segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Ana Paula Tavares: A divisão do mundo

A angolana Ana Paula Tavares é apontada como a principal voz feminina nas literaturas africanas de língua portuguesa.

Em poesia publicou
Ritos de passagem, de 1985, O lago da lua, de 1999, Dizes-me coisas amargas como os frutos, de 2001, e Ex-votos, de 2003. Lançou dois livros de crônicas: O sangue da buganvília, de 1998 e A cabeça de Salomé, de 2004. A crônica transcrita abaixo é deste último, que reúne textos que foram publicados no jornal Público, de Lisboa, entre os anos de 1999 a 2002.

Sobre as crônicas de
A cabeça de Salomé, a professora Rita Chaves (USP) diz que o “tom dessa escrita que aproveita da crônica aquilo que melhor pode render o gênero. A leitura de cada uma levará a ver que a leveza que encontramos nos bons cronistas como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, para citar apenas dois dos nossos melhores, manifesta-se nos textos de Ana Paula Tavares. A ela, a autora angolana associa a densidade ancorada no desejo de manter, pela via da palavra, a forte ligação que existe entre ela e o patrimônio cultural que a sua identidade propicia. É de dentro desse campo, onde consolidaram-se as suas mais poderosas experiências, que ela olha o mundo e procura trilhas que nos permitam partilhar esse universo de saberes e sabores que a sua linguagem guarda e espalha.” (1)


A divisão do mundo
“Caiu a noite
Chegou a hora da caça ao caracol”
Provérbio cabinda
Tal como outros valores culturais, o sistema dos provérbios assenta num património de conhecimento facilmente reconhecível pela comunidade, que o aprende integrado num sistema de ensino baseado no aproveitamento da singularidade do indivíduo, enquanto parte de um todo comunitário, onde a solidariedade é cultivada como dado adquirido a não perder.

A agilidade do espírito, adestrada num cotidiano que a estimula, é perfeitamente capaz de actualizar receitas antigas, modernizar a língua e tornar de uso comum um património que, de outra maneira, se perderia no imenso limbo do passado a descobrir em museus, fossilizado nos pressupostos que o tornaram vivo numa época histórica determinada.

Este domínio da linguagem, muito para lá da mera utilização da palavra, pertence a todos, constituindo uma arma de recurso à disposição, cujo papel no apaziguamento de tensões internas dos indivíduos e das sociedades já foi reconhecido.

Os provérbios, parte deste sistema gramatical onde a história, o conto e o pequeno apontamento de escárnio e maldizer também tomam lugar, sintetizam, de certa forma, maneiras de pensar e encarar o mundo, iludir o tempo e viver com justiça. Mesmo em tribunal, o recurso a esta forma de linguagem cifrada (mas que todos conhecem) é utilizado, por vezes, segundo um enquadramento tão particular que as partes em litígio se esquecem do verdadeiro motivo que ali as levou, para se entregarem ao exercício da palavra, puro gozo, ao delírio de descobrir o provérbio radical, que deixe sem palavras o lado opositor.

As mulheres fazem (faziam) desta arte um amplo recurso, escolhendo formas de enfeitar as tampas de madeira das suas panelas que, uma vez postas em relação especial no espaço fechado que lhes era destinado, serviam para uma troca de mensagens prontas para atingir o alvo, conscientes de que “coração, cabeça e estômago” são entidades sempre associadas por esta ordem ou pela inversa.

Assim, depressa descobriram a correspondência entre objecto visualizado e provérbio inscrito, fornecendo, com a comida preparada de forma esmerada, o resto da cadeia para a eficácia da mensagem.

A linguagem do amor ficou assim servida por um acréscimo de recursos, onde cartas esculpidas celebram e dão notícia de promessas e juramentos arrancados ao coração da madeira.

Deve-se esta arte (em certos locais completamente extinta) a uma consciência bem enraizada sobre a consistência da palavra: uma vez gravada e tornada pública, perdura muito para além das outras levadas pelo vento ou pelo canto do matindindi.

Tratava-se de uma avaliação, consciente da importância da cristalização na madeira do estado real dos sentimentos, de uma peculiar gestão do amor, na esperança de que a tradição, não sendo já o que era, nem sempre deixa de ser o que parece.

Artífices da palavra de madeira eram encarregues de a fazer falar de forma especial. Uma mulher visitava o artista e estabelecia com ele um convénio de curta duração. Em troca da partilha de sonhos e revelação de estórias íntimas da família, conseguia fazê-lo arrancar, do coração da floresta, a madeira com todos os nós necessários à elaboração do discurso.

Embalado pela palavra, o artista ia lavrando, na tampa de uma panela, um primeiro esboço de uma escrita iluminada, a gravação dos sons da alma em tom de confissão.

Por vezes, a consulta a um especialista de provérbios, sábio de todas as linguagens, era o último recurso para evitar repetições e pôr de pé um sistema do simbólico imparável a partir desse momento.


Ao que sei, esta linguagem anda hoje perdida: as pessoas vêem as imagens mas perderam a noção de conjunto. Com a desculpa de uma apressada realidade de plástico, ignora-se a floresta e escolhe-se o caminho mais curto. Entre o que se escreve e o que se lê, deixou de haver ligação. Regressou-se à verbalização e os conceitos esvaziaram-se em caricaturas da verdade.

As tampas que falam são recusadas em busca dos segredos, que, em boa verdade, hoje não são meus, nem teus, nem de quem os há de apanhar.

TAVARES, Ana Paula. A divisão do mundo. In: A cabeça de Salomé. Lisboa: Caminho, 2004. pp. 27-29.

(1) http://www.agenciacartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13295

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