segunda-feira, 5 de novembro de 2007

ONDJAKI - O homem mais magro de Luanda.

A seguir um conto extraído do recente livro Os da minha rua, publicado pela editora Língua Geral, do escritor angolano Ondjaki, representante da novíssima geração do seu país. Nascido em Luanda, em 1977, é romancista, contista e às vezes poeta. É membro da União dos Escritores Angolanos. Recentemente co-dirigiu o documentário Oxalá crescam pitangas - histórias de Luanda (2006), e passou por aqui no Festival do Rio de Cinema 2007.
O homem mais magro de Luanda
– Mas caíste das escadas ou foi assim acidente de carro?
– Não, pá. Foi o Chico que me deu um apertão.
Palavras do Vaz, dias depois do apertão.
A casa do tio Chico tinha talvez a cerveja mais deliciosa de Luanda. Os mais-velhos é que falavam isso, antes e depois de beberem umas quantas. Eu e a tia Rosa tínhamos mais a ocupação de abrir a porta e ir buscar essa tal deliciosa cerveja.

Não me lembro bem se os toques eram diferentes ou não, mas o tio Chico sabia quem estava no portão pelo modo como a campainha tocava. As pessoas iam chegando.

– Ó Rosa, traz aí uns torresmos e o jindungo malandro.

Dois toques rápidos “é o Osório, vai abrir, Dalinho”, um toque suave tipo tímido “é o Mogofores, e vem com sede”, toque longo e palmas “é o Lima, ó Rosa dá aí um jeito”, a mesa enchia-se de copos de cerveja, aperitivos e sobras, quitetas, kitaba, camarões, chouriço, a televisão sempre ligada e pessoas de todas as cores que vinham beber dos barris de cerveja do tio Chico.

O tio Chico gostava de fazer obras no quintal, acho eu. Ao lado da enorme gaiola de rolas ele construiu dois quartos. Pensei que era quarto de gente, afinal era para guardar carne, peixe e o barril de cerveja que ficava lá dentro. Um quarto era tipo geleira, o outro era arca de congelar tudo.

Naquele tempo o tio Chico tinha um contacto para ir buscar barris de cerveja e podia haver maka se não houvesse aquela botija fininha de dar pressão aos finos. Ficava tudo dentro do quartinho-geleira. Cá fora havia a torneira da cerveja e um banquinho para eu chegar lá e poder encher os copos. Eu então gostava bué dessa minha missão de finos.

No quintal do tio Chico eu já não contava os finos, era perda de tempo. Depois do fino 77 as pessoas riam muito e já não havia quase torresmos no pires. Os olhos brilhavam mais e eu até já podia contar anedotas sem graça nenhuma que todos riam mesmo só à toa.

A campainha tocou. Só que o tio Chico não disse quem era. Olhei logo na direcção do portão, para saber se ia já a correr abrir. O Lima pousou o copo. O Mogofores parou de rir, ainda por cima arrotou sem pedir desculpa. O Osório puxou as calças para cima como sempre gostava de fazer mesmo que o cinto já estivesse perto do sovaco. A tia Rosa também esperou. A campainha tocou mais. Eu já só mexia os olhos.

– Vai lá ver – o tio Chico falou.

– O miúdo não vai sozinho – a tia Rosa agarrou-me no braço.

Os outros ficaram com cara de não-sei-quê. Era sempre assim, se houvesse uma pequena maka entre a tia Rosa e o tio Chico, todos paravam de beber. A tia Rosa levantou-se, fomos juntos. Era o Vaz.

O Vaz era um senhor muito alto, também camba do tio Chico, talvez o homem mais magro de Luanda.

– Boa noite, dona Rosa, o senhor Chico ta? – a tia abriu o portão para ele entrar.

No quintal já havia barulho de novo. Todos riram quando o Vaz entrou nessa maneira desajeitada de cumprimentar as pessoas.

– Ó meu sacana, então tu não sabes tocar a campainha como deve ser?

O Vaz não disse nada, cumprimentou todos e no fim aproximou-se com receio do tio Chico.

– Não me digas que tás outra vez com medo de me apertar a mão?

Não sei, eu era só uma crianças dessas a olhar os mais-velhos, mas muita gente não gostava assim muito de cumprimentar o tio Chico.

– Anda cá, meu sacana, andas a tocar a minha campainha com toques secretos, tu quase que entras pela racha do muro.

O Vaz, com medo, chegou perto do tio Chico. Quando foi abraçado, o tio Chico fez questão de lhe dar um apertozito. As costas do Vaz fizeram um ruído tipo estalido de porta enferrujada.

– Ó Dalinho, traz aí um fino bem tirado pra este sacana do Vaz.

Atravessei o quintal com o copo de vidro na mão, na direcção da torneira da cerveja pendurada na parede. Na cozinha aberta, cá fora, a tia Rosa, com o avental dela azul e bonito, com chinelas abertas e antigas, fritava mais torresmos e controlava o peixe grosso no forno. Durante muitos anos, para mim o mundo teve o cheiro daquele quintal maluco: as cervejas, as comidas e as mãos da tia Rosa a emprestrarem cheiros de cozinha aos meus cabelos despenteados.

De longe olhei o Vaz fazer caretas de dor. Tentava disfarçar, mas desconseguiu. Trouxe-lhe o fino bem gelado e ele bebeu tudo assim num gesto de matar a dor.

- Tavas cheio de sede, meu sacana.

Depois do jantar, as filhas do tio Chico já tinham ido dormir e a telenovela estava quase a acabar. Acordei com a voz do Sinhôzinho Malta a dizer “tou certo ou tou errado...?”, e o telefone tocou. O tio Chico atendeu. Primeiro ficou preocupado, depois riu devagarinho.

– Tá bem, tá bem, espero que corra tudo bem com esse sacana.

Eu e a tia Rosa também queríamos saber do caso. O tio andou devagar, de propósito, sentou-se.

– Ó Rosa, vai-me lá buscar um fino, filha – o tio Chico fechou as janelas da sala, recebeu o copo e bebeu de penalty. – À saúde do Vaz – ainda disse, enquanto ia para o quarto.

A tia Rosa apagou a luz da sala e fomos juntos para o quarto.

– O sacana do Vaz tá no hospital, tem duas costelas partidas.

Eu ainda queria perguntar se isso de costelas era o quê, mas já era tarde.

– Amanhã vamos lá ver o gajo, e tu podes mexer na manivela da cama, Dalinho.

O tio apagou o candeeiro, enquanto a tia Rosa fez-me uma festinha na bochecha e endireitou o lençol, como fazia sempre há tantos anos, para os mosquitos não me ferrarem nos braços e não me atrapalharem nos meus sonhos de falar durante a noite.


ONDJAKI. O homem mais magro de Luanda. In: Os da minha rua. Rio de Janeiro: Editora Língua Geral, 2007. pp. 53-57.

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