o nor/noroeste dos mares do Atlântico. “Precisamente a ilha de Cabo Verde (Santiago) que se encontra numa fase mais atrasada de evolução aculturativa, está mais avançada linguisticamente do que as outras, embora apenas no aspecto fonético”.
Oh! Tempos de busca e de auto-diluição!
Oh! Tempos da caboverdianidade espartilhada entre a lusitanidade, a luso-crioulidade, a afro-crioulidade e a africanidade!
Oh! Tempos de muita inflexão e de pouca penitência!
A terra jazia, entretanto, inerte no seu diálogo silencioso com os parceiros, mas também com os morgados, com os comerciantes, com os seminaristas, com os professores primários.
Inadaptado e louco modernista era o que era o António Pedro.
“Louco e bendito modernista é o que ele é", corroborou, ainda em tempo útil, Jaime de Figueiredo, comovido e entusiasmado, a Jorge Barbosa, discípulo hesperitano, então muito dado às brumas da antiguidade greco-latina devidamente envoltas em rima e métrica clássica.
“Oh azuis, por demais azuis céus que me ofuscam o brilho castanho e o pardo verde da terra! Oh céus sem pátria!”.
As palavras continuavam a crepitar incongruentes, espartilhadas entre o plateau e os subúrbios, entre a saga aventurosa dos sonhos loiros libidinosos e os ventres proeminentes, infestados de lombrigas, das crianças em tempos de miséria e de muita fome, sideradas ante o casebre abandonado, o arco de ferro do menino enferrujando-se com as brincadeiras desvanecidas pelas estiagens e o desassossego do mar sempre, sempre dentro dele e dos caboverdianos anónimos, humildes, seus irmãos.
“Este homem é um Nero e pretende atear fogo à cidadela das nossas tradições mais civilizadas”-clamaram os estudantes radicados do outro lado de onde sopra o vento, secundados pelos neuróticos moradores da beira-mar onde, com estonteante regularidade, por sua vez, baila o vento.
“E traz à praça pública as nossas chagas, pois que de chagas se trata quando se nomeia o batuque, e a terra seca, e a preta. Oh! Vergonha do mondrongo-badio insultando herético o nosso fado que é a morna! Oh! Nefasto agente das artes degeneradas!”.
E, destemperados, congregaram-se em torno da raiva e do ódio, embevecidos com o auto-da-fé que acabavam de efectuar, e com as cinzas das primeiras letras pós-hesperitanas escritas e impressas em terras de Cabo Verde com o selo tipográfico da Imprensa Nacional de Cabo Verde, sedeada na cidade da Praia.
“Bendito modernista é o que ele é, esse cultor da liberdade poética e da sátira versilibrista!”, exclamou Jorge Barbosa e pôs-se febrilmente a escrever versos libertos da serôdia coacção da rima e da métrica e a debitar poemas sobre os mares caseiros da praia negra e da saragaça, o cutelo dos picos após a chuva, as negras e mulatas e respectivas ancas sensuais e dançarinas no pilar do milho, a estiagem, as meninas portuárias de S. Vicente, a ambiência neurasténica da ilha do Sal, os quinhentos anos de desventura e abandono do balanço final da lusitanidade colonial, e, impaciente com os tempos da maturação do tempo, pôs-se a congeminar destemidos versos panfletários destinados à memória futura das novas gerações contestatárias e nacionalistas. Versos esses que, embora clandestinos, eram recitados de forma sorrateira em muito restritos círculos de confrades, amigos e admiradores.
Entretanto, o pilão continuava retinindo nos quintais, e nos terreiros sagravam-se os ritos funerários e mandavam-se recados aos finados e ao senhor da chuva e, assim, prosseguia a trágica edificação da identidade do povo da ilha, do arquipélago do verde renitente e do diário milagre da sobrevivência.
Alguns anos mais tarde, um outro poeta, também ele branco nascido sob o signo de sagitário no plateau, mas nele criado até à idade adulta, sentado num café de Lisboa, assediado pela doença, pela saudade e pelo inverno, dessendentava-se nos sequeiros de Mato Engenho e de Dàcabalaio e sonhava um outro amanhã para as suas distantes e amadas ilhas, e as suas levadas enormes, e os seus trapiches pilando, e o seu cheiro de melaço vivificando as ânsias de felicidade na terra finalmente nossa, do povo das ilhas (“estás a atribuir-lhe de forma abusiva essa última expressão, consabidamente da lavra clandestina de Manuel Duarte. O António Nunes era simplesmente um poeta neo-realista que transitou do ultra-romantismo para o cânone claridoso salpicando-o dos ritmos de pilão e de outros sinais afro-crioulistas por influência de Teixeira de Sousa e da poesia negritudinista do mulato santomense crescido na diáspora portuguesa da capital do império, Francisco José Tenreiro de seus nomes civil e poético completos. As leiras de terra que serão nossas inserem-se mais num projecto de reforma agrária de teor socialista, ou, melhor, democrático-popular, como propugnavam os comunistas portugueses, companheiros de jornada de Teixeira de Sousa que, aliás, introduziu António Nunes nas tertúlias neo-realistas do Café Gelo de Lisboa, do que numa visão independentista, como, aliás, se viria a verificar com a postura titubeante do romancista foguense quanto a esta última questão, não obstante o seu entranhado anti-fascismo e o seu inquestionável progressismo político-social, primeiramente de cariz mais comunista e revolucionário, depois de teor mais socialista e reformista ”- interpelou-me, visivelmente incomodado, o poeta-mor, ex-preso político e combatente da liberdade da pátria. Aliás, não te esqueças desse outro poeta caboverdiano radicado na metrópole e muito ligado aos círculos neo-realistas da poesia do (anti) bloqueio. Na verdade, nascido na ilha da Boavista, foi levado para Lisboa ainda de tenra idade, tendo aí crescido e morrido, feito homem e poeta navegante entre o seio familiar crioulo caboverdiano e a ambiência circundante europeia e cultor de duas poéticas, complementares nas temáticas e nas sensibilidades trazidas à cena. São dele a Ilha e a Solidão e Missiva, de incidência caboverdiana, mas também os muito celebrizados Pátria, Lugar de Exílio e A Invenção do Amor, de temática predominantemente portuguesa e/ou universalista, mas sempre de altíssimo teor libertário e anti-fascista. No progressivismo residirão os seus pontos de encontro com o poeta Sagitário, saudoso da cidade natal, longínqua e pequena).
Porque sagitário morreu o demiurgo do poema de amanhã esquizofrénico num hospício da pátria monumental da miséria desvalida do povo, enclausurado no coração do império.
Santiago continuava especado entre o mar e o pilão, entre o sul e a estiagem, aguardando pacientemente, meses atrás dos meses, anos atrás dos anos, a estação das águas, das sementeiras, das mondas, das remondas, das trismondas, das colheitas dos risos, dos frutos, da alegria,
Os cavalos relinchavam continuamente em Santa Catarina, as folhas dos poilões rumorejavam entre Setembro e Março, o azul entranhava-se à distância e aos ecos ressoando entre as colinas sob o profético deambular de Nhu Naxu.

                                          1938-1966
               Tempos de outros regressos e de outras partidas
Veio o António Pedro na sombra do nacional-sindicalismo, do surrealismo, do periodismo e do Marechal Carmona (então presidente da pseudo-república portuguesa do Estado Novo em exercício de soberania por terras ultramarinas), viu a claridade e sorriu satisfeito.
O arquipélago tornou-se com o império a retaguarda do mundo. Tudo cheirava a pólvora e holocausto. Crioulos caboverdianos nascidos afro-americanos ou latinos do Mississipi desembarcavam nas costas de Dunquerque. Judeus de Cabo Vede agarravam-se ao Sião de Achada Riba, enquanto António Pedro proferia convincentes ditongos de liberdade entre o nevoeiro de Londres.
O arquipélago tornou-se, contra o império, a retaguarda da voz. E os corpos islenhos calcinados entre os oboés, descobriam-se escuros, castanhos e libertários.
António Pedro habitava ainda as muitas moradas das diásporas.

                      De 1966 até à eternidade
Morreu o pai minhoto, escriba assíduo na revista maior da província/colónia dos seus tempos praianos, veio e viu como a terra ainda era seca, de um continuado odor castanho salpicado de verde.
Foi-se e nunca mais voltou, o sagitário de tantas promessas não cumpridas, o homem-teatro de tantas máscaras assumidas quiçá para melhor perscrutar as diversas tonalidades da dor e as diversas matizes da paixão, o artista plástico e o poeta surrealista que, desprevenido, também se embebedou da terra nua e árida e das suas imponentes colinas azuis, e se fez eco dos rochedos de Laranjo e da Serra da Arga, ao som improvável da morna, que, serenada em serenata, teimava em arrebatá-lo para o transe de uns desajeitados passos de maxixe.
JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA
Praia, 21 de Julho de 1987 (versão original publicada na revista Fragmentos, de 1987)
Revisto e refundido em Lisboa, aos 16, 17, 20 e 21 de Dezembro de 2010, aos 30 de Janeiro, e aos 1, 6 e 9 de Fevereiro de 2011