segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Antologias da literatura angolana na UEA

A União dos Escritores Angolanos (UEA) disponibilizou em seu sítio – http://www.uea-angola.org/index_antologia.cfm – algumas antologias sobre a literatura angolana. Ao todo são seis edições, sendo que uma dedicada a contos infantis e as outras cinco abordando diferentes aspectos da poesia angolana.
A antologia poética “É em momentos depois de ter sonhado – dimensão formalista da poesia moderna angolana”, organizada por Nilton Saraiva Botelho de Vasconcelos, divide-se em quatro gerações: a de 1945, 1970, 1980 e 1990. Procura apresentar os poetas que se preocuparam com propostas formalistas na confecção poética. Estão presentes poetas como Jorge Macedo, Arlindo Barbeitos, Ruy Duarte de Carvalho, João Maimona, José Luiz Mendonça, João Tala e Abreu Paxe.

Ao prefaciar a antologia, NSBV diz que “os poetas aqui representados, apesar de suas especificidades, têm compromissos com as estéticas mais exigentes em termos de plástica, futurismo, imagimos e concretismos, labor criativo que passa também pelo recurso constante ao contraditório não só por justaposição de palavras contrárias quanto ao que significam, mas como conotações possíveis, formando até sinestesias”.

Com isto, o organizador pretende encerrar uma acusação sofrida pela literatura angolana: “cai por terra a idéia ideológica que só existe uma literatura baseada em chavões revolucionários que têm como essência temática as aspirações dos operários e camponeses, sempre numa lógica de exclusão, de confronto de classe e de esvaziamento da dimensão espiritual do homem. (...) o leitor entenderá que o que vai enriquecer a nossa literatura é essa diversidade plástica com temáticas abertas que expressem os diversos ‘mundos e faces’ porque a matriz social angolana tem até elementos culturais profundos que podem tornar mais peculiar a atual poesia.”
Em “Nuvem Passageira”, organizada por Filomena Gioveth e Seomara Santos, há o interesse em prestar tributo a poetas já mortos, porém como destaca em título de posfácio a Profa. Dra. Laura Cavalcante Padilha (UFF/RJ): poetas mortos, poesia viva, que sedimentaram a trajetória da poesia angolana, “os homens e mulheres que contribuíram para o enriquecimento do imaginário poético angolano”. Constam na antologia nomes como José da Silva Maia Ferreira, Viriato da Cruz, Agostinho Neto, Henrique Abranches, Cordeiro da Mata, Antonio Jacinto e Alda Espírito Santo.
Em “Todos os sonhos – antologia da poesia moderna angolana”, temos um amplo panorama da poesia angolana com poemas selecionados pelos próprios autores. Nomes como Lopito Feijoó, Trajano Nankhova Trajano, Ondjaki, Sapyruka, Kudjimbe, Maria Celestina Fernandes, Fernando Kafukeno, E. Bonavena e tantos outros poetas estão nesta robusta edição de mais de seiscentas páginas.
Em “O amor é sempre agora – antologia do Éden angolano” os poemas selecionados têm como tema principal o amor, pois como justifica Adriano Botelho Vasconcelos: “ressalvo que a maior pujança temática da nossa literatura pós-independência, concretamente, até ao ano de
2002, esteve implicitamente relacionada com o apogeu da revolução marxista-leninista, numa ditadura cultural que só valorizava o discursivo e pouco espaço sobrou para o jogo de luzes e luas onde as palavras pudessem alcançar a maior plenitude. (...) Decidi organizar a antologia de poemas de amor porque muitos leitores necessitam das nossas «febres e luas». E também para que o caos existente nos dias de hoje, a solidão da sociedade moderna, a poluição sonora e de gritos de angústia não se sobreponham aos valores de afecto e de ternura, valorizando-se a interioridade humana, a sua fragilidade e as suas incansáveis utopias. «O amor é o sal da
vida», os mais-velhos têm razão.”

Nesta antologia também podemos conferir uma breve seleção de poemas de poetas universais como Fernando Pessoa, Camões, Charles Baudelaire, Pablo Neruda e outros que influenciaram os escritores angolanos. De Angola encontraremos Paula Tavares, Manuel Rui, João Melo, Costa Andrade, Arnaldo Santos e outros mais.
A poesia de autoria feminina está presente em “O amor tem asas de ouro – antologia da poesia feminina angolana”, organizada por Filomena Gioveth e Seomara Santos. Como a poesia de autoria feminina ainda é pouco representada na história literária angolana, esta fundamental antologia preenche este espaço e deparamo-nos com importantes nomes como Paula Tavares, Maria Alexandre Dáskalos, Alda Lara e Isabel Ferreira.
A única antologia dedicada à prosa, apresenta um segmento ainda tímido não só nas letras angolanas, mas nas literaturas dos outros quatro países africanos de língua portuguesa, que é a literatura infantil. Em “Boneca de pano – coletânea de contos infantis”, percebemos a influência da tradição oral nos contos dos doze autores selecionados, o extraordinário e o fantástico também comparecem na personificação de animais e plantas contracenando com seres humanos. Uma bela iniciativa com textos de John Bella, Raúl David, Abreu Paxe entre outros.

As antologias estão na União dos Escritores Angolanos – http://www.uea-angola.org/index_antologia.cfm Vale o acesso ao sítio para conhecer o seu vasto conteúdo com entrevistas, textos críticos e outros ensaios que abordam a literatura angolana.

A seguir alguns poemas das antologias.

Riso

Ruy Duarte de Carvalho

5.
Nada mudou para quem delega a glória.
Nada é tão grave que nos impeça os corpos.
Estamos aqui, sentados, sabendo que o conforto
é só cá dentro e a casa é cheia de alegria e festa
e a carne é fresca porque viva e alheia
à carne longe, retalhada e fria.
Somos de facto, em nosso apuro e com o nosso dote,
uma versão apenas indecisa
do nó que nos habita bem no centro.
Rapazes, raparigas,
que cada um empunhe a flor oculta
para inseri-la entre pernadas jovens.

A morte será longe enquanto nos arder
à flor da boca
esta atenção pelas florações dos outros.
(É em momentos depois de ter sonhado. P. 57)


João Maimona

Ramos de grito
entre a estrada e a catástrofe
entre a sombra e o naufrágio
as abelhas descobrem a espuma
azul e solitária.

no silêncio distante, ardente silêncio
no íntimo das nuvens, tombam chamas
que agasalham as lágrimas.

e das lágrimas da garganta sem universo
vejo os crepúsculos que se diluem em penumbra
e dos dias tristes, das noites que murmuram
dores e suspiros rampantes
apenas sobressaíram corpos envoltos em gritos

doces gritos que escorrem pela estrada.
(É em momentos depois de ter sonhado. P. 84)


José Luís Mendonça

O fruto das Palavras
Um hálito de pedra. É o que és
neste inventário de invenção.
Um rio que não dorme talvez o verão
de um fruto visitado pelos dentes da palavra

Ébrio de vento como um barco no deserto
acendi a rã adormecida no teu ventre
e o gume do meu canto escorre
o sangue ainda quente de tu seres
a fêmea do dia que me ocupa.

O fruto das palavras. É o que és
neste inventário de invenção. Quem sabe
o verão de um rio
visitado pelo hálito da pedra que não dorme
(É em momentos depois de ter sonhado. P. 98)


Fernando Kafukeno

no túnel
eu incendiava as mãos do enxofre

dos olhos via a foz do meu receio
na boca do sol grelhas louvavam
a santa no meu ventre vazio e o
sal do luando gota a gota caia como
a saliva da colmeia

eu tinha xatas para as lágrimas de túnel
(É em momentos depois de ter sonhado. P. 121)


João Tala

nossos olhos abriam o chão…
Quando a mentira cai das mãos regressa ao ódio.
Hoje as mesmas mãos desprendem rochas e
costuram pequenas harpas com que as vogais
abrem a terra.

Por isso as trincheiras mentem;
com a esperança da mentira os flagelados
cantavam as dores
porque as falsas trincheiras amanhecem
sempre que nós caímos; sempre que nos calamos.

Não nos calemos, estamos a escasso tempo do
chão; o chão mais profundo, inevitável;
o chão que os nossos olhos abriam quando
comiam a terra.
(É em momentos depois de ter sonhado. P. 129)


Amélia Dalomba

Mão
Mãos desenham raízes dos cânticos da terra
Geram vida na identidade da flor entre o espírito da letra
Engendram salmos na inserção da cruz
Cristo às preces das dores
Mãos são séculos de páginas aos joelhos de Fátima
São lágrimas ao altar do desespero
(É em momentos depois de ter sonhado. P. 129)


Abreu Paxe

o lago envelhecido sintoma
um pedaço de sorriso adere vertical ecrã o sino
louco o beijo artérias do beijo
nova voz estende-se o quintal nua geração a árvore
capilar sossegado presságio o lagarto com descrição
a cidade humedecido mergulho sem dobrar o mundo
sinais de vanguarda permanecem os cemitérios utilizáveis
telhas nevadas, elásticas despem-se do alto as esgrimas
consomem do tarso ao ilíaco as flores do campo
lago envelhecido sintoma alarga o passo turvo brilho


Alda Lara

Maternidade
Dentro de mim,
é que trago
a voz que se não cala,
e a força
que não mais se apaga...

Dentro de mim
é que o caudal-anseio alaga,
e correndo
há-de ir, de mar em mar,
levar
ao fim da terra,
um sinal de infinito...

Dentro de mim,
do meu sangue nutrida,
e sustentada,
é que a voz não é soluço
mas grito!

Dentro de mim,
eco de paz ou de alerta,
dentro de mim,
é que a eternidade é certa!...
Lisboa, Fevereiro de 1959
(Nuvem Passageira, p. 45)

Agostinho Neto

Sinto na Minha Voz…
Sinto na minha voz as vozes duma multidão
No coração sinto um mundo
No meu braço um exército

A multidão calou
O mundo perdi-o
O exército foi vencido

Mas a multidão silente não morreu
O exército vencido não desapareceu
E no coração tenho a certeza

De que o amanhã
não será só Ilusão
(Nuvem Passageira, p. 89)


Antonio Jacinto

O Ritmo do Tantã
O ritmo do tantã não o tenho no sangue
nem na pele
nem na pele
tenho o ritmo do tantã no coração
no coração
no coração
o ritmo do tantã não tenho no sangue
nem na pele
nem na pele
tenho o ritmo do tantã sobretudo
mais no que pensa
mais no que pensa
Penso África, sinto África, digo África
Odeio em África
Amo em África
Estou em África
Eu também sou África
tenho o ritmo do tantã sobretudo
no que pensa
no que pensa
penso África, sinto África, digo África
E emudeço
dentro de ti, para ti África
dentro de ti, para ti África
Á fri ca
xxxxxxÁ fri ca
xxxxxxxxxxxxÁ fri ca
C.T, Chão Bom, 28.06.70
(Nuvem Passageira, p. 100)

David Mestre

Obra Cega
Escrito a cal
este reboco
Obra Cega
de merda
seca e sal

Boa noite
Anjo Azul
olhar
com menino
por trás Só

a dor imita
o cursivo oculto
da adaga
tinta
de sonhos
(Nuvem Passageira, p. 156)


Henrique Abranches

História de Uma ideia Franzina
Na aurora de uma ideia que parte para a guerra
grisalha ainda o engano duma esperança fútil.
Frágil segurança
como a prece inútil, que foi rezada em Fátima.

E cresce o desengano
como um novo anátema,
guinada dolorosa
de um velho quisto.
Apenas um curto momento
de piedade de nós mesmo.
Apenas um momento a esmo,
chorando tudo isto...

E a bandeira a duas cores que flutua orgulho
caída na armadilha do tempo inexorável
desbota lentamente
enche-se de humores,
de pus e de aguadilha,
do veneno delicioso do tortulho,
e balança no alto do mastro imponente
uma dança velha e lamentável
como a marcha trôpega de um veterano.

No curso duma ideia que voltou da guerra
e esperança empalidece,
cala-se o choro,
vai mirrando a prece.
Fica apenas o sóbrio desengano
que não pontifica, não constrói
nem erra...
(Nuvem Passageira, p. 229)


Viriato da Cruz

Makèzú
«Kuakié!... Makèzú, Makèzú…»
.....................................................

O pregão da avó Ximinha
É mesmo como os seus panos,
Já não tem a cor berrante
Que tinha nos outros anos.

Avó Xima está velhinha
Mas de manhã, manhãzinha,
Pede licença ao reumático
E num passo nada prático
Rasga estradinhas na areia...

Lá vai para um cajueiro
Que se levanta altaneiro
No cruzeiro dos caminhos
Das gentes que vão p’ra Baixa.

Nem criados, nem pedreiros
Nem alegres lavadeiras
Dessa nova geração
Das «venidas de alcatrão»
Ouvem o fraco pregão
Da velhinha quitandeira.

– «Kuakié!... Makèzú, Makèzú...»
– « Antão, véia, hoje nada?»
– «Nada, mano Filisberto...
Hoje os tempo tá mudado...»
– « Mas tá passá gente perto...
Como é qui tás fazendo isso?»

– «Não sabe?! Todo esse povo
Pegô um costume novo
Qui diz qué civrização:
Come só pão com chouriço
Ou toma café com pão...

E diz ainda pru cima,
(Hum... mbundo kène muxima...)
Qui o nosso bom makèzú
É pra veios como tu».

– «Eles não sabe o que diz...
Pru qué qui vivi filiz
E tem cem ano eu e tu ?»

– «É pruquê nossas raiz
Tem força do makèzú!...»
(Nuvem Passageira, pp. 329-330)


Ana de Santana

A Canção do silêncio
A canção do silêncio é um poema ao suspiro
Mergulhado
Na profundeza do Índigo

O olhar de uma santa de barro

A linha do equador à deriva do pensamento
Gelo e sal e larva e mel

A canção do silêncio
(Todos os sonhos, p. 107)


Beto Van-Dúmen

Esperança
A lua assoma entre as nuvens
Em rodopio com o contraste dos ventos
Raios de luz desfilam pelos matagais
Abafando prantos de ansiedade

E nas sanzalas solitárias
Quebram-se as trevas da noite
E renasce a esperança do amanhã
(Todos os sonhos, p. 213)


E.Bonavena

A Espera de Ti
Por agora,
deixa os sinos do teu corpo
tocarem todos,
deixa a vaga de vento
te levar para as portas do céu.

Poisa levemente os pés
na lã dos caminhos e
vai segura pela minha mão
que voltarás ao amanhecer

com as águas das montanhas
entre o coaxar das rãs
saindo do teu peito.

Os dias serão maduros
de azul, cânticos de amor e pão.

Haverá mel nos lábios
e em todas as esquinas
estarei
à espera de ti!
(Todos os sonhos, p. 306)


John Bella

Agora sim… não é poesia
Venham ver por favor
hipocrisia do ovo
nesta terra da graça
são poetas que gritam
por um pouco de justiça
são pedras que dizem
não ter nada para dar
ah! e o diamante
nos olhos da minha namorada???...
o ouro jorrado preto
no caderno dos políticos???...
a (des)graça nesta terra
só cai do «empire state»
direito à caneta do poeta?!...
oh, por favor
inventem outros planetas
que até mesmo em Marte
o poeta lá torra milho
depois o reserva paciente
em jura gaveta escolhida
mas venham por favor ouvir
gemido dessas areias
já invadiram mar
agora vão a caminho
das pálpebras lunares
e eles repetem...
Agora sim... não é Poesia
é desabafo!...
(Todos os sonhos, p. 450)


Lopito Feijoó

A nona brisa
No espaço sepultado pela ventura
a Nona Brisa escorre intimamente
... qual menina(s) do(s) meu(s) olhos(s)...
sacudindo as pétalas do aroma temporal em

escala profética ao fruir súbito
das fricções encarnadas num ser qual quer nas
hostes dos demónios pernilongos!

A Nona Brisa ilimitada pela dimensão erótica
do corpo veloz traz no rosto
a extensão do sangue e o exercício do pudor

memorial
de carne espessa ou sombra encantatória
miserável determinista no circuito dos anjos
amantes testamentários da violência mitológica!
(Todos os sonhos, p. 511)


Luís Kandjimbe

O Aroma Ervanário
Na minha casa durmo sono profundo
Se a mulher nas entranhas estremece
E me fizer massagem de água quente
Com ervas aromáticas da sua mão

A mulher dorme e levita o sonho profundo
Quando ouve enorme
Meu respirar profundo

A mulher não levita, estremece nas entranhas
Doa meu respirar profundo
O aroma ervanário de sua mão.
(Todos os sonhos, p. 525)


Sapyruka

Estratagema
Tudo o que se come tem sabor a vómito
Aqui tudo é tão estranho
Que até o preço da utopia
Vem disfarçado nos noticiários da televisão

E quantos lábios confessam solidariedade?
Oh! Que penoso calote.
(Todos os sonhos, p. 623)


Trajanno Nankhova Trajanno

Retrato onírico de meu rosto
ledo alado e brando elevei-me
para além de mim ungido de mito rito e ansiedade

ignorei o oceano de porta escancarada ajoelhado a meus pés
ledo alado e brando
encontrei-me mais vezes viçoso trepando árvores
derrubadas do que a plantar sentimentos e dar sentido azul
a sedimentação das dunas
as mãos fecundas do tempo acenando a idade
ao ridente horto de tetas ridentes
a ondulação das ancas dos cavalos-marinhos
desconhecidos das capitanias

a todo instante ledo alado e brando
anda uma geração
distante da intimidade azul quando o céu o é bastante azul
(Todos os sonhos, pp. 636-637)


Arnaldo Santos

Poema Da Intenção
Se eu pudesse deitar-me
entre a terra e o sol
na crina
de todas as copas mulembeiras
e no caminho dos túneis
dos ventos decompor
o espectro de sons
o marulhar
que se quebra
nas margens dos nossos sonhos

Colheria
para ti apenas
o canto das viuvinhas

e dar-te-ia
uma nova respiração
num tapete
de altos-cúmulos de Novembro
prenhe de grandes chuvas
sementeiras.
(O amor é sempre agora, p. 86)


Carlos Ferreira

(Para ti)
Tuas mãos tua pele tua voz
teu saber entender o mundo
tua boca teus olhos teu palco
tua plateia calada estupefacta
tua lágrima teu saber estar viva
nossa morte paulatina
tua lição de repensar a esperança
(O amor é sempre agora, p. 97)


João Melo

Ela disse: beija o meu corpo com a tua poderosa língua, vibrante como uma canção, terrível como uma ciência antiga, espessa e doce como um pecado; captura suavemente os bicos túrgidos dos meus seios, como se fossem dois pequenos pássaros desesperados; ilumina
a minha carne sombria com os teus dedos múltiplos e tenazes; abre o suplicante coração das minhas pernas, e, com o teu ombro duro como uma estátua de bronze, fá-lo deleitar-se até à completa exaustão do tempo.
(O amor é sempre agora, p. 153)


Jofre Rocha

Dá-me O Luar
dá-me o luar
e toda a verdade
enquanto minhas mãos percorrem
o mapa do teu corpo
e minha língua impaciente
freme em tua boca

dá-me apenas o luar
e a lembrança que não morre
até seres capaz de saciar
a sede e a fome que me devoram

dá-me o luar
e toda a verdade
para contigo ficar
eternamente
(O amor é sempre agora, p. 187)


Manuel Rui

Trazias Tanto Mar Na Pele Dos Dedos
Trazias tanto mar na pele dos dedos
onde o teu corpo é sempre o meu princípio
de nunca querer chegar
ao fim a voz da vaga
quantas vezes te disse e te cantei?
Quantas vezes sal de pôr na boca
Quantas vezes concha seios de maré
búzio de carne
um leito de água no teu ventre
de marulhado espasmo musical?

E quando a água aquecia nossa fúria
quantas vezes sentimos que o mar era tudo
e os olhos queriam mais no meio dos ruídos casuarínos
um ximbicar nas coisas sem limite.

Mas põe o nosso corpo nestas dunas
de sol plano e todo destapado
alimentando o lago da miragem
que se descobre na esquina onde só era
o nu da luz na escassez de arbustos
de um pouco-a-pouco deste ar sopro quente
que a nossa boca expira para a boca
e nossos olhos prolongam para sul.

Aqui pressinto o que faltava quase
ao nosso mar
para que fosse a imensidão
mais simples mais essencial.
Ouve-me então nesta coragem de planta
Erecta em solidão da tua ausência
Depois que trouxeste tanto mar na pele dos dedos.
(O amor é sempre agora, p. 234)


Carla Queirós

Eternas Vítimas
Acorrentem as vozes
de quem não tem bico
Feiticeira hora
que julga os insepultos
Castiguem a mancha berrante
retida nos olhos
Suspirem os sonhos
Como louca mania
Sob os auspícios da lua e da poesia

Violentem as epopeias mestiças
Cuspidas nas heces-fecais dos Deuses
Odisseias e prosopopeias
Darão corpo
À mística corrosão
De que sois, afinal,
Eternas vítimas
(O amor tem asas de ouro, p. 68)


Isabel Ferreira

Desilusão
Caí em letargia…
Meu sonho adormeceu profundamente…
Ficou num par de fronhas virgens…
Estreadas em noites de volúpia…

Sonho bordado
Nas fronhas dum hotel
Vidas aneladas
Pontos cheios de suspiros sem gemidos…

Juntos dormimos
Mas nossos sonhos
Esses!
Adormeceram
Num par de fronhas…
(O amor tem asas de ouro, p. 104)


Leila dos Anjos

Um Grito no Escuro
Na escuridão da noite o silêncio
é sepulcral na boca daquele que
nem uma palavra pode pronunciar,
no peito, o bater descompassado do
seu coração, nas mãos os calos
manchados pelo trabalho forçado,
nos pés, o tique-taque do cansaço
da caminhada do dia, na mente,
a esperança dividida da salvação.

Um suspiro prolongado, denuncia a
saudade que sente da pessoa amada,
uma lágrima caída, fortifica a esperança
de vitória, no sono um sonho cheio de
alegria floresce, e ao acordar a realidade
irradia-o com o raiar do sol.

No peito a pergunta incessante do
futuro que se anuncia. Conto os
dias, conto as noites, conto as horas
que ainda faltam. Fala ao sol, falo à
lua, falo à água que por aqui corre,
serei eu ou serás tu que romperás as
algemas do silêncio e anunciarás a
minha e a tua liberdade de expressão?
(O amor tem asas de ouro, p. 121)


Maria Alexandre Dáskalos

A ternura de um pequeno adeus
tem o sabor
de um vinho adamascado sem idade.

O teu olhar lembra-me
o cheiro do seu mosto.

Cantamos o vinho
bebemos despedidas.
(O amor tem asas de ouro, p. 134)


Paula Tavares

O Lago da Lua
No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
voltaria cada mês
para lavar
meu sangue eterno
a cada lua

No lago branco da lua
misturei meu sangue e barro branco
e fiz a caneca
onde bebo
a água amarga da minha sede sem fim
o mel dos dias claros.
Neste lago deposito
minha reserva de sonhos
para tomar.
(O amor tem asas de ouro, p. 189)

O Cercado
De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p’ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p’ra lá do cercado
(O amor tem asas de ouro, p. 192)

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