terça-feira, 10 de julho de 2007

Malangatana Ngwenya Valente

Estar-se no sítio como moçambicano, como africano, e fazer com que as pessoas conheçam mais um pouco Moçambique:
Malangatana Ngwenya Valente

Para o meu primeiro texto sobre Moçambique não poderia ter deixado de escolher o pintor da Matalana, Malagantana Ngwenya Valente. Nascido em 1936 numa região de etnia ronga, sendo que o apelido Ngwenya, significa jacaré, venha da África do Sul, de seu pai, que era de etnia zulu, Malangatana talvez seja hoje o maior pintor da história moçambicana.

A obra deste artista apresenta-nos e obriga-nos a mergulhar entre seres mitológicos assustadores e homens, ora híbridos, perdidos, comprimidos no espaço asfixiante da superfície pintada a revelar-nos a irracionalidade do colonialismo, a desumanidade das guerras colonial e da desestabilização em cores contrastantes e impactantes. Renascem figuras metamórficas, monstros que permeiam o imaginário do moçambicano, violentado com tantos anos de guerra. Mia Couto assinala:

Estes rostos repetidos até a exaustão do espaço, estas figuras retorcidas por infinita amargura são imagens deste mundo criado por nós e, afinal, contra nós. Monstros que julgávamos há muito extintos dentro de nós são ressuscitados no pincel de Malangatana.
Ressurge um temor que nos atemoriza porque é o nosso velho medo desadormecido. Ficamos assim à mercê destas visões, somos assaltados pela fragilidade da nossa representação visual do universo. (...)
No seu traço está nua e tangível a geografia do tempo africano. No jogo das cores está, sedutor e cruel, o feitiço, (...)
Estes bichos e homens, atirados para um espaço tornado exíguo pelo acumular de elementos gráficos, procuram em nós uma saída. A tensão criada na tela não permite que fiquem confinados a ela, obriga-nos a procurar uma ordem exterior ao quadro. Aqui reside afinal o gênio apurado deste ‘ingênuo’ invocador do caos, sábio perturbador das nossas certezas.

O feitiço, 1962.

Os seres representados são tantos, diversas alegorias a conduzir nosso olhar. Antepassados e figuras fantasmagóricas misturando-se, fragmentadas como a memória do homem moçambicano distante de suas raízes primeiras após tantos séculos de colonização e supressão de suas manifestações culturais. Frederico Pereira comenta:

Essa fragmentação, onde se encontram seres múltiplos da mitologia ordinária e da mítica pessoal, não evolui de facto em direcção a espaços organizados e organizadores. São esses espaços que permitem ao criador e ao Olhar do receptor encontrar-reencontrar na Obra uma fala que, ao invés de caótica, mas será polifônica. Aí se intui a presença, com efeito, de seres-em-diálogo, entre si e connosco. Seres-em-diálogo que dizem ainda: ‘Isto sou eu; isto é a minha terra; isto é a minha Cultura-Mãe’.

O poço sagrado, 1985.

É a maneira como Malangatana consegue descobrir soluções plásticas para ilustrar e, conseqüentemente, apresentar, denunciar a condição de seu povo, são estes fatores que fazem dele um artista maior. Trata-se da forma que arranja e re-arranja os elementos pictóricos que, logo, universaliza a sua obra ao olhar do espectador e “faz recordar-nos assim aquilo que os nossos tempos nos querem ir conduzindo a esquecer”, como observou Frederico Pereira.

Monstros grandes comendo monstros pequenos, 1961.


É a consciência de ser moçambicano, a afirmação dos valores de sua terra contra a opressão da ditadura salazarista, metonimizada pela PIDE, que faz com que o artista explore a exaustão as figuras fantasmagóricas e dilaceradas que compõem o fragilizado e amedrontado universo onírico de Moçambique. Carmen Lucia Tindó Secco lembra que:

Há uma ausência de vazios que tenta suplementar as lacunas provocadas pelo processo de neutralização das alteridades, ao longo de séculos de submissão. Animais e homens. xicuembos (espíritos de antepassados) e shetanis (figuras mágicas e fantasmagóricas), lagartos repulsivos (os lumpfanas, que, segundo lenda das tradições moçambicanas registrada por Henri Junod, foram os responsáveis pela transformação dos homens em seres fadados à morte e não mais passíveis de ressurreição) e ngwenhas (jacarés com dentes afiados), seres híbridos e pássaros míticos como o ndatli (conhecido como o galo do céu, a ave do relâmpago e do trovão), se entrecruzam em metamorfoses, algumas vezes monstruosas, desvelando temores profundos, enraizados na alma do povo apequenado por tantas violências sofridas, materializadas por afiadas e ferinas garras.

É exatamente por ter a habilidade necessária para “sem perder a qualidade estética, pelo contrário, Malangatana começa a integrar no seu imaginário aquela ligação dos seus monstros – sexuais, tradicionais – com o monstro real: o colonialismo”, conforme observou Júlio Navarro e tinha percebido Eduardo Mondlane, presidente da Frelimo, fazendo-o a seguinte recomendação segundo palavras do próprio Malangatana:

(...)Em abril de 1961, essa foi a minha primeira exposição individual. Esta exposição coincidiu também com a vinda do sr. Eduardo Mondlane, que eu conheci pessoalmente, a ele e à mulher. Falei com ele e até pedi se ele não me podia dar uma bolsa para ir para os Estados Unidos. Nesta altura, ir para a América, ou sair dali era qualquer coisa que seria importante. E ele aconselhou-me a que não saísse daqui, porque tinha uma pintura que devia continuar a beber nas minhas raízes aqui, no aspecto de etnografia, de sociologia... Eu não entendi, de facto isso. Só compreendi mais tarde. Mas de qualquer modo obedeci, fiquei.

Esta referência às raízes ronga da Matalana foi realçada por vários que apoiaram o pintor nos primeiros anos de atividade artística. Malangarana cita seu amigo, o arquiteto Miranda Guedes.

Comecei por pintar uma pintura de paisagem, um pouco daquilo que se chamava retrato; não chegava a ser um retrato fiel. Continuei com naturezas mortas, mas depois comecei a dedicar-me à pintura decorativa, que foi provocada pelo facto de o arquitecto Miranda Guedes me ter consignado a pintar a contos, contos tradicionais. Aliás, quando ele me tirou do Clube de Lourenço Marques em 1960, a primeira coisa que ele faz é mandar-me de férias para junto de meus pais, para me reambientar, e trazer alguns contos para poder pinta. Isso fez com que a minha pintura, de facto, fosse mais para o sentido decorativo.

Na simbiose entre seres mitológicos e religião, depreendemos o caminhar na linha fronteiriça entre um mundo e outro a partir do caminhar do artista: tinha uma tia curandeira, da qual foi ajudante por algum tempo, ter estudado na escola da missão suíça e aprendido a língua ronga e todo o conhecimento tradicional aliado ao ensino da leitura, e posteriormente o ensino em uma escola católica onde não era permitido o uso das línguas locais e valorizado o ensino religioso. E é por subverter o espelhamento da cultura dominante que sua obra aproxima-se do barroco, mais precisamente do neobarroco, através da crítica à imposição do racionalismo ocidental efetuado pelas colônias, mas que não se concretizava plenamente diante do hibridismo e mistura das culturas várias que conviviam nas áreas colonizadas. Carmen Lucia Tindó Secco argumenta:

Na poética de José Craveirinha e na pintura de Malangatana Valente a dimensão neobarroca assume contornos cósmicos, intensamente atrelados a uma busca telúrica das raízes moçambicanas, apagadas, em parte, pelas práticas coloniais etnocêntricas. O erotismo neobarroco do poeta e do pintor se manifestam como jogo, revolta e indignação diante da consciência da fratura em relação às matrizes africanas.

O conjunto de Sevilha (3), 1990.

Diante do exposto, são representações como a presença de um feiticeiro portando um crucifixo, mostrando a mesclagem das culturas do colonizador e do colonizado que são para mim, o que atrai, instiga, incomoda e faz pensar; seria o punctum da imagem de Roland Barthes:


Nesse espaço habitualmente unário (a fotografia), às vezes (mas, infelizmente, com raridade) um “detalhe” me atrai. Sinto que basta a sua presença para mudar minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho, marcada a meus olhos por um valor superior. Esse “detalhe” é o punctum (o que me punge).

A conscientização social cresce com mais rapidez quando conhece o poeta José Craveirinha, artista com o qual adquire intensa amizade e suas artes dialogarão no decorrer dos anos. Craveirinha foi um poeta engajado na luta contra o colonialismo, identificamos várias fases na sua poesia que vão desde temas que resgatam os elementos culturais de sua terra, a negritude, o erotismo (comum aos dois artistas), a denúncia da violência colonial nos versos de Cela 1 ao lirismo de Maria, obra em homenagem à esposa falecida.

Evidente que esta atuação subversiva em plena ditadura salazarista não passaria impunemente pela PIDE, a polícia política. No percurso de ambos por um país livre haveria a opressão, a tortura, a morte, porém nada mais faria com que a convicção e esperança dos que estavam lutando desanimasse. Os versos do poeta da Mafalala retratam a afirmação dos combatentes:

Ao bom evangelho dos cassetetes
ouvir avoengos pássaros bantos
cantarem algures nos ombros
velhas melodias de feridas.

E depois
à sedutora persuasão das ameaças
pela décima segunda vez humildemente
pensar: Não sou luso-ultramarino
SOU MOÇAMBICANO!

Será suficiente esta confissão
sr. chefe dos cassetetes
da 2ª brigada?

Chico Feio, o espancador da PIDE, 1965.

As prisões aconteciam, Malangatana conta a sua experiência no cárcere:

(...) Mesmo na altura de 1961/62 tinha uma actividade política muito grande. Foi quando fiz parte do grupo em que o Craveirinha trabalhava clandestinamente, depois em 1963/64 as atividades crescem, também com o Luís Bernardo Honwana e outros. E somos presos, com o Rui Nogar, depois de termos contactado guerrilheiros que tinham vindo a Lourenço Marques para criar a Quarta Região Militar. Fomos presos juntos, alguns em celas diferentes.
(...)
fiquei pouco tempo na prisão comparado com muitos correligionários que ficaram de quatro a sete anos. Eu fiquei dezoito meses, (...) A base do julgamento foi pertencermos, sermos simpatizantes, da Frelimo. As provas que haviam foram que, de facto, nós tínhamos reuniões com guerrilheiros. A PIDE tinha a sua rede de informações, tinha acho que acompanhado a vida dos guerrilheiros desde a saída deles de Dar-Es-Salam, tinha um conhecimento mais ou menos exacto sobre eles.

Encarcerado, produz, em condições adversas, a série desenhos da prisão, segundo Mario Soares:

Testemunho e memória, esses desenhos, embora com recurso a diferentes técnicas, necessariamente limitadas pelas circunstâncias, inserem-se claramente no que de mais essencial constitui a estética desenvolvida pelo Artista.

Ora violentos – a violência praticada na prisão; ora sonhadores – o sonho de liberdade de qualquer preso; ora com recurso às suas mais fundas origens culturais, as da sua aldeia e do seu povo; ora evocando as famílias e as tragédias quotidianas; ora virados para o futuro imaginando o seu país livre e independente esses desenhos aparecem-nos, na sua diversidade, como um claro retrato da vida e dos sonhos de Malangatana e dos seus companheiros de prisão e de luta.


A violência fragmenta a vida do moçambicano que recorre ao espaço libertador dos sonhos para reduzir o sofrimento não somente seu, mas das esposas, das crianças, desorientadas com a falta de contato com a figura paterna, e pinta versos denunciando a situação:

“A Lua brilha
e a estrela
canta um poema triste
do céu que é enorme
do mundo que é vasto
das crianças que esperam
papá que nunca chega

A Lua brinca no céu e salta
e as crianças calaram as vozes
[e perguntam:
Mamã, o papá quando chegará
para nos contar as mil histórias”

Kenguelequezé, 1965.

Dono de um expressionismo acentuado, Carmen Lucia Tindó Secco define as várias fases percorridas pelo pintor da Matalana:

Expressionismo crítico – influenciado pelo neo-realismo – que efetua a denúncia do colonialismo, dos trabalhos forçados, dos cruzamentos culturais resultantes da imposição do cristianismo, das injustiças e misérias presentes no cotidiano dos bairros de caniço de Lourenço Marques;

A do expressionismo marxista, onde se depreende um didatismo pictural em prol da luta de libertação e dos ideais da revolução;

Julgamento de militantes da Frelimo, 1966.

A do onirismo cósmico e telúrico em que predominam o encarnado, os elementos do universo mítico moçambicano, os monstros, as unhas, os dentes, enfim, o horror e o sangue próprios de um contexto de guerra e violência;

Onde está a minha mãe, meus irmãos e todos os outros? 1985.

A do surrealismo cósmico, em que o azul substitui o rubro das telas, tingindo as figuras fantasmagóricas do imaginário ancestral que se retorcem à procura das origens, da paz e dos antigos sonhos.


O Ritual Nocturno, 1985.

Devemos acrescentar que o expressionismo de Malangatana apresenta características formais que o diferem do expressionismo de origem alemã. Notamos em sua pintura figuras e formas deformadas e distorcidas, cores vibrantes descompromissadas com a verossimilhança e o sentimento dramático de revolta com os anos de supressão da cultura de seu povo em telas viscerais a escancarar a agonia de um país que se quer livre. Todavia, o expressionismo praticado por ele carrega em seu traço a linha de contorno, o que seria contraditório para os alemães do início do século XX, pois estes eliminaram através do gestual livre, espontâneo e descompromissado, o que poderia ser uma espécie de controle para o que se deve expressar, daí chamo esta maneira de expressar-se de expressionismo matalanagantana.

Com o excesso de alegorias apresentados nas suas obras, Malangatana não problematiza a questão cara aos modernistas entre a relação figura/fundo, pois ao preencher toda a tela com incontáveis faces suas telas apresentam planaridade única, em um confuso e fragmentado labirinto a procura das próprias raízes sufocadas no decorrer dos séculos. A planaridade realizada por ele aproxima-se da técnica do all-over, desenvolvida por Jackson Pollock no apogeu do expressionismo abstrato dos anos 1950, com o seu preenchimento homogêneo da superfície pintada, como destacou o crítico americano Clement Greenberg ao falar da nova pintura à americana.

O Conjunto de Sevilha (9), 1990.

Expressionista e surreal também. Assim são suas formas zoomórficas dos seres mitológicos, e encontramos paralelos com o Pablo Picasso da época da Segunda Guerra Mundial e as pinturas infestadas de criaturas híbridas que enchiam de medo e horror medievais o homem europeu em plena Renascença retratadas por Hieronymus Bosch, assumidas por ele:

(...) já nos anos 60, 1962, 1963. comecei a ver também pinturas de Picasso... Do Bosch, de quem tive uma grande influência, quando vim a simbiosar aspectos mitológicos com a religião... convencional, digamos.

Ao falar de Moçambique em suas pinturas, Malagantana, neobarrocamente, subverte a ordem estabelecida e questiona o legado imposto pelo colonizador com uma ruptura estética a elevar em cores, formas e tintas as danças, feitiços, mitos... estórias contadas em telas de e para Moçambique.

Malangatana:
“A pintura pode descrever várias coisas que acontecem na vida política e pode ser utilizada para ilustrar aquilo que acontece. Por exemplo, pode denunciar factos. Eu uso a pintura, ainda hoje, para denunciar as atrocidades que acontecem hoje na África Austral, em Moçambique sobretudo. Da mesma maneira que pintei coisas que falavam das atrocidades da situação colonial, hoje falo dos massacres, hoje falo das mulheres cujo os seios são cortados, das crianças que são mortas, e também utilizo a pintura par lutar contra o apartheid.

(...) Mas continuo, de facto, a não ignorar aquilo que acontece ao ser humano em Moçambique. Eu não estou fora da sociedade moçambicana, e não deixo também de ter uma pintura que seja crítica em relação àquilo que eu considero injusto. Ela fala, conta coisas também. Isso, no sentido de fazer com que, afinal, o homem moçambicano se vá vendo através da minha pintura e, no caso da poesia, na do Craveirinha e do Rui Nogar.”


Fontes:
BARTHES, Roland. A câmara clara. Ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1984.
CHABAL, Patrick. Vozes Moçambicanas – literatura e nacionalidade. Coleção Palavra Africana. Editora Veja. Lisboa, 1ª edição, 1994.
FERREIRA, Gloria (ORG.). Clement Greenberg e o debate crítico. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2001.
NAVARRO, Julio (ORG.). Malangatana – de Matalana a Matalana. Catálogo da exposição no Instituto Camões, Portugal.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Craveirinha e Malangatana: cumplicidade e correspondência entre as artes. In: A magia das letras africanas. ABE Graph Editora. Rio de Janeiro, 2003.
SOARES, Mario. Texto da exposição virtual Malangatana: desenhos da prisão. Acessado em
http://www.fmsoares.pt/ no dia 20/10/2006.

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