segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Dina Salústio: Liberdade Adiada

Dina Salústio é uma conceituada voz da literatura feminina de Cabo Verde. Nascida em 1941, na Ilha de Santo Antão, em seus textos os dramas, anseios, desejos, medos da mulher cabo-verdiana ocupam posição de destaque. Entretanto, na escrita da autora os sentimentos femininos tornam-se universais, não se reduzem apenas à mulher de sua pátria, mas expandem-se a todas as mulheres do mundo.Publicou, apenas para citar alguns, textos em poesia (Mirabilis – veias ao sol), prosa (A louca do serrano), contos (Mornas eram as noites).


Liberdade Adiada


Sentia-se cansada. A barriga, as pernas, a cabeça, o corpo todo era um enorme peso que lhe caía irremediavelmente em cima. Esperava que a qualquer momento o coração lhe perfurasse o peito, lhe rasgasse a blusa.

Como seria o coração?

Teria mesmo aquela forma bonita dos postais coloridos?

Seriam todos os corações do mesmo formato?

... Será que as dores deformam os corações?

Pensou em atirar a lata de água ao chão, esparramar-se no líquido, encharcar-se, fazer-se lama, confundir-se com aqueles caminhos que durante anos e mais anos lhe comiam a sola dos pés, lhe queimavam as veias, lhe roubavam as forças.

Imaginou os filhos que aguardavam e que já deviam estar acordados. Os filhos que ela odiava!

Aos vinte e três anos disseram-lhe que tinha o útero descaído. Bom seria que caísse de vez! Estava farta daquele bocado de si que ano após ano, enchia, inchava, desenchia, e lhe atirava para os braços e para os cuidados mais um pedacinho de gente.

Não. Não voltaria para casa.

O barranco olhava-a, boca aberta, num sorriso irresistível, convidando-a para o encontro final.

Conhecia aquele tipo de sorriso e não tinha boas recordações dos tempos que vinham depois. Mas um dia havia de o eternizar. E se fosse agora, no instante que madrugava? A lata e ela, para sempre, juntas no sorriso do barranco.

Gostava da sua lata de carregar água. Tratava-a bem. Às vezes, em momentos de raiva ou simplesmente indefinidos, areava-a uma, dez, mil vezes, até que ficava a luzir e a cólera, ou a indefinição se perdiam no brilho prateado. Com o fundo de madeira que tivera que lhe mandar colocar, quando começou a espirrar água e já não suportava uma torcida de farrapo, ficou mais pesada, mas não eram daí os seus tormentos.

Atirar-se-ia pelo barranco abaixo. Não perdia nada. Aliás nunca perdeu nada. Nunca teve nada para perder.

Disseram-lhe que tinha perdido a virgindade, mas nunca chegou a saber o que aquilo era.

À borda do barranco, com a lata de água à cabeça e a saia batida pelo vento, pensou nos filhos e levou as mãos ao peito.

O que tinha a ver os filhos com o coração? Os filhos... Como ela os amava, Nossenhor!

Apressou-se a ir ao encontro deles. O mais novito devia estar a chamar por ela.

Correu deixando o barranco e o sonho de liberdade para trás.

Quando a encontrei na praia, ela esperando a pesca, eu atrás de outros desejos, contou-me aquele pedaço da sua vida, em reposta ao meu comentário de como seria bom montar numa onda e partir rumo a outros destinos, a outros desertos, a outros natais.


SALÚSTIO, Dina. Liberdade adiada. In: Mornas eram as noites. Colecção Lusófona. Lisboa: Instituto Camões, 1999. pp. 7-8.

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