Por Ricardo Riso
Ao confrade Filinto Elísio
Um poder ilimitado para criar imagens, explorando ao extremo os sentidos das palavras, apresentando novas e surpreendentes significações em poemas que transportam o leitor a desvendar um sujeito lírico profundamente existencialista, proposto a metaforizar tudo aquilo que alimenta seu lirismo. Assim são os poemas encontrados no livro Das frutas serenadas (Praia: IBNL, 2007), do cabo-verdiano Filinto Elísio.
Ao privilegiar o soneto, uma vontade de voo no improvável / Que em mim lateja como um soneto (p. 44), o poeta usa com maestria o encadeamento, conseguindo recriar a forma clássica de se fazer poesia e demonstra poemas de grande esmero com a palavra. Deve-se frisar o incessante e o consistente recurso à sinestesia, que aparece constantemente, porém longe de se aproximar da exaustão, sendo usado com a excelência de quem domina o ofício como poucos, raros. É através dela que o sujeito lírico metaforiza suas paixões em frutas, tornando esta figura de linguagem a principal responsável para as densas viagens poéticas Das frutas serenadas, como no poema “Amoras”:
Tem horas que embarco ao sabor de amoras
e o travo deste meu corpo é fome soluçada,
gotas salpicadas, perfumadas ervas, banhos
de espuma e bolhas que são aqui beijos;
Tem horas que percorro todos os amores,
dos que me aquecem no frio e, entre a morna
& o violão, seus olhares furtivos abraçam
esta solidão, e eu uma concha de vontades;
Apaziguadas frutas comem nas amoras
este caminhar pelo vértice das musas,
onde, coordenadas, as horas cantam;
E jogadas ao leito da vida, fomos deleite,
e de tudo ter sido – sémen, suor e sangue –,
pétalas de qualquer coisa assim viscosa... (p. 32)
O sujeito lírico elisiano, em sua profunda viagem existencial, também celebra a tessitura da poesia, louvando o fazer poético, a busca pela palavra e pelas imagens inusitadas em suas metáforas a assumir um surrealismo vigoroso, todavia, não se esquecendo da relação aproximada que o cabo-verdiano possui com o mar, matéria primeva da literatura do arquipélago, como em “Esse mar revisitado”:
(A palavra mar morreu há muito,
Esse mar, quem sentiu mar?
Mas tu, de acreditares em fénix e
Nas cinzas do caminho, profanas.
Impiamente, profanas esta quietude)
Quando pronuncias a palavra mar
Este ilhéu diante de ti se liquefaz
E vira ele próprio metáfora e parte
Como onda para o abraço das terras...
Só de o teres ementado, os peixes
Saltitam no assombro das pedras
E as sereias saem, loucas das lendas,
E aproximam-se ao cio das marés...
As algas, limos, areias, espumas –, tudo
Soletra-lhe ali em maresia e de tão longe
Estará ele navio na solidão do mundo...
Nesse surrealismo tão bizarro e vão
Quão poemas de longe e de saudade
De repente, substantivos de quem os ouve... (p. 48)
Acariciadas palavras surgem nos serenados poemas em metáforas aladas, Aqui, deixado na praia, / Eu te invento... metáfora! (p. 51). Viagens, trajetos percorridos pelo albatroz cabo-verdiano revelam o breve momento da criação poética, a fugaz inspiração que evolui em forma de poesia:
(...) Quão poderosa, foste, num só momento,
E ter aquilo sido toda a eternidade... (p. 30)
(...) E o mais é molhares-me desse viscoso, o sereno
Serpentear das coisas em denodo, seres tu,
Fêmea fugaz, que a eternidade ora me concede... (p. 39)
Na vastidão de imagens criadas pelas metáforas sinestésicas e erotizadas, o sujeito lírico, qual frutal, homenageia as frutas:
As frutas, uma a uma, darão suas entranhas à boca
O roçar leve de língua ao gosto de todas as coisas,
As frutas saberão trazer do antanho nossas memórias
Em paraísos de proibir nas árvores todo o proibido.
Uma a uma, não nos poderemos delas jamais apartar,
Sílabas poderosas no ulterior dos verbos acamados
Nos leitos de horizontes surgidos do útero da baía
E nas janelas abertas para o império dos sentidos.
De quantas frutas somos benditos no ventre das vontades,
Quantas lágrimas, suores e sémenes, vagidos de nada,
A esventrar a espessura de tudo ser mais prima matéria.
Ajoelhados ante o silêncio, soletraremos ao infinito
O que desta idade temos ainda de eterna saudade
E entoaremos, de sussurros tão-somente, o hino às frutas. (p. 21)
Na amplidão de metáforas ilimitadas e valendo-se de uma linguagem apurada e densa, o mergulho em uma poesia existencial proporcionado pela leitura deste pequeno livro Das frutas serenadas, consolida o nome de Filinto Elísio como um dos grandes da poesia contemporânea de Cabo Verde. Em Elísio, o excesso metafórico e o ardor semântico não são gratuitos, mas sim, fruto de uma cuidadosa e zelosa paixão pelo fazer poético. Intimista, lírica, exuberante, universal, assim é a poesia para e de Filinto Elísio. Um poeta que a reinventa, que mostra que a poesia ainda é a mais bela das artes.
Biobibliografia resumida:
Filinto Elísio de Aguiar Cardoso Correia e Silva nasceu na cidade da Praia, em 1961, é formado em Biblioteconomia e em Administração. Foi cofundador do Movimento Pró Cultura e do Núcleo de Reflexão sobre a Arte, 1986. Publicou “Do lado de cá da rosa” (poesia, 1995), “Prato do Dia” (crônica, 2000), “O inferno do riso” (poesia, 2002), “Das Hespérides” (poesia, crônica e fotografia, 2005). É autor do blog Albatrozberdiano - http://albatrozberdiano.blogspot.com
Fonte: Guia do Participante – Contravento, Pedra-a-Pedra – I Seminário de Estudos Cabo-Verdianos/Universidade de São Paulo, 2008. p. 20-21.
Poemas:
Lendo Pedro Cardoso
Li, em tanta sofreguidão, os versos todos
A verve tântrica de apalavradas ilhas
E a praça se pressente, e a Brava ao largo,
E a quilha dos barcos em redondilhas.
A raiva toda, senti-a no corpo e na alma,
De pés descalços pelo dorso do vulcão,
Mãos percorrendo corpos de pedra negra,
Calcinados campos onde as uvas solfejam.
Li-os, página a página, a medra da cal
De tão brancas e térreas casas, arrieiros
E sobrados deságuam na matricial igreja.
O rufar dos tambores, o relinchar dos cavalos,
Em festas de pilão e bandeiras, e a procissão
Imensa (quase eterna) e eu nesse Presídio... (p. 46)
Mangas
Não te quis contar tudo das mangas,
antes balbuciei aos teus ouvidos o luar
que, da fresta dos coqueiros, banhava
o areal silencioso, pedaços de notas
com que a brisa desejava as ondas,
o termos sido, mano a mano, essa loucura!
Das mangas não, Amor. Tão íntimas de nós,
pedras soletradas, tão de toda a fruta
(cá dentro) como foram os abraços
e a nudez que não nos acabava, senão
nas pétalas de uma flor serenada
e nesses murmúrios (soubeste-os sempre)
das mangas... (p. 29)
Viagem
Em torno da odisseia das ilhas, creio levar
Neste puro desejo que me transcende, a senha
E a palavra-chave de os labirintos serem aqui
Simples lugares de passagem, apenas paisagem...
O andarilho palmilha as dunas, as areias
De intermináveis desertos e todas as ondas
Que os oceanos concedem, quando furibundas
Ou, mesmo, serenadas e das praias acariciadas...
Sem culpa, nem sina – ou de Job puro devedor –,
Percorro de lés a lés o mapa que é de ti e do mundo
Como quem responde à morte o saldo estival...
Como quem salta para a eterna idade da vida
E fica suspenso entre a estrela e sua cadência
A riscar, de viajar tão-somente, o céu da noite... (p. 43)
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