O escrutínio deste sexo fundo com palavras: a poesia de Luís Carlos Patraquim
O pós-independência moçambicano (1975) apresentou uma euforia em relação às letras. Várias publicações inéditas até então foram lançadas, livros reeditados e foi criada a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) que lançou várias obras e novos nomes. Nesse contexto, surge um nome que se tornaria emblemático na literatura do país, Luís Carlos Patraquim, com o livro Monção (1980), apontaria para os novos paradigmas que a poesia moçambicana passaria a percorrer na nova década.
Com o país independente e a distopia causada pelas promessas não cumpridas com a revolução e a conseqüente guerra civil entre a FRELIMO e a RENAMO, os poetas começam a abandonar a temática de combate e exaltação dos tempos revolucionários e, segundo Carmen Lucia Tindó Secco:
Reivindicam uma nova poética, não mais revolucionária apenas no sentido ideológico e social, mas também no plano individual, existencial e literário. Essa geração contemporânea propõe uma poesia capaz de cantar o amor, os sentimentos universais. (1)
Dentre os que acompanharam Patraquim naquele momento, podemos citar Mia Couto (Raiz do Orvalho, 1983), Eduardo White e Nelson Saúte, sendo que os dois últimos ligados à revista Charrua (1984), importante publicação que ajudou a consolidar os novos caminhos da poesia moçambicana.
Em Monção, vemos os poemas tratarem daquilo que é existencial, não apenas uma busca às emoções interiores, mas, também, recapturar as raízes perdidas por séculos de opressão e medo, daí a necessidade de cantar o amor, a imaginação e os sonhos em um constante exercício metapoético, com metáforas inusitadas e dissonantes, que buscam no universo onírico a multiplicidade cultural moçambicana esfacelada pela ação colonizadora. Há também a presença da intertextualidade. Carmen Lucia Tindó Secco comenta esta passagem:
No poema Metamorfose, notamos os versos de José Craveirinha, como já foi demonstrado por diversos estudiosos, e a Carlos Drummond de Andrade:
“quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento no mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade
(...)
mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
(...)
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo”
Embora anuncie a “monção” e a “morte do Adamastor”, metáforas da independência e do fim dos tempos coloniais, o poema, convocando versos de Craveirinha e Drummond, procura exorcizar o medo, há séculos, instalado em Moçambique. Consciente das mutilações sofridas por grande parte do povo, o sujeito lírico adverte (...) para a preemência de se restaurarem as emoções individuais bloqueadas pelos anos de arbítrio exacerbado, exaltando, então, a importância de cantar o amor, o desejo, os sonhos, a imaginação. (2)
Uma poesia que recorrerá ao surreal, pela livre associação de imagens apresentará a violência da realidade vivida no país, reativando o onírico presente no imaginário coletivo como forma de resistência para exorcizar o medo e trazer os sonhos adormecidos do moçambicano. Assim, recorrerá às raízes primevas na reconstrução da sua História e perceberemos as referências ao Índico, aos árabes e indianos entrecruzando-se às raízes das etnias negras e à herança trazida do Atlântico pelos portugueses, o que nos demonstra a identidade mestiça do país.
Com isto, o discurso se erotiza em um escrutínio sexo fundo com palavras. O recurso ao mar erotizado é uma constante em sua poesia: o mar, espumas e ondas são associados ao orgasmo, ao corpo da mulher, ao corpo da poesia e à linguagem num constante exercício metapoético que nos fazem viajar nas heranças ocidental e oriental na multifacetada identidade cultural moçambicana.
POESIAS
olhar em dispersão quando havia noite
e a casa em teu corpo era rubra e pétala
não sabia fingidor o silêncio
as pastagens húmidas
desejo na cidade quando o olhar em dispersão
e andavas com girassóis
via em teus cabelos era o corpo brunido
no escrutínio enebriante sumo contra os lábios
então passávamos a casa uma árvore na partitura
solta das mãos
queríamos seiva e nós quando o olhar
na noite em dispersão
(Monção, p. 21)
AUSTRALÍRICA
como dizer revolução sem eroniciar
no tempo
este admirável corpo de dança
a morna geografia do ventre
o mênstruo que é de sangue
e um arco-íris o goma
e a espuma cristaliza sobre a pele
e agora na monção escultora litanistórica
quando a vertigem do vento
vem de vir em teu rosto a inteira
irisdição
canto porque o poema se come
desde o milho à palavra em combustão!
(Monção, p. 25)
VARIAÇÃO DE NYAU
e os faunos bateram o som a pele fremente das planícies
abertas o vento corria vermelho por dentro e as mulheres
acordaram batendo mordendo o sumo dos cajueiros com
largas mãos acesas na noite a monção agónica nos tandos
espermáticos do olhar seios espigas verdes escorrendo leite
então o grito a alegria batendo alguém trouxera máscaras e
as gazelas húmidas sob a lua e o nervo das planícies abertas
quando os faunos bateram o som
(Monção, p. 26)
METAMORFOSE
ao poeta José Craveirinha
quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento no mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade
os jacarandás explodiam na alegria secreta de serem vagens
e flores vermelhas
e nem lustro de cera havia
para que o soubesse
na madeira da infância
sobre a casa
a Mãe não era ainda mulher
e depois ficou Mãe
e a mulher é que é a vagem e a terra
então percebi a cor
e a metáfora
mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
das mambas cuspideiras nos trilhos do mato
falemos dos casacos e do medo
tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes
e as espigas de bronze
as rótulas já não tremulam não a sete de Março
chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia
de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando
a natureza e o chão no parnaso das balas
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo
enquanto os tocadores de viola
com que latas de rícinio e amendoim
percutem outros tendões de memória
e concreta
a música é o brinquedo
a roda
e o sonho
das crianças que olham os casacos e riem
na despudorada inocência deste clarão matinal
que tu
clandestinamente plantaste
AOS GRITOS
(Monção, p. 27-28)
“Efectivamente o poeta Maiakovski suicidou-se”
oiço ler aqui
nesta espiral de esquinas e flâmulas
a um Poeta brasileiro
sentado sobre a pedra
minhas frases razuradas nas veias
que amor lhes dá
mais que o silêncio
e a magreza impúbere destes charcos suburbanos
ronda em tropel de espuma
haverá sereias vogando ao lado das folhas
dos poetas gregos?
Essa língua de Itabira
E agora num plano de Changara
Invenlírica pousada no tando súbito
Vermelho
Que pincel ou cor e forma
De suicídio
Mas te digo aqui a palavra
Entanto a espera dança
E o ritmo está bêbado
Disfarce do homem sem epílogo
Nem o poeta mata a poesia
(Monção, p. 29-30)
PARTITURA ECOLÓGICA
para a Manuela
suelto para a gazela na mesa grácil planura
em crescendo a colheita dum reflexo terno
tenro desejo animal harpejando arqueios
de códupula rápida
suelto para a alquimia ao vento de suas patas
na dança correndo o instinto solto e verde
o caçador espreita como ruge o trovão e a água
beija desprendida a pele trémula e eléctrica
suelto para a vida que morre e principia
no pulsar da fome ao sol do meio-dia
(Monção, p. 32)
nosso é o tempo do canto
conquistado a sangue
e terra
sobre o vibrato dos dias
alguma voz
são todas as vozes
este rosto etéreo a meu lado
e musgo nas marés do corpo
o sorriso de ser mundo
a noite nua
fremente
nosso é o tempo do canto
sobre o lugar
na descoberta palmo a palmo
de mais sol
o tempo amante
a voz da amada
o escrutínio deste sexo fundo
com palavras
(Monção, p. 33-34)
era a casa bailoçando em teus cabelos
e brunida ao fogo
a lança inexorável
quilha de barco ou convés
era o plâncton e a espuma
na exuberância das marés
era, meu amor, o tacto
de nós tão assim completo
tão assim exacto
que flores nasciam e se davam
na água do momento
e na epiderme desse silêncio
era sem dizer
que falava o esquecimento
(Monção, p. 36)
afasto as cortinas da tarde
porque te desejo inteira
no poema
e passas de capulana
teu corpo como as dunas
plantadas de pinheiros
rumorejando perto
a fúria das ondas
caindo brandas
no meu gesto
(Monção, p. 38)
EFABULÍRICA TABAGISTA
dormes como se morta
incendiado corpo nos dedos
ah! se tabaco fosses e lençol
no mais fundo da noite prismática
gizar o cigarro
fumando no teu sonho
(Monção, p. 48)
MUSICATÓRIO
ao Álvaro Marques
ó purilana queimada bacante
à 9a a fúria púbere
dionisíaco odre
ode instante
assim Beethoven se em périplo
chegasse à orla íris deste Msaho
aqui de sem pauta
mas seiva e nervura desde o tronco
e neste Olímpo de palmares
compor o delta a 4 mãos
e o sonho azeviche Fur Elise
enquanto os deuses esculturados em sura
dançassem o espanto e a matriz
indiciado mundo no Índico
onde só a terra gesta a raiz!
(Monção, p. 49)
SAGA PARA ODE
é preciso a distância para chegar
onde o poema parte e se reparte no léxico verde do teu corpo
com cinzas nocturnas e a madrugada nas mãos
é preciso o lugar ainda que doa
a emoção azul de sangrar por dentro
com o pensamento na galáxia terna do olhar
é preciso tudo como haver morte e flores
na raiz ao vento dos braços inteiros que se deram
por um nome uma ideia rubra nos lábios da liberdade
é preciso ver musgo e alegria até as ilhargas
da tua imagem garça a deslizar
e sorver água na exuberância lustral dos teus seios
é preciso a insurrecta solidão dalguns dias
quando os arquipélagos de ser dizem barco
e os teus passos espreitam
e tímidos percorrem o horizonte coral do silêncio
é preciso inventar-te porque existes
enquanto os deuses adormecem nas páginas dos livros
e o real é a infinita medida do canto
como acender as luzes ao meio-dia
e no mais sol das pétalas abertas
verter a seiva a singrar na terra
é preciso, meu amor, percorrer o tempo que nos deram
suspensos onde estamos nas pálpebras do verão
(Monção, p. 55-56)
(1) SECCO, Carmen L. T. R. (Org.). Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: UFRJ, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, 1999. v.3.
(2) SECCO, Carmen L. T. R. A magia das letras africanas – ensaios escolhidos sobre as literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. ABE Graph Editora. Rio de Janeiro, 2003.
(3) PATRAQUIM, Luís Carlos. Monção. Edições 70. Lisboa, 1980.
Muito bom Ricardo, vamos divulgar esse seu blog.
ResponderExcluirAbraços!
Valeu, Normitz! Vem de ti a inspiração.
ResponderExcluirobrigadão!