segunda-feira, 25 de maio de 2009

Cruz e Sousa: Literatura e Abolicionismo (lançamento de livro)

clique na imagem para ampliá-la.

Fonte: e-mail enviado pela Livraria Kitábu no dia 24/05/2009.


sexta-feira, 22 de maio de 2009

José Luiz Tavares - entrevista

A entrevista abaixo foi publicada no semanário cabo-verdiano A Nação em 21/05/2009, e gentilmente enviada pelo escritor cabo-verdiano José Luiz Tavares. JLT foi selecionado entre os cinquenta finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2009. Melhores informações em http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=23443&idSeccao=518&Action=noticia
Abraços,
Ricardo Riso

Entrevista a José Luiz Tavares — Poeta

1. Considera-se um “enfant terrible”?
R: Não, não me considero. Terrível era Ivan e, que eu saiba, não sou russo. No entanto não deixo de reconhecer que possuo uma personalidade poética áspera, detonadora de atritos, no sentido em que a física o entende.
Enfant, serei sempre, pois é preciso conservar uma certa inocência, que não ingenuidade, e aquele módico de pureza que é o melhor antídoto contra a peçonha e as safadezas do mundo.
Claro que eu passo por ser um indivíduo desbocado, arrogante, destemperado, porque os senhores feudais da literatura caboverdiana e da lusofonia, os compadres do elogio mútuo e das palmadinhas no lombo não estavam habituados a que alguém lhes olhasse nos olhos e dissesse ao que vinha, independentemente de lhe assistir razão ou não. Ainda tenho presente o célebre discurso da Gulbenkian na cerimónia da entrega do prémio Mário António, em que metade da assistência ficou a olhar para mim entre o atónito e o assustado. Até amigos meus disseram-me que tiveram receio de aplaudir.

2. Como estudioso, como poeta existe de facto de uma escrita contemporânea cabo-verdiana?
R: Não sou estudioso no sentido em que as pessoas entendem habitualmente essa figura. Eu estudei, li, apetrechei-me teórica e tecnicamente para exercer a minha arte com a mais funda consciência dos seus pressupostos, não para produzir obras teóricas fora do âmbito da criação artística. O grande pensador de origem judaica George Steiner, chamava a essa capacidade teórica incapaz de criação inteligência parasitária ou secundária.
Tudo aquilo que faço e sei tem que convergir na obra. Para elucidar este aspecto, conto-te este episódio: em Setembro de 2004 pedi ao João Vário que apresentasse os meus livros paraíso apagado por um trovão e agreste matéria mundo na feira do livro do Mindelo. Vário, que possuía um notável conhecimento das coisas da arte, e que chamava agreste matéria mundo de livro de ensaios (eu prefiro poesia do pensamento ou lírica reflexiva) disse-me que não o faria, pelo simples facto de que os meus livros não tinham genealogia na literatura caboverdiana e que não eram livros que podiam ser apresentados assim do pé para a mão. Prometeu escrever sobre eles um artigo para a revista anais, mas infelizmente o seu estado de saúde não lho permitiu.
Quanto à contemporaneidade ou não da escrita caboverdiana, só entendo a questão num âmbito comparativo, isto é, se aquilo que se faz cá é co-mensurável com aquilo que se faz lá fora. Penso que nalguns aspectos sim, embora a literatura caboverdiana tenha padecido sempre de um problema de desfasamento, o seu grande problema genético. Repare, por exemplo, naquilo que é considerado o nosso modernismo: esteticamente é profundamente reaccionário em relação às grandes correntes, se pensarmos nas vanguardas que nesse tempo vicejavam e feneciam por esse mundo de deus.

3. Na tua condição de intelectual, de poeta, de homem incomoda-te ser rotulado “escritor cabo-verdiano” com todos os pressupostos que daí advêm? Que escritor, que género de literatura quem lê a sua obra vai encontrar?
R: Eu não sou intelectual nem tenho essa ambição, o que não me impede de atirar umas pedradas de quando em vez, mas sempre a partir da minha condição de escritor e de homem livre que não ambiciona mais nada senão traçar os contornos dos mundos a haver e esboçar o rosto do povo do futuro. Ambição sísifica, provavelmente, mas eu não nunca me conformei com os rasos eventos do dia ou com os pequenos mundos além da esquina.
Escritor e caboverdiano sou, como já respondi em certa ocasião, uma coisa está subsumida na outra, ainda que múltipla e fragmentária seja a condição de todo o criador autêntico. Agora o que é preciso é perceber se determinados livros se encaixam na sua tradição nacional, ou se se enquadram em âmbitos mais vastos e mais desterritorializados. Ou se é a condição étnica, jurídica ou linguística que determinam a sua pertença a esta ou aquela tradição de escrita.
Eu próprio que vivo agudamente, mas sem drama, essa ambivalência, em termos de obra produzida, não tenho nenhuma dúvida em relação à minha pertença enquanto indivíduo ao âmbito da literatura caboverdiana, recusando, com prejuízo para a minha privada, adquirir, até esta data, a nacionalidade do país onde vivo. Isto não quer dizer que o não possa fazer amanhã, mas nunca por calculismo, como alguns que conheço, que, sendo de direito caboverdiano e português, nunca tinham assumido essa dupla condição, vindo a fazê-lo porque enquanto portugueses nunca as suas obras obteriam qualquer projecção.

4. Tempos atrás afirmou que em Cabo Verde “infelizmente, demasiados maus livros têm sido premiados, o que não deixa de ser um sintoma preocupante”. Sinal que a nossa literatura actualmente é má?
R: Abraão, não me puxes pela língua, que sou suficientemente insensato para dizer umas verdades. A afirmação atrás citada foi proferida por mim num contexto determinado que foi a atribuição do prémio Jorge Barbosa pela Associação dos escritores Caboverdianos ao meu livro «Agreste Matéria Mundo», que tinha concorrido ao prémio sonangol e foi preterido em favor de um outro livro. Como sabe, houve alguma polémica à volta do assunto na rádio e nos jornais, mas nada disso é relevante. O que importa é o valor intrínseco da obra, e se ela nos acrescenta ou não, não apenas como povo, mas também enquanto agregado civilizacional, e penso que quanto a este último aspecto ninguém esclarecido e de boa-fé alimentará quaisquer dúvidas.
Se a nossa literatura é má? Eu não quero fazer um julgamento holístico, por atacado. Há alguns, poucos, livros bons, e do resto não cuido pois não me interessa.

5. Em Cabo Verde ninguém comenta ou fala da obra de outros escritores, por medo ou pequenez do meio. Desafiaria o JLT a dar-me os nomes mais pujantes, donos da melhor literatura feita por cabo-verdiano nos últimos anos?
R: Eu não quero falar de nomes, grupos, capelas, confrarias, tugúrios, movimentos e quejandos. Como lhe disse, prefiro falar de livros, mas em todo o caso posso fazer um breve excurso. Depois da morte do João Vário, mestre insuperável, o Arménio Vieira é o nosso maior escritor vivo. Há dois anos publicou um livro magnífico, Mitografias. É pena que não produza mais. O Vadinho é um poeta com grandes capacidades, ainda que por vezes demasiado enredado em alguns labirintos metafísicos. O Filinto atingiu um momento alto com «Das frutas serenadas». O Mário Lúcio é o nosso prosador mais imaginativo. Ah, falta o JLT, mas desse não posso falar.

6. Parece que por estas bandas os prémios fazem os nomes. Que valor dá aos prémios?
R: Os prémios podem fazer os nomes, mas não fazem as obras. Já vi algumas invencionices em Cabo Verde, donzelas e mancebos transportados ao colo por serem membros ou simpatizantes da confraria A ou B, ou porque é preciso atender a determinadas mitologias geográficas ou culturais, mas passado o efeito da bolha e da zoeira mediática, retornam ao lugar que lhes cabe.
No meu caso acho que todos os prémios que ganhei, ganhei com mérito, mas também posso estar enganado. Até já fiquei a saber que deixei de ganhar determinado prémio porque o júri não me considerou suficientemente modesto.
Para mim os prémios têm duas vertentes a considerar: dão visibilidade a uma obra e podem funcionar como um estímulo à produção de novas obras. Nunca é uma finalidade em si. É por esta razão que prefiro os prémios atribuídos a obras existentes do que bolsas de criação, que são atribuídas a uma intenção que pode transformar-se em obra de mérito ou não.

7. Dos prémios que já recebeu, qual ou quais os mais simbólicos para si?
R: Acho que todos os prémios que recebi foram importantes, desde as minhas redacções da escola primária que eram escritas no quadro para a classe copiar, até ao mais importante prémio literário que um autor caboverdiano alguma vez ganhou, o prémio Mário António da fundação Calouste Gulbenkian. O prémio Cesário Verde ocupa um lugar especial, pois foi o primeiro prémio literário significativo que ganhei. As distinções no antigo suplemento literário DN-jovem do Diário de Notícias faziam bem ao ego, pois eu tinha essa fixação tola de tentar provar que era tão bom ou melhor que o melhor dos portugueses que lá escrevia. O ter sido um dos dez finalistas das correntes d’escritas no meio de grandes monstros da poesia de língua portuguesa e espanhola, foi um momento assinalável. O Prémio Jorge Barbosa tem um significado particular, dado que foi a primeira vez que fui premiado no meu país. O prémio literatura para todos abriu-me um pouco mais as portas do Brasil. A indicação para o prémio Portugal Telecom, ao lado do Mia Couto e do Pepetela, é algo que não acontece todos os dias.

8. É voz quase unânime que daqui a poucos anos és um sério candidato ao prémio Camões. O que pensas dessa possibilidade? É algo que está no teu horizonte?
R: Não sou responsável por aquilo que os outros acham ou deixam de achar. É a opinião deles, nada mais do que isso. O que posso dizer é que quem me conhece sabe da minha determinação em construir uma obra consistente, até com sacrifício dalguns aspectos da minha própria vida. Mas cada um escolhe o seu destino, e eu escolhi este. Se esse prémio for o reconhecimento da consistência e da singularidade de um percurso, será bem-vindo, mas não estou preocupado com isso. Só a obra interessa, e é nela que empenho todas as minhas forças e capacidades.

9. Outra afirmação sua “Passa pela cabeça de alguém que hoje quando se fala da literatura cabo-verdiana se esqueça do nome de José Luís Tavares?” Como situaria a sua obra dentro da historiografia da literatura cabo-verdiana?
R: Essa afirmação foi proferida na sequência da atribuição do prémio Jorge Barbosa e reportando à atribuição de medalhas culturais, que eu já avisei para ninguém pensar em ma atribuir, pois teria de recusar dada a inexistência de critério na sua atribuição. Até uma vez fui sondado, na altura em que ganhei o prémio Mário António, para saberem se eu aceitaria o passaporte diplomático, na presença de uma terceira pessoa que o pode confirmar, mas recusei, pois na altura não estava claro para mim se não se tentaria condicionar a minha actuação por via dessa aceitação. Tenho sofrido alguns dissabores nas viagens que efectuo um pouco por todo o lado, mas face às circunstâncias da altura entendo que fiz bem em recusar. Comigo tem que ser tudo muito transparente.
Agora respondendo à questão: eu não me situo na literatura caboverdiana. Deixo esse trabalho a esses outros que vivem de botar faladura em relação à obra alheia. Em todo o caso, posso dizer: acho que sou um ET ali numa terra de ninguém. Se se quiser, entre mim e os outros, há um século de diferença. Por ora sou o único escritor caboverdiano do século xxi. Esta afirmação não é do domínio axiológico, isto é valorativo, mas sim cronológico, embora possa ser lida também na primeira acepção.

10. JLT é um poeta do português ou português das ilhas? Por outras palavras: a tua obra é comparável aos melhores autores portugueses de origem ,mas o facto de ser cabo-verdiano pode diminui-la aos olhos dos críticos?
R: Eu gosto de dizer que sou poeta do português. Isto de ser um escritor que vem das periferias da língua e escreve no coração da antiga metrópole colonial, tem vantagens e desvantagens. A vantagem é às vezes as coisas surgirem donde não se esperava, e de espanto em espanto, se a obra for consistente, atingires patamares que provavelmente o teu país não te proporcionaria. Terá sido isso que aconteceu com «Paraíso apagado por um trovão. Apesar de estar a falar em causa própria, em vinte anos de vida em Portugal nunca vi uma recepção tão clamorosa a um primeiro livro de poesia, sobretudo tratando-se de alguém que é estrangeiro em relação à língua e completamente estranho ao meio literário. Nem no caso do meu amigo Gonçalo M. Tavares, esse escritor portentoso, dos mais notáveis que apareceram em Portugal nos últimos decénios.
O reverso é uma certa suspeita que se instala em relação a ti, quer da parte dos teus correligionários do tipo «este agora está armado em escritor português» ou «é o novo protegido dos brancos», quer dos críticos ou escritores que se julgam donos da língua, mas como já não podem exercer sobre ti nenhum tipo de tutela ou porque a tua obra alcançou uma visibilidade que a deles não obteve, entram na fase do bloqueio. A propósito destes dois pontos de vista gostaria de citar um excerto de uma crítica do António Cabrita, um dos críticos que melhor tem lido os meus livros, a propósito de Agreste Matéria Mundo: « estamos diante de um caso literário a que só a miopia de uma certa crítica obcecada com os graus de parentesco não dá o devido relevo. Com José Luiz Tavares apetece lembrar o que Brodsky escreveu sobre Derek Walcott: esta cobardia mental e espiritual patente nos intentos para converter este homem num escritor regional pode explicar-se também pela pouca vontade da crítica profissional em admitir que o grande poeta da língua inglesa é negro». Pronto, foi o meu momento de egolatria.

11. Falando da língua portuguesa é a favor do acordo ortográfico?
R: Completamente a favor, por motivos particulares. Aliás, Lisbon Blues está escrito segundo as novas normas da grafia do Português. Para além das vantagens geo-linguísticas para o português, ele vem escavacar os não-argumentos desses que se opõem ao alfabeto caboverdiano. É o mesmo princípio, ainda que mitigado, que preside ao espírito dessa reforma.

12. E o crioulo? Oficializa-se ou não...que opinião sobre esse arrastamento do processo de oficialização da língua materna cabo-verdiana?
R: A oficialização da língua era para já ter sido ontem. A língua é o primeiro pilar da identidade de um povo, e se há quem não perceba isso, então estamos mesmo mal do ponto de vista da nossa consciência enquanto povo, nação e agregado civilizacional...

13. Há uns tempos li num blog que tinha dito que provavelmente nunca será em crioulo o poeta que é em português? Porque?
R: Isso é óbvio, Abraão. Eu tenho trinta e cinco anos de labuta com o português escrito. Há toda uma literatura produzida ou traduzida para o português, uma língua com praticamente nove séculos de existência e cujo percurso de consolidação escrita é paralelo à sua expansão oral. Como poderei eu da noite para o dia inventar as imagens, metáforas, boleios, acrobacias que tenho à minha disposição em português e que fazem parte de todo um arsenal que tenho há muito interiorizado? Não é um problema da natureza da língua caboverdiana ou das suas possibilidades expressivas. É preciso tempo para que a língua atinja o seu esplendor literário, para que se construa um idioma poético que ainda se encontra demasiado indexado à matriz oral e popular.

14. Fale-me um pouco do seu projecto Lisbon Blues seguido de Desarmonia?
R: Lisbon Blues e desarmonia são dois livros autónomos escritos em tempos muito diferentes, mas que por motivo de oportunidade editorial foram juntados num único volume.
Lisbon Blues é um projecto antigo. De todos os meus livros publicados é o mais antigo em termos de projecto, se bem que da primeira versão, que data de há uns quinze anos, tenha sobrado muito pouco. É a primeira vez que escrevo um livro a partir na minha condição étnica. Sem ser demasiado óbvio (aliás, nada na minha poesia é óbvio), ele é um livro profundamente político no sentido original da palavra polis.
Quanto a desarmonia (tecnicamente o livro mais exigente que já escrevi) nasceu da necessidade (e da dificuldade) de traduzir os sonetos de Camões, e não os Lusíadas como uma colunista suína e ignara andou a propagar por aí. A certa altura desta empresa dei-me conta que só dominando a técnica do soneto enquanto poeta poderia defrontar o grande Camões. O livro que ora dou à estampa é o resultado dessa aprendizagem minuciosa, e que de um ponto de vista formal foi o livro mais fácil e mais difícil de escrever. O resultado, sem qualquer auto-complacência, não desmerece o esforço dispendido.

15. Como vê a situação política social de cabo Verde a partir da diáspora?
R: Eu tenho uma gratidão e uma admiração profunda pelas gentes do meu país, políticos incluídos, sem olhar a partidos ou ideologias. Penso que todos eles, mesmo quando há desacertos, têm tentado fazer o melhor para Cabo Verde.
Claro que me inquietam alguns fumos (e até fogo) de corrupção, a questão da segurança, sobretudo na capital, a delapidação paisagística através da construção desenfreada e de um turismo intensivo de baixa qualidade, a propriedade e o uso dos solos e, concomitantemente, a especulação fundiária na qual anda metida meio Cabo Verde, se se vier a confirmar as denúncias vindas a público. Em qualquer caso os motivos de regozijo são bem maiores que os de crítica.

16. Volta um dia para leccionar e viver em Cabo Verde?
R: Nós falamos disso há dois anos. Aliás, aproveito a ocasião para lhe agradecer, pois parece que o Abraão é o único que dá pela minha presença quando venho a Cabo Verde. Você e o José Maria Varela da inforpress.
Se está lembrado, há dois anos disse-lhe que a minha vinda tinha apenas a ver com condições psicológicas: basta-me sentir capaz de produzir cá como onde estou. As coisa mantêm-se no mesmo ponto, se bem que hoje tenha uma razão particular para vir viver para Cabo Verde.

Lisbon Blues, de José Luiz Tavares - resenha por António Cabrita

A resenha abaixo foi gentilmente enviada pelo escritor cabo-verdiano José Luiz Tavares acerca do recente livro de poesia, "Lisbon Blues seguido de Desarmonia". Lançado no Brasil pela Editora Escrituras, o livro integra a coleção Ponte Velha.
Abraços,
Ricardo Riso


TRATADO DE URBANISMO
Algumas notas sobre «Lisbon Blues seguido de Desarmonia» de José Luiz Tavares
Por António Cabrita*
1
Escreveu Eugénio Montale, poeta que amo: «a arte é a forma de vida de quem na verdade não vive: uma compensação ou um sucedâneo. Por outro lado não justifica nenhuma deliberada turris eburnea: um poeta não tem que renunciar à vida. É a vida que se encarrega de escapar-se-lhe». E não concordo nada, porque a essa falsa dualidade (vida ou arte) se antecipa a condição do âmbito.

Pense-se num piano. Como móvel não passa de um objecto. Mas o piano dá a possibilidade de criar uma obra e o intérprete dá ao piano a possibilidade de que essa obra seja – é um enriquecimento mútuo. É uma experiência com uma dupla direcção, e o piano deixa de ser um objecto para ser um âmbito. O Picasso teve a mesma experiência quando encontrou por acaso um selim de bicicleta ao lado de um guiador tresmalhado e “viu” que aquele cruzamento inesperado desenhava a cabeça de um touro. Com isso fez uma nova escultura, mas a transformação foi mútua, esse encontro modificou o seu olhar.

No plano da criação, um âmbito é o que cria um nó de relações que nos transforma. Evidentemente que a poesia é um tabuleiro ideal para o jogo da reversibilidades que o âmbito propicia, razão pela qual, como dizia o poeta brasileira Mário Quintana — lá está o paradoxo, um poeta que não amo — a poesia não é uma fuga da realidade mas «uma fuga para a realidade».

Por isso pergunta José Luiz Tavares, ecoando Rilke: «Porém, se eu gritar pelo real,/ que vivo louvado deus me trará mais do que/ o embolorado eco que na memória ecoa?» (119) Na memória das palavras, acrescente-se, nesse redil da língua, continua Tavares, «onde se cresce/ e se morre com os pulmões ungidos pelo trovão». (119) O trovão é cego, a luz que o antecipou não, mas a irradiação do relâmpago só se torna palpável (veja-se a ironia) se a palavra lhe for trânsito na sua fuga para a realidade, onde finalmente se converte em experiência, em jogo partilhado, em âmbito. De onde ressalta que a poesia é mais um meio de conhecimento que de representação e, em segundo lugar, que não há nesta hipótese a vida de um lado e a literatura de outro. É o que trama José Luiz Tavares, e penso ser o incremento dos grandes poetas.

2
Não há escapatória ao que nos tornou únicos e irrepetíveis e conformou um destino. José Luiz Tavares: pobre, negro, cabo-verdiano, com os pais na diáspora. Cedo se vê dividido por uma dupla diáspora. O da periferia da língua materna, o crioulo, e a diáspora na língua: o português. Quer-se caldo mais vulcânico? José Luiz negou o que separa, fez do que consterna uma afirmação: «Mas faz da tua vida uma arte da recusa:/ da pátria, em que célere te amortalham, /tu que só nos versos os sinais que salvam/ vislumbraste»(154), e arrancou-se pelo transe da poesia à sua condição periférica. Quando desembarca para estudar em Lisboa, com o lume programático que é o seu, já sonha devolver à lusíada língua algum brilho, uma «intacta geometria» tonificada pela aragem e um vinco de sangue, de modo a emboscar os sortilégios. Claro que em tudo isto se padece; se calhar, como diz Le Clezio, um dia descobriremos que nunca houve literatura, que ao invés houve sempre medicina. Medicina porque o autor escreve para se salvar. Catarse.

Mas vou contar um segredo: a catarse de nada vale, o que importa é o que fazemos com ela. Como a deslocamos, transfiguramos, a dotamos de sortilégio. Só esta translação, a que muda a dor em dom, importa: «E vendo assim lisboa (so beautiful)/ assalta-me a lembrança de um outro azul/— sob suas fímbrias plantei/ renques de acácias e tabuletas alusivas; /sob seus desdoirados ramos/ desamores lamentei/que não sou amigo do rei,/ nem cheganças com deuses hei./Mas se é de sua lei/ que, embora triste, seja altivo amigo/ da grei, tal sina não maldigo;/ talvez mesmo comigo diga:/grato estou a estes claros dias/ em que das lágrimas fiz maravilhas.» (LEMBRANÇA DE MANUEL BANDEIRA…). Acrescente-se a isso o Ofício, o abnegado gesto de calcetar diariamente a palavra, fazendo com que vida e a escrita convirjam, não por vaidade ou orgulho, mas porque assim se respira, e temos “o desgoverno” deste autor cabo-verdiano, omnívoro homem do mundo e da cultura que, quanto mais se expande no magno e transcontinental perímetro da literatura, mais se aproxima da sua origem.

3
Eis a cartografia e os seus endereços, nesta Lisboa contida em José Luiz Tavares.

O verdadeiro resgate deste livro é a sua consciência crioula, mestiça, o entrelaçado dos seus veios no ladrilhado dos seus versos. Ao jeito de uma bebinca. Expliquemo-nos. Temos a camada da Lisboa empírica, a da locomoção e vivência do poeta: as noites, engates, itinerários, passeios, eléctricos, turistagens, desejos, expectativas e rasgões deceptivos no plano existencial, o recorte da vida; depois temos, noutra camada, isso confrontado com a memória da Lisboa dos poetas que o poeta lê – Cesário, Vitorino Nemésio, Armando Silva Carvalho, o inevitável Pessoa, etc.- : a tradução literária -; ao que se sobrepõe nova camada com a memória transpessoal dos lugares: do rio, omnipresente, aos monumentos, às ínfimas e bolorentas tascas, ou aos cafés, miradouros, jardins e praças, e à sua importância topológica no cruzamento de comunidades díspares.

Isto leva a que, ao arrepio da maior parte da poesia hoje dominante — que usa e abusa de um só tempo verbal, coincidente com o do poema, e se concentra num episódico quadro temporal — José Luíz Tavares (como antes dele, Jorge de Sena e João Miguel Fernandes Jorge) faça da História (literária, social, da linguagem) um harmónio e convoque a «longa duração» na tessitura dos seus poemas, sem medo de para isso por vezes recorrer à dissonante elipse como processo: «Deste-me telegráficas razões/ para o desamor./ O noturno arco-íris/ outra vez presa do teu riso — por muito menos abandonei filhos/ e mulher, e automóvel/ à saída do emprego./ Rossio à noite tem ciosos habitantes,/ pretos das africas de sorriso na algibeira,/ eu diria que gente (embora a saldo/ para qualquer leve inconveniente)/ que naves já não negreiras desembarcam/ por sob um céu que públicos contendores/ disputaram o matiz -/ eu diria que fúcsia, por vezes sépia,/ como nesse fundo de caravaggio/ em que pretos de ginga e volteio/ aguardam o vago Sebastião/apreçando a jorna em indecifrável algaravia.» (Noturno do Rossio).

Depois, o seu caudal discursivo é ainda mestiço (uma intertextualidade em devir perpétuo e em mútua influência) pela associação automática, a simultaneidade de tempos históricos, as sequências de imagens intensamente visuais ou as citações literárias implícitas; sendo em si mesma a linguagem um feixe ou uma multiplicidade de registos e modos de uso que disputam pertinências e convenções e articulam o erudito e o calão, ou, lubricamente, curto-circuitam o dizer em voga com um delicioso paté de anacronias verbais (- «sabotagem linguística» pela qual o autor lembra a fatuidade épocal de todo o dizer). Dantes, dizia-se que estes poemas se comportavam como palimpsestos, agora será mais exacto pegar num vocábulo que o autor usa várias vezes: são fractais, variantes na serialização que a literatura é, figuras auto-reflexivas e costuradas num discurso que sabe colocar todas as máscaras e dilui-las ou fundi-las com uma facilidade, uma técnica ou um fôlego invejáveis.

4
A meio caminho de vida do poeta houve o “acontecimento do soneto”. É o que dá notícia o segundo dos livros aqui compilado «Desarmonia —Sonetos Esconsos».

O soneto está para a poesia como o piano para a música: 72 teclas e uma pauta infinita de variações. No caso, 14 versos e uma girândola de fogo preso. O soneto é, intrinsecamente, um oximoro, pois propicia a maior das liberdades induzida pela maior das disciplinas. Que o diga o indiano Vikram Seth, que fez um romance de 300 páginas em sonetos, «The Golden Gate». Quando se tem a ilusão de dominar o soneto — o qual deixa sempre um rabo de fora — o poeta fica obcecado, como a língua que encontra um molar rachado que sonda, interminavelmente. E constitui um dos maiores riscos no domínio da poesia, no sentido em que a disciplina a que obriga pode secar o poeta, acantoná-lo na técnica. Ledo Ivo, um dos bons poetas brasileiros da geração de cinquenta, e que debutou com longas elegias, inflectiu no soneto ao terceiro livro e ao décimo lamentaria ter-se confinado ao seu espaldar rítmico.

Mas não se pode fugir ao desafio, e José Luiz Tavares, no seu jeito de um arqueólogo da língua, não podia decliná-lo. Não é o espaço para fazer uma análise apurada de alguns poemas no limite da “saturação literária”, queria antes chamar a atenção para os dois ciclos finais, Matéria Ígnea e À Beira das Cinzas, que por si só, justificam claramente o encómio deste livro.

Diga-se que José Luiz Tavares trabalha na corda bamba de “um realismo” que tende à «rugosa realidade» de Rimbaud e transita na tensão entre a memória da literatura e a vida ao relento: «a vida/ é o que desborda deste molde de decalque» («O Flato de Orfeu», 11º soneto).

O poeta sempre oscilou entre a elegia e a (auto-)derrisão, e é brilhante nas duas vertentes – a haver alguns deslizes nos seus poemas, decorrem de eventualmente não ter doseado bem o trabalho da sístole e da diástole e não haver conseguido a síntese das suas duas pulsões. Esta tensão é bem patente neste livro; veja-se: esta dicção: «sonho-te, meu brando país do sul, pequena/ nesga de azul, ou apenas votivo perfil de lava,/ sobre cujo gume o trânsito do tempo infindo/ é rutila transparência que a memória encena» («Partes da Bruma», 4), claramente nos antípodas desta: «piéria voz decadente e glabra/ que esta rupestre moldura guarda/ tudo é rouca música em que te vens/ pobre poesia que nem o pagode já entreténs» («O Flato de Orfeu», 7). Contudo, felizes os países que têm poetas que são vários num (e não nasceu do acaso a admiração de Tavares por Nemésio, que não precisou da histeria do heterónimo para se manifestar em arquipélago) e na maioria dos poemas esta tensão é resolvida de uma forma orgânica e fecunda — como acontece em O’Neil, um lírico a contrapêlo, e em Fernando Assis Pacheco, que Tavares também evoca.

Nos dois ciclos que citei e prefiro vejo um verso viril que pelo vinco de uma prosódia segura deixam de lado o Cesário, tão evocado no primeiro livro, para avançarem mais atrás na tradição e dialogarem com Bocage. E não é pela matéria licenciosa dalguns sonetos (o que cria sempre dissabores sociais aos poetas), mas antes pela auto-análise e algum ritmo: «nem do amor digas era uma vez: puro/ ladrão de mãos de veludo, seu assomo/ é helicoidal destino do poeta impuro/ patinado por sete gerações de fumo». Mas o poeta vai mais longe na genealogia e nos dois sonetos finais do livro – absolutamente brilhantes – farejo Sá de Miranda.

Pode um poeta ecoar todas estas vozes e ser ainda como aquelas equipas de futebol que jogam mais do que a soma dos seus elementos? É o que acontece aos grandes poetas, que tudo incorporam e devolvem com uma energia que lhes é própria e singular.

E por isso só me resta aconselhar a leitura imediata deste livro de José Luiz Tavares, que reúne seguramente, entre outras peças de valia, uma dúzia de poemas que são do melhor que a literatura em língua portuguesa tem produzido. Comece o leitor por exemplo pelo poema em que o poeta dialoga com a estátua de pessoa, no Chiado. E se o poeta escreve: «Pátria futura já sombra escalavrada», acredite que é por modéstia, pois quem se apresenta assim como um vero urbanista da língua tem nas paisagens do futuro um lugar assegurado.

*António Cabrita, escritor, crítico e jornalista português
Fonte: e-mail enviado pelo poeta José Luiz Tavares no dia 19 de maio de 2009.

Henri Matisse - Jazz (exposição)

O circo de cores de Matisse

Em 1942, já tendo experimentado o recorte de papel como parte dos estudos preparatórios para sua obra La danse, Henri Matisse aceitou o desafio lançado pelo editor e crítico de arte grego Tériade para a realização de um livro de arte só com papéis colados. A história desta edição durou cinco anos. Tanto o formato quanto o título só foram definidos após 1944 e a decisão de também criar e publicar um texto veio em 1946. Em 1947 foram impressos os 250 exemplares assinados por Matisse com as imagens au pochoir - uma variação da serigrafia - realizadas por Edmond Vairel e os manuscritos gravados e impressos por Draeger Frères. O exemplar 196, exposto aqui, pertence à coleção Castro Maya. Recortando papéis previamente coloridos a guache, o artista desenvolveu um processo de desenho direto na cor com a tesoura que resultou em 20 pranchas de imagens variando da abstração a figuras de grande vivacidade, mescladas a um texto manuscrito impresso em fac-simile no qual ele trata de observações sobre assuntos diversos anotadas ao longo da vida. O próprio autor esclarece que a composição aborda assuntos ligados ao circo, contos populares e viagens, com ritmo identificável aos sons de uma orquestra de jazz. Matisse chegou a cogitar denominar a obra de “O Circo” e nela reconhecemos alguns de seus personagens típicos como o palhaço, o engolidor de espadas, o atirador de facas. Porém o livro acabou recebendo o título Jazz que o referenciava à cultura norte-americana, emergente e menos compromissada com a tradição e, por isso, naquela época fortemente associada aos valores do moderno. As imagens do Jazz personificam a própria linguagem da modernidade: vibrante e reprodutível, baseada no ritmo e na improvisação. O repertório de cores vibrantes e curvas vertiginosas a serviço da emoção e do movimento - essência do moderno - fazem dele um dos ícones da arte do século XX.

Anna Paola Baptista

Até 30 de agosto.

http://www.museuscastromaya.com.br/exposicoes.htm

Museu da Chácara do Céu
Rua Murtinho Nobre, 93 - Santa Teresa
20241-050 - Rio de Janeiro - RJ
(55) 21 2224-8981
(55) 21 2224-8524
(55) 21 2507-1932
chacara@museuscastromaya.com.br
Horários
Diariamente, exceto às terças-feiras, das 12h às 17h. R$ 2. Entrada franca às quartas.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Manifestação Pró-Hélio Oiticica e Cosmococa

Diante do vergonhoso fechamento do Centro de Arte Hélio Oiticica, a manifestação que ocorrerá no sábado será fundamental para mostrar a indignação e o descaso das autoridades com o principal artista brasileiro do século XX. Estarei lá com o meu parangolé!

Aproveitei para resgatar um texto que fiz sobre a fantástica exposição Cosmococa, no CAHO, em 2005.

Abraços,
Ricardo Riso

ATENÇÃO
23 MAIO - SÁBADO - 15h
espalha pra geral

PARANGOLÉ DE MUITOS
Leia [abaixo] a proposição de Hélio Oiticica


O IMAGINARIO PERIFÉRICO, a EBAUFRJ, a ECOUFRJ, a UNIVERSIDADE NÔMADE e o PROJETO HÉLIO OITICICA, convocam todos os artistas interessados a participar da manifestação PRÓ Hélio Oiticica a fazerem seus parangolés conforme instrução abaixo e se juntarem a esse corpo coletivo pedindo a permanência da obra de HO no Centro de Arte que leva seu nome.

23Maio - 15H - SÁBADO
Rua Luís de Camões 68 – Centro – Rio de Janeiro [Em frente ao Centro de Arte Hélio Oiticica]

Video-performances do Imaginário Periférico na obra Rodislândia no Centro H.O.

>Treme terra de Aderbal Axogum
>Nimbo Oxalá de Ronald Duarte
>Chapéu Panorâmico de Romano
>Musa Paradisíaca de BobN

Venha e faça você mesmo seu Parangolé.
Leia [abaixo] a proposição de Hélio Oiticica e entre nessa onda.

PARANGOLÉLIO
hélio oiticica
1968

INSTRUÇÕES para feitura-performance de CAPAS FEITAS NO CORPO

1- cada extensão de pano deve medir 3 metros de comprimento.

2- o pano não deve ser cortado durante a feitura da capa, de modo a manter a estrutura extensão-extensão como base viva da capa.

3- alfinetes de fralda devem ser usados para a construção da capa, que será depois cosida.

4- a estrutura da capa construída no corpo deve ser improvisada pelo participador; se a ajuda de outros participadores vier a calhar, ótimo; a estrutura deve ser construída em grupo em cada corpo participante, e feita de modo a ser retirada sem destruir, como uma roupa.

5- um grupo pode construir uma capa para várias pessoas, numa espécie de manifestaçãqo coletiva ao ar livre.

6- o uso de dança e/ou performances criadas por outros indivíduos é essencial à ambientação dessa performance: assim como o uso do humor, do play desinteressado, etc. de modo a evitar uma atmosfera de seriedade soturna e sem graça.

“estivesse eu no rio e já estaria produzindo meu parangolé revisitado. mais que a obra, o espírito de experimentação, de invenção de hélio, deve baixar no centro de arte hélio oiticica, na praça tiradentes, no mangue e no rio de janeiro.
xô o bundalelê que se acoitou nessa cidade. xô!!!!”
Chacal

Fonte: http://chacalog.zip.net/


Hélio Cosmococa Oiticica
(Ricardo Riso)

Eis que o Centro de Artes Hélio Oiticica encerra seu incompreensível período de trevas a que permaneceu durante o corrente ano, e retoma a sua programação em grande estilo com o mais significativo artista brasileiro do séc. XX: Hélio Oiticica. Mais uma vez o CAHO cumpre a sua função em divulgar o acervo de Oiticica, logo, a obrigatoriedade da visita à exposição faz-se pelo ineditismo de algumas obras da badalada série COSMOCOCA.

COSMOCOCA é composta por cinco instalações espalhadas por todo o prédio. Em parceria com o cineasta Neville D'Almeida são apresentadas peças elaboradas detalhadamente, como podemos conferir diante da presença dos manuscristos originais de Oiticica. São trabalhos que datam do distante ano de 1973, sendo que uma instalação foi montada pela primeira vez, Notations, em que há a possibilidade do visitante se banhar e interagir com a obra, no melhor estilo dos famosos penetráveis de HO.

A proposta de HO e Neville D'Almeida era fazer o que chamaram de “Quasi-Cinema”. Um filme não linear, sem início, meio e fim, projetado por slides, construídos a partir de incontáveis fotografias tiradas aleatoriamente em ângulos inusitados do tema/montagem escolhidos sem a preocupação se as imagens ficariam boas ou não. Para a composição das imagens, foram utilizados objetos de uso diário como estiletes, discos, fotografias, jornais, capas de livros etc. o que gerou imagens de grande apelo visual. O espaço escolhido era o loft de HO em Nova Iorque. A idéia, segundo Neville, era reler o cinema, quadro a quadro, sem preocupação de continuidade ou seqüência lógica, o que leva a questionar a relação temporal do espectador com o cinema e a sua postura rígida diante deste.

As instalações de Cosmococa foram definidas por HO quando apresentadas como Program in Progress. O conceito surge a partir do momento em que o visitante está em contato com uma instalação, observa as imagens espalhadas ao redor da sala intercalando-se aleatoriamente, o que causa um confronto com o ambiente exposto até o visitante se posicionar e interagir com a obra. O in progress motiva o estranhamento inicial, a nova relação espacial com o espaço expositório chama ao aconchego, ao ato relaxante, ou vagabundo como dizia o seu amigo Waly Salomão, que as instalações proporcionam.

Cosmococa. Coca... cocaína, por quê? HO manipula a cocaína como pigmento, o que chamou de rastro-coca. A coca é utilizada como máscara/maquiagem sobre as fotografias. A coca como plagiadora da maquiagem sobre o motivo fotografado. Rastro-coca: fragmentar a imagem acabada através da manipulação da cocaína, adicionar máscara-plágio à imagem, sem preocupar-se em transformar o feio em belo, ou que remetesse a qualquer máscara ritualística. O fato da coca não agir como tinta, o que violentaria a imagem, proporciona múltiplas manipulações da substância sobre as fotografias. A maquilagem, assim, é efêmera, como é efêmera a sensação de quem usa a coca, mas é essa relação com o efêmero que incita e excita a criatividade do artista num ato lúdico, até o momento que este esgota as possibilidades criadoras e decide cafungar o rastro-coca e encerra as experimentações sobre determinada imagem.

Jimi Hendrix com redes esticadas para deitarmos; Yoko Ono, Heidegger, Charles Manson e o chão é todo acolchoado com almofadas em formas geométricas a fortalecer o lado lúdico da exposição; o cineasta Buñuel no New York Times, Mothers of Invention (Frank Zappa), uma pessoa com parangolé, mais colchões e lixas para as unhas ao som de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga; uma piscina e Notations de John Cage; Marilyn Monroe e Norman Mailer em Maileryn nos convidam a vermos as instalações com todos os sentidos.
A série COSMOCOCA representa o que foi de mais transgressor na vasta e diversificada obra que nos deixou HO. Esta série representa o seu ápice criativo, pois nessas instalações estão escancaradas as principais propostas desenvolvidas por ele relacionadas à ambientação e à sensorialidade que tanto buscou aliada ao cinema, fotografia e performance. O caráter híbrido que sempre foi a sua proposta desde os bólides e penetráveis, atinge a plenitude em COSMOCOCA, as referências aos ícones da cultura pop, à filosofia e ao cinema europeu desencadeiam, implícita ou explicitamente, leituras que apropriam, parodiam, mas que transgridem invariavelmente qualquer limite. COSMOCOCA demonstra os vastos caminhos que a arte contemporânea nos apresenta e confirma HO como uma das mais radiante estrelas da pós-modernidade.

Riso
26/10/2005

CENTRO DE ARTE HÉLIO OITICICA
R. Luís de Camões, 68, Centro, tel. 2242-1213 e 2242-1012. Ter. a sex., 11h/19h; sáb., dom. e feriados, 11h/17h

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Cine Negro Sankofa - Sarraounia

clique na imagem para ampliá-la

segunda-feira, 18 de maio de 2009

I Encontro de Estudos Africanos - História/UFF 25 a 28/05/2009

Programação do I Encontro de Estudos Africanos
Departamento de História - UFF.


Dia: 25 de Maio (Segunda-feira)
18:00h – Abertura do Encontro
Mariza Soares (Depto. de História - UFF)

18:30h – Conferência
Algumas considerações sobre a dimensão atlântica da história da África
Elisée Soumonni (Diretor do Institut Béninois d'études et de recherche sur la diaspora africaine – IBERDA)

Dia: 26 de Maio (Terça-feira)
13:30/15:30h – Mesa 1
Viajantes ingleses na África Ocidental
Alexsander Gebara (Depto. de História - UFF)

Entre Ruas e Musseques: Imprensa, crioulidade e expansão colonial em Luanda (1870-1930)
Andrea Marzano (Interseção Africana - PUC/Rio)

Desenvolvimento ou barbárie? Os sentidos de “civilização” entre os filhos da terra no sul de Moçambique (1908-1920)
Fernanda Thomaz (Doutoranda - PPGH/UFF)

Colonialismo, resistência, associativismo: um estudo comparativo entre o grêmio africano de Lourenço Marques e a liga angolana
Marcelo Santana (Mestrando - PPGHC/UFRJ)

16h/18h – Mesa 2
Feitiçaria e esfera pública: ressituando igrejas e cultura no pós-guerra angolano
Luena Nunes Pereira (PPGAS/UNICAMP)

Visão de natureza entre os tsongas a partir do discurso de Junot
Marcos Vinícios Santos Dias Coelho (Mestrando - PÓS-AFRO/UFBA)

O problema da terra: Estado e a redistribuição de direitos sobre terra no Waku Kungo/Angola
Garcia Neves Quitari(Mestrando - PPGSD/UFF)

Divisões, tensões e controvérsias em Angola – uma análise das questões étnicas e raciais
Tatiana Pinto (Graduada - História/UFF)

18:30h - Conferência
O papel social da universidade em África
Teresa Cruz e Silva (Professora da Universidade Eduardo Mondlane (UEM) em Moçambique e pesquisadora do Centro de Estudos Africanos da mesma universidade)

Dia 27 de Maio (Quarta-feira)
13:30/15:30h – Mesa 3
O primeiro governo de Angola independente
Marcelo Bittencourt (Depto. de História - UFF)

A visita de Leopold Senghor ao Brasil
Maurício Parada(Depto. de História - PUC/Rio e UNIVERSO)

A nação portuguesa e os muçulmanos de Moçambique
Cristiane Nascimento(Mestranda - PUC/Rio)

Memória e História: um olhar sobre o 27 de maio de 1977
Inácio Marques(Graduado - UFF/História)

16h/18h – Mesa 4
O pensamento político social em Pepetela: reflexões sobre uma proposta de investigação
Sílvio de Almeida (Depto. de História UERJ e UFRJ)

Uanhenga Xitu: a experiência do testemunho na narrativa da experiência
Simone Ribeiro (Mestranda - PPGL/UFF)

Roças em São Tomé (São Tome e Príncipe)
Marina Berthet (PPGAS/USP)

Limites do ultramar português, possibilidades para Angola: o debate político em torno do problema colonial (1951-1975)
Carolina Peixoto (Mestre - PPGH/UFF)

18:30h - Conferência
Problemas atuais do desenvolvimento africano
José Gonçalves (Doutor em Ciências Sociais pela UFRRJ)

Dia 28 de Maio (Quinta-feira)
13:30/15:30h. – Mesa 5
Conexões transatlânticas dos retornados - século XIX
Mônica Lima (CAp/UFRJ)

O movimento de centralização de poder dos reinos de Tio, Cuba e Congo
Larissa Gabarra (Doutoranda – PUC/Rio)

São Tomé no Século XVI
Cecília Guimarães (Mestranda - UNIRIO)

Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758-1831
Cláudio Honorato (Mestre – PPGH/UFF)

16:00/18:00 – Mesa 6
Narrativas, memória e imaginação africana na era pós-colonial: ultrapassando o legado cognitivo do colonialismo europeu
Julio Tavares (Depto. de Antropologia - UFF)

Inspirações na literatura africana para a história da escravidão no Brasil
Ivana Stolze Lima (Fundação Casa de Rui Barbosa e PUC-Rio)

A literatura angolana e seus espaços ficcionais: representações da contemporaneidade
Renata Flavia da Silva (Depto. de Letras - UFF)

A crioulidade angolana na escrita de Mário António Fernandes de Oliveira: algumas considerações
Suzana Abrantes (Doutoranda - PPGAS/MN/UFRJ)

18:30h. - Sessão de Encerramento
Panorama dos Estudos africanos no Brasil
José Maria Nunes Pereira (Instituto de Humanidades / UCAM)
Laura Padilha (Programa de Pós-Graduação em Letras - UFF)

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Primeira entrevista de Luandino Vieira sobre o Tarrafal

Fonte: http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1377921&idCanal=12

“Os anos de cadeia foram muito bons para mim”


01.05.2009 - 08h37 Alexandra Lucas Coelho

No Tarrafal, Luandino Vieira escreveu sobre o que tinha vivido antes. Agora vai escrever sobre o que aprendeu no Tarrafal. Será “uma história de Angola”. Trinta e cinco anos depois de fechar como campo de presos políticos — a 1 de Maio de 1974 —, o Tarrafal ainda pode ser uma terra arável na cabeça dos homens que lá não perderam a vida. Portugal foi isto, fez isto, há sobreviventes e muito está por contar. Luandino não costuma fazê-lo.

Aceitou esta entrevista — feita segunda-feira, ao longo de uma manhã, no Grémio Literário, em Lisboa — antes de ir apanhar o avião para Cabo Verde, onde hoje está, com antigos camaradas de presídio, no simpósio sobre o Tarrafal que decorreu desde terça.

Já de Cabo Verde, disse que terá ainda coisas a acrescentar sobre o Tarrafal, em sequência a esta entrevista.

Nascido português em Lagoa de Furadouro, Ourém, a 4 de Maio de 1935, José Vieira Mateus da Graça fez-se angolano “pela sua participação no movimento de libertação nacional” de Angola, diz sempre a badana dos seus livros.

Foi preso antes da guerra colonial, em 1959. Voltou a ser preso, e condenado a 14 anos de prisão, por “actividades subversivas contra a segurança externa do Estado”, em 1961. Com dois camaradas poetas, António Jacinto e António Cardoso, andou de cadeia em cadeia, em Angola. Em 1964 foram transferidos para o Tarrafal, de onde Luandino saiu em liberdade condicional em 1972.


É assim que vai estar [em relação ao microfone]?
A olhar para si, geralmente respondo a olhar para as pessoas. Geralmente. Podia ter ficado com o trauma de não olhar para as pessoas que é para poder mentir à vontade. Mas eu nos interrogatórios fazia ao contrário, para ser convicto.

Olhava.
Olhava.

Isso não é grande prenúncio para esta entrevista.
[ri-se]. Vamos lá. Temos que fazer o trabalho.

Como foi a viagem para o Tarrafal?
Foi a última viagem do Kwanza, um velho navio que andou no transporte de colonos nos anos 30. Viemos na enfermaria transformada em prisão. E deixavam-nos sair meia hora, uma hora por dia para tomar ar no convés. Foi assim durante os dias que demorou até São Vicente.

Quantos dias?
Dez, oito, não me recordo. Depois escrevi isto nas cartas para a minha mulher. Habituei-me a escrever no Tarrafal todos os dias, então as cartas eram muito grandes. Como a regalia era escrever de 15 em 15 dias, além de fazer uma letra muito pequenina e certa, como ainda hoje conservo, escrevia dos dois lados, e tentava pôr o máximo de informação, para poder recordar-me quando saísse. Adoptei um sistema de escrever uma coisa anódina que desperta na memória o facto por trás daquilo. Se for procurar uma carta de 1965 em que falo da beleza da luz a entrar pelas grades do refeitório, sei que foi o dia em que o Ilídio Machado foi mandado para a cela disciplinar porque o director perguntou-lhe: “Então, a sopa está boa, senhor Ilídio?” E ele disse: “Está quente, está quente.”

O que levava consigo para o Tarrafal?
A roupa e os livros que estávamos autorizados a ter em Luanda [nas prisões de onde vinham]. Eu estava a estudar italiano e quimbundo, trazia uma gramática de quimbundo, a do [José Luís] Quintão, e trazia um livro de texto e uma gramática de italiano.

Passou a viagem a escrever?
Não, penso que não escrevi. O hábito que ainda tenho é primeiro viver, e depois, quando me atribuo tempo de tranquilidade, tomo notas. Esta entrevista, eu logo à noite vou tomar notas.
Esse processo é que me permitiu guardar, porque me obrigava a gravar na cabeça. Claro que a grande maioria das coisas perdeu-se. E pode ser que eu já estivesse a ver como queria guardar. Então às vezes conto coisas que não são rigorosamente verdade, só no sentido de que há um facto verdadeiro por trás.

Primeiras impressões do Tarrafal?
Eu fiquei chocado. Era tudo muito seco, árido. Aquela montanha à volta, aquela planície, só com umas árvores muito esqueléticas, raquíticas, todas inclinadas para o mesmo lado, porque o vento as obriga.
O Tarrafal tinha o fosso e os arames farpados. Agora tem uma muralha, foi construída mais tarde. E havia umas guaritas nas esquinas, onde ficavam os guardas. As casernas eram o que existe ainda hoje, toda aquela estrutura foi a construída pelos presos portugueses nos anos 30. Ficou tudo, a central de energia eléctrica, tudo o quanto eram postes já enferrujados, comidos pelo tempo, as casas tinham um aspecto muito decrépito, a secretaria era uma casinha de madeira assente em pilares.
Vínhamos de uma terra em que a vegetação é exuberante. Chegar ali e ver aquilo tudo seco... E via-se logo o isolamento. O campo estava isolado da povoação de Chão Bom e do Tarrafal. Hoje está quase tudo ligado. Era deserto, isolado.

Ficaram na caserna com os outros angolanos?
Primeiro ficámos só os três, que é o que eles chamavam período de adaptação. Depois juntaram-nos à caserna dos angolanos.

Quantos estavam lá?
Oitenta e tal. Já tinham saído alguns. Porque nós cruzámo-nos com os primeiros que saíram em liberdade condicional. Encontrámo-nos na Polícia de Segurança Pública da Cidade da Praia, saímos do cais, fomos levados à Polícia, lembro-me muito bem, ficámos sentados, tinha uma parreirazinha, e passaram por nós o Beto Van Dunen, o Belarmino Van Dunen, e já não me recordo quem eram os outros dois. Penso que eram quatro, que nesse dia tinham vindo do Tarrafal para seguirem para Lisboa, para São Vicente, para o Sal, não sei, mas para virem para Luanda em liberdade condicional.

No Tarrafal estavam uns 80 angolanos. E os 100 guineenses, com quem não se cruzavam.
Não, porque se eles saíam de tarde [para o recreio], os angolanos saíam de manhã, e na semana seguinte era o contrário.

Mas chegou a haver casernas dos angolanos separadas. Porque houve uma fase em que houve uma caserna da UNITA, não foi?
Não, não. Houve duas casernas de angolanos separadas porque éramos muitos.

Justino Pinto de Andrade contou no colóquio sobre o Tarrafal [no Outono, em Lisboa, disponível no YouTube] que chegou a haver uma caserna só com os homens da UNITA. Mas talvez isso tenha sido já depois de o senhor ter sido libertado, entre 1972 e 1974.
Só se foi depois. Os angolanos da UNITA chegaram a constituir o maior número. Porque enquanto os presos de 1961 e 1964 começaram a ser libertados, começaram a chegar os da UNITA. Eu estava lá e convivi com eles. Estávamos todos juntos. Eu cheguei a estar na caserna em que a maioria era da UNITA. Os angolanos estavam numa caserna e os guineenses estavam noutra. Depois os guineenses foram libertados, enviados penso que para a Ilha das Galinhas e veio a terceira leva de angolanos, que já trouxe os universitários.

Em 1970.
O Justino, o Vicente [Pinto de Andrade], o Jaimito Cohen, o [Eduardo] Valentim, o Gilberto [Saraiva de Carvalho]... E alguns ainda do 4 de Fevereiro [o ataque dos nacionalistas angolanos às prisões de Luanda, que desencadeia a guerra colonial] e outros que foram não sei por que motivo tirados dos campos onde estavam em Angola — o Manuel Pedro Pacavira, o Paiva Domingues da Silva, etc. E quando vieram fomos redistribuídos pelas duas casernas.
Mas houve uma altura no campo, em 1969, 70, em que éramos nove, meia-dúzia.

Durante anos viveu nessa caserna com dezenas de homens. Como se organizavam?
O mais interessante desse tempo é que estavam uns da FNLA, outros da UNITA, outros do MPLA. Só no MPLA é que havia algumas actividades que incluíam um certo grau de organização.
A maioria dos presos era protestante. À hora do culto, havia leitura da Bíblia, cânticos, era nitidamente um momento em que cada um se encontrava com o que tinha levado todos ali. Os trechos escolhidos da falavam sempre do exílio, do regresso à terra prometida.

Havia pastores.
Havia. E membros de família, pais e filhos, sobrinhos e tios.

Operários, professores...
… analfabetos. E estávamos todos juntos.

Homens de 20 anos e de 70.
E isso dava origem a situações muito interessantes de viver no mesmo espaço. O pai ver o filho nu ou o filho ver o pai. A questão do banho, porque o sítio era aberto. Mas não havia nada escrito, nenhuma organização formal. Eram mais as lealdades familiares, profissionais que faziam o convívio e organizavam o espaço. Na caserna estávamos todos arrumados e quem quisesse trocava o local da cama. A gente falava um com o outro: “Porque eu ali não estou bem...” Tinha janelas de vidro, a gente fechava quando havia muito vento. Vento havia sempre, era preciso fechar por causa do pó. Mas água e casa-de banho, quando chegámos não havia. Havia só uns penicos altos que ficavam no interior da caserna, e todos os dias de manhã nós despejávamos. Porque isso era organização da própria caserna, as faxinas, varrer, limpar, despejar. Todos os dias duas, três pessoas faziam isso, era uma escala. Um tomava conta das escalas e outro fazia de ecónomo, porque todas as semanas podíamos mandar fazer compras à vila — os que tinham dinheiro, que vinha nas cartas da família. Fazíamos a lista, o dentífrico, o sabão, as coisas que eram permitidas.

EU PUNHA A ÁGUA DOS MAIS-VELHOS

Como se lida com isso, viver anos num sítio onde não pode fechar uma porta? Cria-se uma privacidade interior?
Penso que sim, mas no aspecto físico a habituação é rápida.
Eu não tinha nenhum tabu em estar com mais-velhos ou mais-novos, mas os que eram religiosos, sobretudo os protestantes, têm normas de conduta, pai e filho, mais-velho e mais-novo, e deve ter sido muito difícil. E digo isto porque uma coisa que fez com que eu aprendesse muito com os mais-velhos foi o facto de me chamarem para o chuveiro. Aquilo era uma lata, era preciso encher no chão com 20 litros de água e depois pendurar num gancho no telhado, para depois se abrir uma torneirinha. Mas quando já se estava a tomar banho, era preciso pôr mais água. E eu costumava sempre pôr a água para os mais-velhos Fernando Pascoal da Costa, Sebastião Gaspar Domingos, Adão Domingos Martins, tendo eles filhos e sobrinhos no campo, gente jovem. A mim, isso era-me permitido. Eu punha e ficava a conversar: “Ó senhor Pascoal, e isto, e isto, e tal.” Na brincadeira dizia: “Pois é, o branco é que tem de estar agora a pôr a água, ó senhor Pascoal!” E ele: “Anda lá, andá lá, põe lá água.” Aquelas brincadeiras que fazíamos uns com os outros.
Quando o intendente Vigário chegou [o segundo director do Tarrafal que Luandino apanhou], e começou a dizer que queria fazer obras, nós reivindicámos logo isso. Então fizeram um tanque dentro da caserna, uns lavatórios.

Quando é que o intendente Vigário chega?
Então, eu ainda estive com Helder Lima dos Santos [o primeiro director que Luandino apanhou] quase um ano, portanto ele chega em 64-65. Porque entre o Intendente Vigário e Eduardo Vieira Fontes [o último director] ainda veio um jovem, muito jovem, que tinha acabado de sair da escola colonial e era caçador submarino e solteiro, então passava o tempo na caça submarina. Como o mar ali é riquíssimo, ele vinha cheio de pargos e garoupas. Foi nesse período em que o campo teve muito poucos presos, e chegámos a comer uma coisa horrível que se chama trinca de arroz — que é a varredura, aquilo que sobra no cais depois de carregarem os navios, e era peneirado e vinha para os presos — com lagosta. Lagosta cozida assim para dentro de água, sem gosto. Diziam: “Ah, vocês estavam bem, até comiam lagosta...” Mas ele distribuía por todo o lado, na vila dava aos guardas. Sobrava?, pronto, põe na refeição dos presos.

Não havia solidão dentro da caserna. Isso era um problema?
Quando abriam a caserna, nós vínhamos todos cá para fora. E naturalmente, sociologicamente, formam-se os grupos, por isto e por aquilo, ou porque estamos a conversar, ou porque já temos afinidades, ou temos assuntos a discutir. Os dos MPLA, o Ilídio, o Jacinto, eu, o Manuel dos Santos, etc, sempre conversávamos. Depois aquilo entra na rotina e ninguém está a discutir todos os dias o movimento de libertação. São as notícias da família, os que estão fora.
Criei o hábito de, todos os dias, quando estávamos com a caserna aberta, a minha vida ser no exterior. Fazia tudo quanto podia, tudo quanto fosse trabalho. Aprendi coisas de marcenaria com os meus colegas marceneiros, aprendi a fazer cestos, aprendi artesanato de palha com o Fabelo Malonguiça, que era da UPA-FNLA. E como andava muito à volta do campo, eu via os soldados portugueses a olhar para mim. Deviam pensar que eu era maluco, andar para trás e para diante, a falar sozinho. O falar sozinho era ir lendo mentalmente, em voz alta, o que já estava a escrever na cabeça. De maneira que, quando nos fechavam, eu tinha três tipos de actividade. Escrever três ou quatro linhas desse dia para a carta…

Como se fosse um diário.
Respondendo à carta da minha mulher, todos os dias um bocadinho. A luz apagava-se às nove horas, se de manhã podíamos estar ao ar livre, eu escrevia à tarde, se à tarde podíamos estar ao livre, eu escrevia de manhã. Isso era uma actividade. Depois, quando andava a escrever [livros], escrevia. E conseguimos autorização para dar aulas no interior da caserna: alfabetização, instrução primária, primeiro e segundo ciclo.

Como funcionava?
Quem tinha o terceiro ciclo ensinava os do segundo, nas matérias que soubesse. Por exemplo, o [poeta] António Jacinto era guarda-livros, como se dizia, e transmitia conhecimentos de contabilidade. E as pessoas estudavam também por si próprias. Alguns fizeram o primeiro ciclo, foi-lhes dada autorização, foram fazer exame à Cidade da Praia e obtiveram muito boas notas.

O que é que o Luandino fazia?
Eu dava instrução primária. Às vezes tinha problemas, porque tinha de riscar aquela palavra que não existia, mas depois copiava para o meu caderno de termos literários. Devo um termo ao que também foi meu mestre marceneiro, Bernardo Loureiro, que já faleceu, era da FNLA. Numa redacção sobre os meios de transporte, ele escreveu que podiam ser rodoviários, ferroviários e fluviários. Então copiei os fluviários para o meu caderno número 12. E no “Livro dos Rios” [o mais recente livro de Luandino], está lá fluviários.

Porquê número 12?
Porque fiz 24 cadernos. Os mais belos erros da língua portuguesa, copiados, ouvidos. Daqueles caderninhos escolares que tinham 20 páginas, de uma linha só. Só copiando o que ouvia, o que eles escreviam, o que fui encontrando de violações da norma.

Que é feito desses cadernos?
Uns tenho em casa. Outros com transcrições de músicas populares angolanas, em quimbundo e português urbano, desapareceram. Emprestei-os a alguém para uma exposição sobre o Liceu Vieira Dias [o “pai” da música popular angolana, que estava com Luandino no Tarrafal]. Em alguns desses cadernos havia o atrevimento do pentagrama, da notação musical. Nenhum de nós sabia música. Eu não sabia, e o Liceu era um músico de ouvido. Lembro-me que a certa altura pensámos mandar vir um manual de solfejo. Porque começámos essa tarefa, tentar escrever a música das canções populares cuja letra eu já tinha nos cadernos.

Os cadernos vinham de onde?
Punha nas compras. Vinha uma barra de sabão Clarim, um dentífrico Couto, dois cadernos escolares, ou um caderno de papel de cartas, envelopes, tudo isso era autorizado.

Escrevia na cama?
Não. Às vezes as compras [que os presos pediam] eram muitas, vinham barras de sabão Clarim, e o comerciante mandava um caixote de madeira. Então pedia-se para ficar com o caixote. Pouco a pouco cada um foi improvisando uma mesa. Eu herdei uma bela mesa que o Helder Neto tinha construído ao longo do tempo em que esteve no Tarrafal. Ele saiu antes de eu chegar. Não sei com quem eu negociei essa mesa. Disse: “Epá, esta mesa é que é uma mesa alta.” Eu tinha um banco e uma mesa.

Ao lado da cama?
Mesmo ao lado. A minha cama ficava entre uma coisa que funcionava como um guarda-fatos, que tinha um fio e uma cortina que corria, e alguns tinham lá o casaco que tinham trazido. Tinha a cama e a minha mesinha, o que roubava um bocado de espaço. E para isso tive de ficar responsável pela segurança do guarda-fato. Todas as noites armava duas ratoeiras com um bago de amendoim para apanhar os ratos. Eles instalavam-se e roíam. Uma cena caricata foi um que fez criação nos bolsos de um sobretudo, não sei se do Liceu Vieira Dias, se do Agostinho de Carvalho.

[Numa das prisões de Luanda onde tinham estado antes de serem deportados para Tarrafal, Luandino, Jacinto e Cardoso tinham de montar turnos de noite porque havia ratazanas a saírem dos esgotos]

Ratazanas não havia?
Não. Era o rato de campo. E eu ficava ali a apanhar os ratos. Era a minha função na caserna, além de cumprir com as escalas todas. Deram-nos autorização para comprar aquelas ratoeiras de mola que se armam com um bocadinho de queijo. Nós não tínhamos queijo, obviamente, mas tínhamos mancarra, ginguba – amendoim. Então, meio amendoim, aquilo muito bem posto, truc! Lá ficava o rato, o que me obrigava todas as noites a levantar, porque fazia barulho. Tirava o rato e ia pô-lo lá atrás, na casa-de banho, no sítio do lixo. E voltava a armar a ratoeira. Porque estando aquele a ocupar a ratoeira os outros podiam avançar.

Era o preço que pagava para poder escrever?
Não era um preço. Era a minha função. Houve tempo em que a caserna dava para ficarmos isolados uns dos outros, e tempo houve em que estávamos mesmo apertados. Uma questão de gestão do espaço, que era feita sempre pacificamente.

Tinha os cadernos onde anotava os erros e depois tinha uns cadernos para escrever os seus livros?
Não, escrevia nesses, de uma linha, que eu mandava vir a mais.

Além dos 24.
Os 24 eu guardei, os originais, depois dactilograva. Porque quando fui preso, em 1959, apreenderam-me a minha máquina de escrever, para conferirem os teclados e o batimento dos panfletos [nacionalistas que a PIDE tinha encontrado]. Em 1961, no segundo processo, depois de termos sido sentenciados, deram-me a máquina. E eu passei todos os anos da cadeia andando com a minha Hermes Baby na mão. Saí da cadeia com a minha Hermes Baby. E em 1980 roubaram-ma da União dos Escritores. Dava uma novela, aquela maquinazinha Hermes Baby que eu comprei quando ganhava apenas 800 escudos por mês. Foi das primeiras coisas que comprei, a máquina e quatro ou cinco livros de Jorge Amado, que quando estava no serviço militar, dei sangue para poder comprar.

Então quando foi para o Tarrafal levava os manuais, roupa, a máquina...
Aquilo que tinha comigo de uma prisão para outra. Mais tarde tiraram-me os livros de italiano e de quimbundo, não me deixaram continuar a estudar não sei porquê.

Mas a máquina deixaram.
A máquina ficou na secretaria, só uns anos depois é que consegui [recuperá-la]. A gente ia pedindo. Houve uma altura em que até nos permitiram um violão.

Escreveu desde o primeiro ano da cadeia?
No primeiro e segundo anos não tive grande apetência. Tive até muita dificuldade em voltar à escrita. “No Antigamente, na Vida” [um dos livros de histórias feitos no Tarrafal] foi escrito depois de eu ter sofrido um bom bocado, sobretudo no ano de 67-68, em que eu estive quase a desesperar. Não era exterior, os meus colegas não davam conta disso, cada um tinha os seus problemas, mas isso passou para as histórias. Por exemplo, a criação de uma figura feminina meio onírica numa das histórias, “Memória narrativa ao sol de Kinaxixi”. Hoje leio e percebo exactamente porque é que aquilo saiu.

E porquê?
Porque eu estava numa situação de total carência. Estive um ano e tal sem notícias da família, porque entretanto minha mulher em Luanda continuava ligada aos grupos da oposição. E sempre com exposições [dirigidas a todas as instâncias, sobre a prisão de Luandino], e às tantas começaram a cercear-me a correspondência.

Mas há um momento antes. Em 65, o seu livro “Luuanda” ganha o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores. Como soube?
Por um telegrama: “Parabéns pelo prémio. Abraço, Ferreira.” Aquilo foi ao director, ele deixou entrar, mas não me disseram nada. Não percebi que raio de prémio era. “Mas eu não joguei na lotaria, alguém jogou na lotaria por mim? Prémio?” Porque não líamos jornais, não tínhamos rádio, nenhuma informação. Depois recebi um cartão de Lisboa, de umas amigas que me escreviam, e soube que tinha sido atribuído o Grande Prémio de Novelística. E depois, de Lisboa, várias pessoas mandaram postais de parabéns, e os recortes dos jornais afectos ao regime, que lançaram imediatamente uma campanha, que resultou naquela acção, de destruição da Sociedade Portuguesa de Escritores e de prisão do júri.

A direcção da cadeia não lhe disse nada?
Guardou tudo! Porque de início pensou: “Isto vai enchê-lo de ânimo, portanto não lhe vamos entregar nada.” Quando começaram aquelas notícias, debates na televisão, depoimentos na rádio, pessoas que supostamente tinham vindo do Norte de Angola e me tinham visto a fazer isto e aquilo, a serrar pessoas, a matar. A designação era de terrorista. O material nos jornais era de tal ordem que o director achou que eu ia ficar com a moral em baixo. Chamou-me e disse: “Olhe, eu andei a guardar isto, mas tome lá. O senhor ganhou o prémio, veja lá o bonito sarilho que arranjou.”

Como ficou o seu ânimo?
Para escrever? Teve um efeito muito positivo.
Naquele tempo eu andava muito no campo, no fim dos trabalhos, com o António Jacinto, e discutíamos a questão da utilização da linguagem popular na literatura. Nomeadamente como eu tinha feito no “Luuanda”. O Jacinto estava contra. E a reserva dele era: “Isso aí é um beco sem saída, e portanto não vale a pena. A linguagem popular ainda não está de tal maneira consolidada que possa ser de uso corrente, que tu possas escrever e toda a gente possa ler, portanto volta para trás.” Dava discussões e discussões, para além de discutirmos a Rodésia do Sul, e o Ian Smith, e o “apartheid”, que a gente discutia tudo, todos os dias fazíamos um mundo novo.
Essa discussão deu frutos. É visível na “Estória da Menina Santa” [Do livro “Velhas Histórias”, revisto no Tarrafal] um certo travão na linguagem popular, mesmo nos métodos de alteração da língua portuguesa. Mas o prémio voltou a levantar-me o problema.

Tinha dado bom resultado, afinal.
A certa altura percebi que só podia encontrar a resposta, se era para a frente ou era para trás, escrevendo.

Escreveu “Nós, os do Makulusu” [um romance sobre a guerra colonial] entre 16 e 23 de Abril de 1967. Um jacto.
Esse livro andava dentro de mim há muito tempo. Eu não encontrava era forma. Sabia que aquilo era uma coisa que me doía, e quando as coisas me doem eu tenho que escrever.

Escreveu-o numa semana.
Não podia fazer outra coisa, vivia obcecado. Vinha para fora, sentava-me debaixo de uma árvore e ia escrevendo, escrevendo. Nessa semana ficou tudo escrito e corrigido. Foi um sonho que eu tive.

Foi antes da fase má?
Já no início. O que se consubstanciou nessa fase foi a acumulação de tudo, devido a estar sem notícias. E depois os factos exteriores, a invasão da Checoslováquia…

Como souberam?
Montámos um pequeno sistema, quando íamos à Cidade da Praia, à consulta. A gente inventava doenças e mais doenças, e alguns estavam mesmo doentes, e íamos a consultas porque depois de 1965 a política em relação aos presos era de “recuperação” e o regime prisional abrandou. Também a vigilância da Cruz Vernelha, das instâncias internacionais obrigava a qualquer coisa que se parecesse com um sistema de saúde. E todas as semanas um alferes médico fazia o que tinha de fazer com os militares destacados no Tarrafal, mas também via os presos. A mentalidade de um alferes médico era diferente. Muitos conseguiam ir fazer uma radiografia à cidade, ou era a questão dos olhos, dos dentes. E como todas as semanas havia duas saídas para a Praia, passou a haver uma ida regular de presos às consultas.

E podiam comprar jornais?
Não, não. Nem sair do hospital! Ficávamos ali fechadinhos. Mas conseguiu montar-se um sistema em que, ao chegar, encontrávamos já os recortezinhos mais interessantes. E depois era questão de os fazer entrar e circular no campo.

Como é que os levavam para o campo?
Eu tinha um par de botas e, como o meu pai era sapateiro, aprendi um pouco da arte. As botas tinham sola de borracha, abri-a e consegui fazer um fundo falso. Os outros traziam de outra maneira, mas eu ia à casa de banho, descalçava-me, tirava a palmilha, punha ali os papelinhos.

Porque já tinha o seu contacto no hospital.
Que tinha sido estabelecido pelos colegas do primeiro grupo [de presos, que entretanto tinham sido libertados]: uma enfermeira e mais uns ajudantes.

E foi assim que soube da invasão da Checoslováquia.
Nesse ano, as notícias que nos abalaram foram a invasão da Checoslováquia, a morte do Che Guevara e a morte do Hoji-Ya-Henda [nome de guerra de José Mendes de Carvalho], o jovem comandante que no Leste estava a comandar a guerrilha do MPLA. Todos nós tínhamos a noção de que ele iria ser possivelmente um grande dirigente.
Isso, somado aos anos de cadeia e à falta de notícias, eu estive a ponto de soçobrar. Pensei que nunca mais íamos sair dali.

Pensou fugir? Falava-se disso?
Não, não. Estávamos numa ilha, a ilha estava no meio do Atlântico, dentro da ilha estávamos no meio do campo, não tínhamos contactos. Fugir nunca me passou pela cabeça.

Nunca ninguém se matou no Tarrafal.
Não. Dos presos angolanos faleceram dois por doença, o [António Pedro] Benge e o velho Chipoia Magita.

Escreveu o “João Vêncio”, os amores daquela personagem...
Deve ter sido como prova em contrário.

... entre 27 de Junho e 1 de Julho de 68. Ou seja, já depois da invasão da Checoslováquia.
Estou convencido que isso depois é que me ajudou a superar.

Era uma espécie de fuga para dentro da cabeça.
Só pode ser visto assim, porque a situação à volta...

Mas lembra-se de quando lhe apareceu aquela personagem libertina?
João Vêncio? Eu conheci um meio libertino na Cadeia Comarcã de Luanda, em 62-63, quando estivemos lá, e depois ia ouvindo sobretudo do Mendes de Carvalho, dos enfermeiros, relatos de personagens que tinham esse lado meio pícaro, meio malandro, meio delinquente, e isso tudo foi-se juntando. A história talvez tenha sido ditada pela necessidade de meditar sobre a dificuldade da beleza no amor, qualquer coisa assim muito lírica ou muito poética, porque o personagem é muito contraditório. Se formos analisar friamente, é um malandro que não merece a mais pequena consideração, e por força do discurso torna-se simpático.

A dificuldade da beleza no amor, e não da felicidade no amor? Porque há uma coisa sua que diz: “Mas há amor feliz?”
Pois. Se calhar... Quantos anos é que eu tinha? Se calhar era também meditando sobre a juventude que estava a perder ali. “Se sair alguma vez, sou um velho que já não vai poder viver isto, portanto deixa-me viver desta maneira...” Sei lá, não faço auto-análise.

Isso corresponde a uma fase em que não sabia da sua mulher, não tinha notícias da família.
Depois, minha mulher, que já faleceu, foi encontrar algumas dessas cartas no processo dela, na Torre do Tombo.

Cartas que nunca lhe chegaram.
Nunca me chegaram.

A que é que se agarrou?
A uma certa tranquilidade pessoal. Acho que por muito mal que eu esteja há sempre coisas piores que sucedem aos outros. Se me dou conta de que estou mal, é sinal de que estou bem. Enquanto me fui dando conta disso... Agora, tinha medo de estar a perder uma coisa fundamental que é vivermos a nossa juventude.

A escrita salvou-o?
Salvar é muito forte, mas foi um mecanismo de defesa.

Era uma acção.
Era a maneira de estar a fazer qualquer coisa, responder a perguntas que me punha.

Uma rotina é fundamental?
Foi fundamental. Embora eu tentasse sempre incluir coisas que fossem fazendo diferença. Quando apareceu a biblioetca, ofereci-me para organizar. Quando estava organizada, ofereci-me para bibliotecário. Quando foi partida em capela e biblioteca, ofereci-me para ajudar o padre à missa, porque tinha feito isso em criança com minha mãe, na missão de São Paulo [em Luanda]. Quando foi possível criar galinhas, ofereci-me para tratar das galinhas, e fizemos uma horta. Depois, aprender a trabalhar a madeira, e fazer cestos. Estava eu a fazer uns passarinhos de madeira quando me vieram dizer que ia para Lisboa, em liberdade condicional.

A biblioteca surge quando?
No meio do campo havia uma casa de cimento que tinha sido de madeira, que era para escola, biblioteca e capela. Uma mesa, uns bancos corridos, uma parte separada onde ficaria o altar. E depois a Gulbenkian mandou uma biblioteca básica de língua portuguesa, em 65, 66. Eram vários caixotes com livros, que ficaram muito tempo a ser penteados pela censura do campo. Mas, a certa altura, ou deixavam entrar aquilo ou não deixavam entrar a biblioteca. Então, Namora, Redol, os livros da Agência Geral de Ultramar, a colecção dos arquivos de Angola onde estavam publicados os documentos históricos do museu… Muita coisa que deu logo pano para mangas. Toda a gente começou a ler.

Foi uma festa.
Uma festa. Montou-se um sistema de requisições, o preso vinha com o guarda, entregava o livro, trocava-o. E depois o padre passou a dizer missa ali.
O jantar era por volta das seis e meia, faziam a chamada, encerravam-nos, e das oito às nove é que era leitura, jogar as cartas, conversar, uma pessoa ia para a cama do outro, ficava a conversar, e os cultos. Às nove acabava a luz, tudo a dormir.
Os protestantes juntavam-se à volta do pastor, liam versículos, comentavam, cantavam , eu também às vezes cantava, porque os cânticos eram em quimbundo e era uma forma de eu melhorar o meu quimbundo, que me estava a ser de novo ensinado pelo Nobre Freire Pereira Dias, o Mendes de Carvalho, o Zé Diogo. A cada um eu perguntava, sobretudo aos mais velhos, o significado de certas palavras. O António Jacinto fez um dicionário de quimbundo, copiando do dicionário que está publicado, do Assis Júnior, cada uma das entradas numa ficha, e depois obtendo quatro informações diferentes de quatro mais-velhos.

Ou seja ampliou
Esse dicionário saiu com ele, está com a viúva. São quatro caixas de leite Nido com fichinhas arrumadas. A paciência dele... Todos os dias acabava o pequeno-almoço, sentava-se e fazia na minha máquina as fichas. E à tarde ele ia [ter com os mais-velhos]: “Senhor Pascoal, o termo ‘caueto’? E o senhor Pascoal dizia: “‘Caueto’ quer dizer...” E ele punha “FPC”, Fernando Pascoal da Costa, e a data de nascimento do velho Pascoal, sei lá, 1905, talvez. Sebastião Gaspar Domingos, Adão Domingos Martins, e o outro Pascoal de Carvalho Júnior, a quem chamávamos Tio Candondo. Os que eram de Malange ele punha, ou de Luanda. É uma obra preciosa que aquele homem fez. Eu escrevia, mas nisso é que ele passava o tempo.

Depois das 9 da noite não se passava nada? Não escrevia às escuras?
Não, não, não. Dormíamos mesmo. E acordávamos muito cedo.

O que leu no Tarrafal de marcante?
“O Delfim”, do José Cardoso Pires. “El Siglo de las Luces”, do Carpentier, que só entrou porque o padre deu autorização. Os Arquivos de Angola, com a transcrição dos documentos todos, “Carta do rei do Congo”, “Carta de Doação de Dom Sebastião a Paulo Dias de Novais”. Aqueles volumes sobre Portugal feitos pela Agência Geral, Alto Douro, Minho, com fotografias e as descrições todas, que eu não sabia nada de Portugal, nunca tinha visto.

Guimarães Rosa?
Só o “Grande Sertão Veredas”. Em certa altura eu ditava uns trechos pequeninos a partir do “Grande Sertão” e tinha um aluno da quarta classe que sabia de cor Guimarães Rosa. Dizia algumas daquelas frases. Eram tão bonitas que ele dizia.

Então usava-o para dar aulas?
Às vezes ditava frases como “Soletrei, anos e meio, meante a cartilha, memória e palmatória.” E perguntava: “O que é que isso quer dizer?” “Quer dizer que o professor lhe batia.”
Foi uma coisa muito interessante. Por exemplo, Aquilino, eles diziam: “Esse português só atrasa…” Por causa dos regionalismos.

Não gostavam?
Não percebiam, e eu não sabia explicar.

NUNCA ME ZANGUEI COM NINGUÉM

Alguma vez foi para a “holandinha”?
Não. A “holandinha” era a cela disciplinar.

Dentro de uma arrecadação?
Eu não tive conhecimento. O próprio termo eu encontrei recentemente. Penso que foi já depois de terem entrado os presos do PAIGC.

No seu tempo não se falava em “holandinha”?
Não. Havia a cozinha, o refeitório, as oficinas e havia uma última sala, e essa foi dividida em três, fizeram-se três celas para isolamento e chegaram a funcionar como celas disciplanres. Eu sei porque aí estiveram os presos cabo-verdianos e o António Cardoso, castigado, também esteve numa delas, ao lado deles, e eles o apoiaram com cigarros e outras coisas.

Nunca foi castigado?
Não.

Nunca viu castigos, espancamentos?
Não.

Nem soube?
Não, no período em que estive lá.

Quem eram os seus amigos?
Dava-me com toda a gente, convidavam-me para cantar quando eu dizia que queria cantar em quimbundo. Não me zanguei com ninguém, muito embora tivesse havido ocasiões em que as relações entre certos presos eram tensas. De respeito, mas não conviviam.

Por razões políticas?
Não, pelo efeito do isolamento. Do ponto de vista físico, o que mais atacou os presos foi uma doença hemorroidal, e do ponto de vista psíquico, a mania da perseguição. A situação em que estávamos, as depressões, às vezes as notícias nas cartas, e depois um dito, uma frase, um riso, eram interpretados como sendo uma indirecta. Mas não tive conflitos. Não saí do campo com relações cortadas com ninguém.
Falo com todos, infelizmente muitos já faleceram. Mas a pessoa com quem mais falava e discutia mesmo a sério era com o António Jacinto. Depois da saída do Ilídio Machado, o António Jacinto ficou sendo a pessoa mais proeminente daquela fase da fundação do movimento nacionalista, e da fundação das organizações políticas e culturais.
Mas eu já era amigo do Jacinto antes do Tarrafal. O grande amigo que fiz no campo foi o Agostinho Mendes de Carvalho. Vou a Luanda e tenho sempre que ir almoçar com ele. E a gente isola-se, fica a almoçar e conversar.

E quem são os outros tarrafalistas que estão em Portugal?
Aqui, está o Manuel dos Santos Júnior, o André Franco de Sousa. Vêm de vez em quando alguns, ficam por algum tempo em tratamento. Agora a residir... Nobre Ferreira Pereira Dias, também me dizem que está cá. Manuel Pedro Pacavira é o nosso embaixador em Roma.

Quais são as relações com os que vivem cá?
Não os vejo. O Manuel dos Santos Júnior, soube noutro dia que ainda estava por cá — pensava que estava em Luanda. Soube pela Diana Andringa, que me disse que ele não andava em muito boa situação, porque havia um problema qualquer de documentos que não obtinha da embaixada. Depois, quando eu liguei, já tinha os documentos.

A prisão forja amizades ou pelo contrário?
Pode forjar e destruir, como tudo. Não é uma incubadora de amizades.

Porque é que nunca escreveu as suas memórias do Tarrafal? Porque é não gosta de falar disto?
Também por aquilo que eu disse. Não sei se estou a dizer o que já seleccionei. Se estou a dizer a verdade. Por outro lado, porque tenho todo esse material disperso, e gostava de ver e, lendo, recordar.

Mas vai fazer um livro com isso?
Creio que não.

Se não são os senhores a escrever essa história, ela vai desaparecer.
Eu acredito que sim, mas não acredito na importância disso.

Não é um ensinamento, uma herança?
Se as pessoas aprendessem alguma coisa com as memórias, não havia guerras há muito tempo.

Acha que é inútil?
Também não, porque não somos os medievais que já fomos. Agora, não acredito que o poder da memória sirva para modificar o comportamento das pessoas no futuro. Não sou contra, mas está um dia de sol e eu não fico em casa, vou para o sol. Está de chuva, fico dentro de casa, mas não escrevo, leio, e se não posso ler ouço música. Isso é muito mais importante para as pessoas do que a leitura de memórias.

A sua correspondência do Tarrafal, que devem ser milhares...
Não faço ideia, mas são umas malas.

Está onde?
Em Luanda. Tudo quanto tenho de meu mesmo está em Luanda, em três casas.

Como é que funcionava a censura? O que é que eles censuravam?
A parte política já ninguém se atrevia a escrever. Censuravam tudo quanto fosse referência às condições em que estavam a viver. “A comida é má” — isso eles eram muito atentos. Cortavam.

Ou riscavam
Mas de um modo geral cortavam. A correspondência censurada estará nos processos dos presos. A certa altura deixaram que lêssemos “A Bola”, que tinha muito bons cronistas, era muito bem feita, e “O Arquipélago”, o jornal do governo. E lá veio uma notícia: “As grandes chuvadas são uma benção, só foi pena terem levado grande parte da terra arável para o mar.” Eu li aquilo, e nesse dia, para minha mulher, escrevi: “Tem chovido muito, vai ser um ano de muito milho e feijão, seguramente que iremos comer melhor, é pena que a chuva tenha levado grande parte da terra arável para o mar.” Depois perguntei: “O Correio foi? e o guarda Alcuíno, a quem chamávamos o pombo-correio: “Já levei. Mas a carta de “nho” Engrácio não levei.

Como é que lhe chamavam?
Como o meu nome é José Vieira Mateus da Graça, no campo chamavam-me “Ó Graça”, os guardas. Mas para os cabo-verdianos Graça é uma palavra muito dura. Então, “nho Graça” dá “nho Engrácio”. Depois vieram-me chamar. Fui ao director: “A sua carta, tenho que cortar isto.” “Senhor director, isso é o que está no ‘Arquipélago’.” “Mas quando o Arquipélago escreve isso é por um motivo positivo, e quando o senhor escreve isso é como crítica. E riscou.”

Esse director era qual?
Penso que era o Eduardo Vieira Fontes, mas não posso garantir.

Como eram as suas relações com os directores?
Nenhum me tratou com falta de respeito humano.

Não tem razão de queixa?
Não, de nenhum.

Que memória guarda de Eduardo Vieira Fontes, o último?
Penso que ainda está vivo. Só se pode analisar a acção dele pensando que era da escola colonial e que tinha uma formação católica arreigada, a ponto de ter feito cursos de cristandade. Então ele chegou, com a missão que aquele campo tinha, quebrar psicologicamente, e estava perfeitamente convencido da bondade da missão, de que era para nosso bem. Mas convicto! Quase todos os dias entrava na cozinha, vistoriava tudo. Claro que não alterava o menu, o campo seguia a sua rotina, arroz com atum.

Era o que comiam?
Estivemos nove meses a comer atum todos os dias. Almoço e jantar. Quando não era com arroz, era com mandioca. Atum fresco, pescava-se ali. Pão ao pequeno-almoço e café com leite. Fruta, éramos nós que comprávamos. A sopa era aguada. Ele via e tentava melhorar sempre, dizia ele, as condições, quer no posto médico quer na alimentação.
Com esse perfil, era muito rigoroso no cumprimento do regulamento. Mas era um indivíduo muito inteligente. Tinha um tipo de comportamento com os políticos e outro com os cabo-verdianos no campo de baixo.

Presos de delito comum.
E mesmo com os presos políticos, tinha um comportamento diferente com os presos de Angola e com os de Cabo Verde. Quando às vezes falo com os meus colegas de Cabo Verde, eles dizem: “Ele connosco não era assim.”

Como?
Bonzinho, simpático, acolhedor, humano, respeitador. Chegava e dizia: “Meus senhores, estejam à vontade.”

Com os angolanos.
Com os angolanos.

Com todos ou diferenciava?
Não, não, isso nunca o vi fazer. E estávamos ali brancos, negros, mestiços, camponeses, analfabetos, gente letrada.
Mas por exemplo, conseguiu levar de visita o escritor cabo-verdiano Manuel Lopes, e o alcance para os presos de Cabo verde foi passar-lhes uns sermões, mas a nós, não, foi lá vangloriar-se: “Meus senhores, eu hoje trago-vos aqui um grande escritor de Cabo Verde!” Trazer ali um grande escritor de Cabo Verde, ele autoridade do Estado Novo, era exemplo. E estávamos, dos angolanos, Pacavira, Mendes de Carvalho, o Cardoso, Jacinto, Luandino...
Foi fazendo perguntas, nós íamos respondendo.

A PIDE refere explicitamente que Manuel Lopes é autorizado a visitar Luandino Vieira e Carlos Lineu.
Pois, o Lineu é de Cabo Verde.

Exacto. Então o Manuel Lopes não entra na caserna dos angolanos para falar consigo?
Não, ficamos a conversar todos, os escritores sobretudo. E toda a gente à volta.

O Vieira Fontes esteve sempre presente?
Entrou e saiu com ele.

Porque é que Vieira Fontes autoriza essa visita?
O Manuel Lopes deu um sermão aos presos cabo-verdianos.

A dizer o quê?
“Vocês são malucos”, se calhar. “Metidos nisto”, um sermão no género de os recuperar.

Então era uma operação do Vieira Fontes?
Acho que sim. Não sei se foi o Vieira Fontes que se lembrou e o convidou, ou se foi alguém que propôs essa operação. Mas no caso de Angola não fez sermão. Conversámos de literatura.

A PIDE não gosta dessa visita e isso aparece nos relatórios. O Vieira Fontes, que está vivo, nos EUA e foi entrevistado por José Pedro Castanheira, diz no último “Expresso” que a PIDE “não metia o bedelho” no que se passava no Tarrafal. Ele próprio tem processo na PIDE e há estes relatórios em relação a ele. Ficou com ideia de que ele teria más relações com a PIDE?
Não. Não fiquei.

Ele não se referia à PIDE?
Não, não.

Ele diz que autorizou outras visitas como o antropólogo Jorge Dias e o historiador António Carreira. É verdade?
Eu já não estava. Ele autorizou? A minha mulher visitou-me no campo e andou seis anos para obter autorização de Lisboa.

A sua mulher visitou-o apenas uma vez?
Uma vez.

Em que ano?
1970.

Isso era bastante raro.
Muitíssimo. Implicava seis anos de luta por uma visita e o argumento é que eu tinha deixado o meu filho com três meses e ele tinha nove anos. E portanto havia a questão da figura do pai.

Então a sua mulher vem com o seu filho Xexe...
Ficou não sei quantas semanas na vila do Tarrafal., em casa de Dona Eulália, “nha” Beba.

Quem é?
No Tarrafal quando se fala de “nha” Beba... Vai fazer 100 anos para o ano. Vamos fazer uma festa com foguete, banda de música e tudo. “Nha” Beba é a mãe de Lilica Boal, que foi da escola-piloto do PAIGC na Guiné, e toda a luta de libertação da Guiné.
Minha mulher ficou em casa dela e tínhamos duas visitas por semana nas duas semanas ou três que esteve lá.

Podiam ficar sozinhos?
Não, não. Visita com o chefe dos guardas a assistir à conversa e tudo.

O chefe dos guardas que se chamava...
Nesse tempo era o senhor Bonança, um algarvio muito simpático, que entrava com o radinho de pilhas ao domingo à tarde pela caserna: “Boa tarde, então o que é que estão a fazer?” A jogar damas, por exemplo. E ele fingia que se esquecia do radinho ali. Posso jogar? Sentava-se a jogar damas e às tantas dava o noticiário, Emissora Nacional, Lisboa. Eu acho que ele não era esquecido. Às vezes fazia desses pequenos mimos aos presos.

O Vieira Fontes estava a tentar a sua libertação. Isso também está nos relatórios da PIDE.
Porque na visita que a minha mulher fez ao Tarrafal, esteve em casa do Vieira Fontes, falou com a mulher dele, expôs as suas razões.

Ao recusar um pedido dele para a sua libertação, a PIDE diz que “há algum tempo” que o director mostra interesse em Luandino e fala na “amizade que dispensa ao recluso”. Há indicações de que houve um esforço pelo menos desde 1970 para a sua libertação.
Isso eu não sabia.

Os irmãos Justino e Vicente Pinto de Andrade enviam uma mensagem a Vieira Fontes pelo “Expresso” dizendo que não guardam ressentimento. Se lhe enviasse uma mensagem seria nesse sentido?
Não guardo nenhum ressentimento ao Eduardo Vieira Fontes. Compreendo perfeitamente o homem e compreendo-o na função que estava ali exercer. E eu estava no meu lugar.

Mas é possível falar numa amizade?
Não, não, não. Escrevi-lhe três ou quatro postais. Por altura do Natal ou por agradecimento pelo modo como tinha tratado a minha família durante a visita. Penso que em todos esses postais está aquilo que devo a qualquer pessoas. Não é amizade, é o respeito e a gratidão pelas coisas que fazia — e que podia deixar de fazer.

O Vieira Fontes tem correspondência sua, e desenhos, e o “Expresso” publica um postal de Natal que lhe enviou com um desenho de astronautas. Natal de 71, portanto ainda estava no Tarrafal.
[Luandino vê o jornal]

Mas este desenho não é meu. É um postal que envio já depois da visita da minha mulher. Penso que a esposa do Dadinho [Vieira Fontes ] é Dona Regina, e depois daquela visita seguramente que minha mulher ficou em comunicação sempre com ela, a insistir nos esforços para libertar o marido.

Ele publica correspondência sua no livro que escreveu. Leu esse livro?
O Vicente [Pinto de Andrade] mostrou-mo: “Olha, estão aqui os cartões.”

O Luandino era um mito desde o “Luuanda”. Sentia que no Tarrafal beneficiava por pertencer a uma elite intelectual, pela sua própria aura?
Não. Sentia que beneficiava do facto de ser escritor, mas isso era partilhado com mais dois ou três. E beneficiava por algo que não era em mim deliberado, o modo como trato toda a gente. É evidente que tomo em conta a função que estão a exercer, mas aquele mínimo de respeito humano eu nunca ultrapasso. Em termos humanos, eu tratava o Vieira Fontes como tratava “nho” Pina, o cozinheiro, “nho Alcuíno”, o pombo-correio, como tratava qualquer pessoa.
De tal modo que lá no Tarrafal as pessoas lembram-se de mim, acho que são minhas amigas. Fiz amizade com uma senhora que começou por me vender as bananas à porta.

Havia gente que ia vender à porta?
No princípio. Abriam o portão e nós comprávamos as bananas, e isso. Depois permitiram-nos receber leite. Essa mulher forneceu-me meio litro de leite durante oito anos porque tinha uma boa vaca, dava um litro e meio. Uma vez em que eu disse que havia vacas que davam 20 litros, ela chamou-me mentiroso: “Não pode ser, eu tenho uma das melhores vacas do Tarrafal e dá um litro e meio.” Foi muito importante na minha vida, essa senhora. Ela arriscou tudo, e no fundo é por causa dela que hoje sou escritor, porque os manuscritos das histórias que escrevi no Tarrafal, foi através dela que os pus cá fora. Quando saí, revistaram-me tudo e eu não tinha nada. E quando cheguei cá fora, ela tinha tudo guardadinho em casa dela.

Como lhe podia passar os manuscritos?
Porque construí a relação com ela ao longo de oito anos. E tive que ir conquistando a confiança dos guardas e dos chefes e dos directores, ao ponto de me permitirem, em vez de receber, oferecer meia quarta de milho a ela no Natal.

Os manuscritos iam com o milho?
Como eu não tinha milho, tinha de comprar milho no comerciante. Na lista das compras, pedia duas quartas de milho, ou três, com balaio [cesto]. Vinha, era vistoriado, entregavam-me. Então no fundo do balaio, o papelão canelado com as folhas, tudo colado. Como já tinha conquistado a confiança do chefe dos guardas, no dia de Natal ia ao gabinete: “Senhor Bonança, está aqui o balaio, faça favor o senhor de vistoriar, porque é chato fazer isso na frente de “nha” Ana, que vem com os meninos para receber a prenda.” E ele: “Não tá nada aqui?” “Faça favor de ver.” Viu e já ficou lá o balaio.

Com os manuscritos no papelão.
A partir daí era um balaio totalmente inocente. Depois quando [a senhora chegou], eu disse: “Quero entregar pessoalmente.” [Voz do guarda:]“Vai lá.” [Voz de Luandino:]“‘Nha’ Ana, bom Natal, para os meninos.” [Voz de “nha” Ana]: “Ah o senhor não precisava…” Levou, chegou a casa, tirou o milho, os papelões, e viu os papéis todos. Guardou.

Mas já sabia?
Não, mas é alfabetizada, viu, guardou. Dias depois, quando veio trazer o leite, eu disse: “Guarde-me os papéis.”

Quantas vezes fez esse truque?
Várias vezes. Pus tudo cá fora.

A CRUZ VERMELHA NÃO FALOU COMIGO

Consultou o seu processo na PIDE?
Não, não tenho curiosidade.

Num relatório, o Vieira Fontes diz que a Cruz Vermelha só teve palavras de elogio nas duas visitas que fez ao campo. Isto significa que os presos não tinham queixas ou que não foram sinceros?
Sei que a Cruz Vernelha visitou o campo, mas comigo não falaram. Se falaram com alguém, não sei quem foi. Vi a Cruz Vermelha, sim, visitou a capela, o refeitório, a casa onde se lavava a roupa, viu todas as estruturas do campo. Uma das vezes, penso que eu estava na biblioteca, viu a biblioteca, eles disseram: “Este é o bibliotecário.”

Mas não o entrevistou?
Não, não.

E não entrevistou outros camaradas seus?
Que me lembre, não.

[Depois desta entrevista, Luandino telefonou do Tarrafal para acrescentar isto, de que entretanto se lembrara: “Não nos deixaram falar com a Cruz Vermelha sem a presença do director, porque não falávamos inglês. Alguém disse: ‘Mas o Graça [último apelido de Luandino] fala inglês…’ O director não aceitou e eles foram-se embora. Da segunda vez, não me recordo.”]

Não houve conversas com a direcção depois dessas visitas?
Eu não tive. É uma coisa que a minha memória não esqueceria.

Em 1972 sai em liberdade condicional.
Foi de surpresa.

De surpesa?
Mesmo tendo conhecimento de que havia diligências continuadas da minha mulher — e provavelmente muita pressão, e pressão exterior, e começámos a saber de mudanças com Marcelo Caetano e tal —, depois daqueles anos esperava concluir o cumprimento da pena. Esperança tinha, mas não ilusões.
De modo que quando me avisaram fui apanhado a trabalhar na carpintaria. Recordo muito bem que foi de manhã: “Arranje as suas coisas que vai sair.” Vieram os guardas e o chefe e toda a gente. E eu “Sair porquê?” E disse: “Só saio à tarde. Vou acabar o que estou a fazer, depois vou arrumar as minhas coisas, depois vou almoçar o último almoço com os meus companheiros.”

Saiu sozinho?
Fiquei no Tarrafal à espera da minha mulher e do meu filho, na casa de dona Beba. Ainda ficámos lá um mês.
E depois viemos para Lisboa. Múltiplas peripécias. Mesmo com liberdade condicional era residência fixa.

Ao fim de oito anos de Tarrafal, como é que se aterra em Lisboa, uma cidade desconhecida para si?
Mas eu vivo assim, cá no meu mundo, e é uma espécie de mundo ambulante que vai comigo para onde vou. Comecei a trabalhar nas Edições 70, o meu velho amigo Sá da Costa deu-me logo emprego.
Gostei muito desses dois anos que passei em Lisboa. Deu-me tempo para começar a articular as ideias, a minha pessoa. E havia a célula clandestina do MPLA, que era o Comité 4 de Fevereiro.

O Tarrafal modificou-o?
Não.

Não deixou que o modificasse?
Em mim, obrigou a sedimentar aquilo que eu já era, de maneira muito forte. Podia ter dado para o contrário. Eu podia ter ficado uma pessoa egoísta, amarga, com urgência em viver tudo ou ter tudo ou usufruir tudo. Mas como já entrei sem nada, apesar de ser um privilegiado na sociedade onde vivia, se não entrei formado entrei com os materiais todos da formação. O que o campo fez foi endurecer isso.
Considero que os meus anos de cadeia foram muito bons para mim. Estou a dizer do ponto de vista estritamente individual.

Porque o fortaleceram?
Às vezes, de uma maneira quase leviana, costumo dizer que quem entra bom sai melhor, quem entra mau sai pior. O que é uma injustiça fantástica, mas em mim não consigo ler de outro modo. É por isso que me custa falar do Tarrafal. Não guardo ressentimentos a nada nem a ninguém e procuro perceber o que é que daquele tempo foi bom.

A sua vida seguinte, de que não vamos falar nesta entrevista, é a militância na construção de um Estado, de Angola. A forma como isso aconteceu foi muito determinada pelo que viveu no Tarrafal?
Foi.

De que forma?
Ainda hoje acredito que é possível aquilo com que sonhávamos. Aprendi no Tarrafal que nem que dure 50 anos, 60 anos, a situação actual é apenas um desviozinho no curso da história. Claro que gostava de ver tudo isso em vida minha…

Então, paciência e determinação.
Paciência, determinação e um bocado de modéstia em relação à capacidade de modificar as coisas. O voluntarismo em si já é…

Uma arrogância?
É, em relação à paciência que se tem de ter. Mas é necessário. É preciso sacudir a árvore. Se as maçãs estão verdes elas não caem. Mas é preciso sacudir antes que elas apodreçam e caiam no chão.

Isso também é aprendizagem do Tarrafal?
É. Era preciso ter muita paciência. Eu eduquei um pardal, que é um pássaro livre por natureza. Fiz amizade e, ao fim de quase dois anos, vinha e pousava-me no ombro. O cozinheiro dizia que eu era bruxo. E foi uma operação de paciência. Eu sentava-me sempre no mesmo sítio, a fazer a mesma coisa, a comer a mesma coisa, bagos de mancarra [amendoim], que era o meu suplemento diário para o ferro. Comia, comecei a atirar, e claro que as aves vêm, até que o mesmo pássaro começou a vir. Então, é reduzir a distância da comida, ganhar a confiança até ele vir comer ali. Depois a passagem mais difícil — não sei o que tem a mão humana que não há bicho nenhum que não tenha medo dela —, até comer na minha mão. E depois, naturalmente, eu podia fazer assim [faz um gesto], que ele vinha comer.

Isso é uma aprendizagem também para organizar militantes.
Nunca pensei nisso dessa maneira [ri-se]. Mas a paciência dá para tudo.

Agora vai escrever?
Depois deste colóquio do Tarrafal, vou entrar em fase de escrita, não vou terminar a “Trilogia dos Rios” [de que já saiu um volume e sairá em breve outro], e vou fazer um romance.

Que vai ser...?
Sobre tudo quanto aprendi no campo. O que escrevi no campo era sobre a curta coisa que tinha aprendido na curta vida que tinha. E agora é sobre o que os meus companheiros me ensinaram no campo de concentração do Tarrafal.

Ou seja?
É sobre a história de Angola.

De trás para a frente?
Não sei. Gostava de a contar de trás para a frente. Só sei que a partir de Julho vou de novo tentar.