A entrevista abaixo foi publicada no semanário cabo-verdiano A Nação em 21/05/2009, e gentilmente enviada pelo escritor cabo-verdiano José Luiz Tavares. JLT foi selecionado entre os cinquenta finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2009. Melhores informações em http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=23443&idSeccao=518&Action=noticia
Abraços,
Ricardo Riso
Entrevista a José Luiz Tavares — Poeta
1. Considera-se um “enfant terrible”?
R: Não, não me considero. Terrível era Ivan e, que eu saiba, não sou russo. No entanto não deixo de reconhecer que possuo uma personalidade poética áspera, detonadora de atritos, no sentido em que a física o entende.
Enfant, serei sempre, pois é preciso conservar uma certa inocência, que não ingenuidade, e aquele módico de pureza que é o melhor antídoto contra a peçonha e as safadezas do mundo.
Claro que eu passo por ser um indivíduo desbocado, arrogante, destemperado, porque os senhores feudais da literatura caboverdiana e da lusofonia, os compadres do elogio mútuo e das palmadinhas no lombo não estavam habituados a que alguém lhes olhasse nos olhos e dissesse ao que vinha, independentemente de lhe assistir razão ou não. Ainda tenho presente o célebre discurso da Gulbenkian na cerimónia da entrega do prémio Mário António, em que metade da assistência ficou a olhar para mim entre o atónito e o assustado. Até amigos meus disseram-me que tiveram receio de aplaudir.
2. Como estudioso, como poeta existe de facto de uma escrita contemporânea cabo-verdiana?
R: Não sou estudioso no sentido em que as pessoas entendem habitualmente essa figura. Eu estudei, li, apetrechei-me teórica e tecnicamente para exercer a minha arte com a mais funda consciência dos seus pressupostos, não para produzir obras teóricas fora do âmbito da criação artística. O grande pensador de origem judaica George Steiner, chamava a essa capacidade teórica incapaz de criação inteligência parasitária ou secundária.
Tudo aquilo que faço e sei tem que convergir na obra. Para elucidar este aspecto, conto-te este episódio: em Setembro de 2004 pedi ao João Vário que apresentasse os meus livros paraíso apagado por um trovão e agreste matéria mundo na feira do livro do Mindelo. Vário, que possuía um notável conhecimento das coisas da arte, e que chamava agreste matéria mundo de livro de ensaios (eu prefiro poesia do pensamento ou lírica reflexiva) disse-me que não o faria, pelo simples facto de que os meus livros não tinham genealogia na literatura caboverdiana e que não eram livros que podiam ser apresentados assim do pé para a mão. Prometeu escrever sobre eles um artigo para a revista anais, mas infelizmente o seu estado de saúde não lho permitiu.
Quanto à contemporaneidade ou não da escrita caboverdiana, só entendo a questão num âmbito comparativo, isto é, se aquilo que se faz cá é co-mensurável com aquilo que se faz lá fora. Penso que nalguns aspectos sim, embora a literatura caboverdiana tenha padecido sempre de um problema de desfasamento, o seu grande problema genético. Repare, por exemplo, naquilo que é considerado o nosso modernismo: esteticamente é profundamente reaccionário em relação às grandes correntes, se pensarmos nas vanguardas que nesse tempo vicejavam e feneciam por esse mundo de deus.
3. Na tua condição de intelectual, de poeta, de homem incomoda-te ser rotulado “escritor cabo-verdiano” com todos os pressupostos que daí advêm? Que escritor, que género de literatura quem lê a sua obra vai encontrar?
R: Eu não sou intelectual nem tenho essa ambição, o que não me impede de atirar umas pedradas de quando em vez, mas sempre a partir da minha condição de escritor e de homem livre que não ambiciona mais nada senão traçar os contornos dos mundos a haver e esboçar o rosto do povo do futuro. Ambição sísifica, provavelmente, mas eu não nunca me conformei com os rasos eventos do dia ou com os pequenos mundos além da esquina.
Escritor e caboverdiano sou, como já respondi em certa ocasião, uma coisa está subsumida na outra, ainda que múltipla e fragmentária seja a condição de todo o criador autêntico. Agora o que é preciso é perceber se determinados livros se encaixam na sua tradição nacional, ou se se enquadram em âmbitos mais vastos e mais desterritorializados. Ou se é a condição étnica, jurídica ou linguística que determinam a sua pertença a esta ou aquela tradição de escrita.
Eu próprio que vivo agudamente, mas sem drama, essa ambivalência, em termos de obra produzida, não tenho nenhuma dúvida em relação à minha pertença enquanto indivíduo ao âmbito da literatura caboverdiana, recusando, com prejuízo para a minha privada, adquirir, até esta data, a nacionalidade do país onde vivo. Isto não quer dizer que o não possa fazer amanhã, mas nunca por calculismo, como alguns que conheço, que, sendo de direito caboverdiano e português, nunca tinham assumido essa dupla condição, vindo a fazê-lo porque enquanto portugueses nunca as suas obras obteriam qualquer projecção.
4. Tempos atrás afirmou que em Cabo Verde “infelizmente, demasiados maus livros têm sido premiados, o que não deixa de ser um sintoma preocupante”. Sinal que a nossa literatura actualmente é má?
R: Abraão, não me puxes pela língua, que sou suficientemente insensato para dizer umas verdades. A afirmação atrás citada foi proferida por mim num contexto determinado que foi a atribuição do prémio Jorge Barbosa pela Associação dos escritores Caboverdianos ao meu livro «Agreste Matéria Mundo», que tinha concorrido ao prémio sonangol e foi preterido em favor de um outro livro. Como sabe, houve alguma polémica à volta do assunto na rádio e nos jornais, mas nada disso é relevante. O que importa é o valor intrínseco da obra, e se ela nos acrescenta ou não, não apenas como povo, mas também enquanto agregado civilizacional, e penso que quanto a este último aspecto ninguém esclarecido e de boa-fé alimentará quaisquer dúvidas.
Se a nossa literatura é má? Eu não quero fazer um julgamento holístico, por atacado. Há alguns, poucos, livros bons, e do resto não cuido pois não me interessa.
5. Em Cabo Verde ninguém comenta ou fala da obra de outros escritores, por medo ou pequenez do meio. Desafiaria o JLT a dar-me os nomes mais pujantes, donos da melhor literatura feita por cabo-verdiano nos últimos anos?
R: Eu não quero falar de nomes, grupos, capelas, confrarias, tugúrios, movimentos e quejandos. Como lhe disse, prefiro falar de livros, mas em todo o caso posso fazer um breve excurso. Depois da morte do João Vário, mestre insuperável, o Arménio Vieira é o nosso maior escritor vivo. Há dois anos publicou um livro magnífico, Mitografias. É pena que não produza mais. O Vadinho é um poeta com grandes capacidades, ainda que por vezes demasiado enredado em alguns labirintos metafísicos. O Filinto atingiu um momento alto com «Das frutas serenadas». O Mário Lúcio é o nosso prosador mais imaginativo. Ah, falta o JLT, mas desse não posso falar.
6. Parece que por estas bandas os prémios fazem os nomes. Que valor dá aos prémios?
R: Os prémios podem fazer os nomes, mas não fazem as obras. Já vi algumas invencionices em Cabo Verde, donzelas e mancebos transportados ao colo por serem membros ou simpatizantes da confraria A ou B, ou porque é preciso atender a determinadas mitologias geográficas ou culturais, mas passado o efeito da bolha e da zoeira mediática, retornam ao lugar que lhes cabe.
No meu caso acho que todos os prémios que ganhei, ganhei com mérito, mas também posso estar enganado. Até já fiquei a saber que deixei de ganhar determinado prémio porque o júri não me considerou suficientemente modesto.
Para mim os prémios têm duas vertentes a considerar: dão visibilidade a uma obra e podem funcionar como um estímulo à produção de novas obras. Nunca é uma finalidade em si. É por esta razão que prefiro os prémios atribuídos a obras existentes do que bolsas de criação, que são atribuídas a uma intenção que pode transformar-se em obra de mérito ou não.
7. Dos prémios que já recebeu, qual ou quais os mais simbólicos para si?
R: Acho que todos os prémios que recebi foram importantes, desde as minhas redacções da escola primária que eram escritas no quadro para a classe copiar, até ao mais importante prémio literário que um autor caboverdiano alguma vez ganhou, o prémio Mário António da fundação Calouste Gulbenkian. O prémio Cesário Verde ocupa um lugar especial, pois foi o primeiro prémio literário significativo que ganhei. As distinções no antigo suplemento literário DN-jovem do Diário de Notícias faziam bem ao ego, pois eu tinha essa fixação tola de tentar provar que era tão bom ou melhor que o melhor dos portugueses que lá escrevia. O ter sido um dos dez finalistas das correntes d’escritas no meio de grandes monstros da poesia de língua portuguesa e espanhola, foi um momento assinalável. O Prémio Jorge Barbosa tem um significado particular, dado que foi a primeira vez que fui premiado no meu país. O prémio literatura para todos abriu-me um pouco mais as portas do Brasil. A indicação para o prémio Portugal Telecom, ao lado do Mia Couto e do Pepetela, é algo que não acontece todos os dias.
8. É voz quase unânime que daqui a poucos anos és um sério candidato ao prémio Camões. O que pensas dessa possibilidade? É algo que está no teu horizonte?
R: Não sou responsável por aquilo que os outros acham ou deixam de achar. É a opinião deles, nada mais do que isso. O que posso dizer é que quem me conhece sabe da minha determinação em construir uma obra consistente, até com sacrifício dalguns aspectos da minha própria vida. Mas cada um escolhe o seu destino, e eu escolhi este. Se esse prémio for o reconhecimento da consistência e da singularidade de um percurso, será bem-vindo, mas não estou preocupado com isso. Só a obra interessa, e é nela que empenho todas as minhas forças e capacidades.
9. Outra afirmação sua “Passa pela cabeça de alguém que hoje quando se fala da literatura cabo-verdiana se esqueça do nome de José Luís Tavares?” Como situaria a sua obra dentro da historiografia da literatura cabo-verdiana?
R: Essa afirmação foi proferida na sequência da atribuição do prémio Jorge Barbosa e reportando à atribuição de medalhas culturais, que eu já avisei para ninguém pensar em ma atribuir, pois teria de recusar dada a inexistência de critério na sua atribuição. Até uma vez fui sondado, na altura em que ganhei o prémio Mário António, para saberem se eu aceitaria o passaporte diplomático, na presença de uma terceira pessoa que o pode confirmar, mas recusei, pois na altura não estava claro para mim se não se tentaria condicionar a minha actuação por via dessa aceitação. Tenho sofrido alguns dissabores nas viagens que efectuo um pouco por todo o lado, mas face às circunstâncias da altura entendo que fiz bem em recusar. Comigo tem que ser tudo muito transparente.
Agora respondendo à questão: eu não me situo na literatura caboverdiana. Deixo esse trabalho a esses outros que vivem de botar faladura em relação à obra alheia. Em todo o caso, posso dizer: acho que sou um ET ali numa terra de ninguém. Se se quiser, entre mim e os outros, há um século de diferença. Por ora sou o único escritor caboverdiano do século xxi. Esta afirmação não é do domínio axiológico, isto é valorativo, mas sim cronológico, embora possa ser lida também na primeira acepção.
10. JLT é um poeta do português ou português das ilhas? Por outras palavras: a tua obra é comparável aos melhores autores portugueses de origem ,mas o facto de ser cabo-verdiano pode diminui-la aos olhos dos críticos?
R: Eu gosto de dizer que sou poeta do português. Isto de ser um escritor que vem das periferias da língua e escreve no coração da antiga metrópole colonial, tem vantagens e desvantagens. A vantagem é às vezes as coisas surgirem donde não se esperava, e de espanto em espanto, se a obra for consistente, atingires patamares que provavelmente o teu país não te proporcionaria. Terá sido isso que aconteceu com «Paraíso apagado por um trovão. Apesar de estar a falar em causa própria, em vinte anos de vida em Portugal nunca vi uma recepção tão clamorosa a um primeiro livro de poesia, sobretudo tratando-se de alguém que é estrangeiro em relação à língua e completamente estranho ao meio literário. Nem no caso do meu amigo Gonçalo M. Tavares, esse escritor portentoso, dos mais notáveis que apareceram em Portugal nos últimos decénios.
O reverso é uma certa suspeita que se instala em relação a ti, quer da parte dos teus correligionários do tipo «este agora está armado em escritor português» ou «é o novo protegido dos brancos», quer dos críticos ou escritores que se julgam donos da língua, mas como já não podem exercer sobre ti nenhum tipo de tutela ou porque a tua obra alcançou uma visibilidade que a deles não obteve, entram na fase do bloqueio. A propósito destes dois pontos de vista gostaria de citar um excerto de uma crítica do António Cabrita, um dos críticos que melhor tem lido os meus livros, a propósito de Agreste Matéria Mundo: « estamos diante de um caso literário a que só a miopia de uma certa crítica obcecada com os graus de parentesco não dá o devido relevo. Com José Luiz Tavares apetece lembrar o que Brodsky escreveu sobre Derek Walcott: esta cobardia mental e espiritual patente nos intentos para converter este homem num escritor regional pode explicar-se também pela pouca vontade da crítica profissional em admitir que o grande poeta da língua inglesa é negro». Pronto, foi o meu momento de egolatria.
11. Falando da língua portuguesa é a favor do acordo ortográfico?
R: Completamente a favor, por motivos particulares. Aliás, Lisbon Blues está escrito segundo as novas normas da grafia do Português. Para além das vantagens geo-linguísticas para o português, ele vem escavacar os não-argumentos desses que se opõem ao alfabeto caboverdiano. É o mesmo princípio, ainda que mitigado, que preside ao espírito dessa reforma.
12. E o crioulo? Oficializa-se ou não...que opinião sobre esse arrastamento do processo de oficialização da língua materna cabo-verdiana?
R: A oficialização da língua era para já ter sido ontem. A língua é o primeiro pilar da identidade de um povo, e se há quem não perceba isso, então estamos mesmo mal do ponto de vista da nossa consciência enquanto povo, nação e agregado civilizacional...
13. Há uns tempos li num blog que tinha dito que provavelmente nunca será em crioulo o poeta que é em português? Porque?
R: Isso é óbvio, Abraão. Eu tenho trinta e cinco anos de labuta com o português escrito. Há toda uma literatura produzida ou traduzida para o português, uma língua com praticamente nove séculos de existência e cujo percurso de consolidação escrita é paralelo à sua expansão oral. Como poderei eu da noite para o dia inventar as imagens, metáforas, boleios, acrobacias que tenho à minha disposição em português e que fazem parte de todo um arsenal que tenho há muito interiorizado? Não é um problema da natureza da língua caboverdiana ou das suas possibilidades expressivas. É preciso tempo para que a língua atinja o seu esplendor literário, para que se construa um idioma poético que ainda se encontra demasiado indexado à matriz oral e popular.
14. Fale-me um pouco do seu projecto Lisbon Blues seguido de Desarmonia?
R: Lisbon Blues e desarmonia são dois livros autónomos escritos em tempos muito diferentes, mas que por motivo de oportunidade editorial foram juntados num único volume.
Lisbon Blues é um projecto antigo. De todos os meus livros publicados é o mais antigo em termos de projecto, se bem que da primeira versão, que data de há uns quinze anos, tenha sobrado muito pouco. É a primeira vez que escrevo um livro a partir na minha condição étnica. Sem ser demasiado óbvio (aliás, nada na minha poesia é óbvio), ele é um livro profundamente político no sentido original da palavra polis.
Quanto a desarmonia (tecnicamente o livro mais exigente que já escrevi) nasceu da necessidade (e da dificuldade) de traduzir os sonetos de Camões, e não os Lusíadas como uma colunista suína e ignara andou a propagar por aí. A certa altura desta empresa dei-me conta que só dominando a técnica do soneto enquanto poeta poderia defrontar o grande Camões. O livro que ora dou à estampa é o resultado dessa aprendizagem minuciosa, e que de um ponto de vista formal foi o livro mais fácil e mais difícil de escrever. O resultado, sem qualquer auto-complacência, não desmerece o esforço dispendido.
15. Como vê a situação política social de cabo Verde a partir da diáspora?
R: Eu tenho uma gratidão e uma admiração profunda pelas gentes do meu país, políticos incluídos, sem olhar a partidos ou ideologias. Penso que todos eles, mesmo quando há desacertos, têm tentado fazer o melhor para Cabo Verde.
Claro que me inquietam alguns fumos (e até fogo) de corrupção, a questão da segurança, sobretudo na capital, a delapidação paisagística através da construção desenfreada e de um turismo intensivo de baixa qualidade, a propriedade e o uso dos solos e, concomitantemente, a especulação fundiária na qual anda metida meio Cabo Verde, se se vier a confirmar as denúncias vindas a público. Em qualquer caso os motivos de regozijo são bem maiores que os de crítica.
16. Volta um dia para leccionar e viver em Cabo Verde?
R: Nós falamos disso há dois anos. Aliás, aproveito a ocasião para lhe agradecer, pois parece que o Abraão é o único que dá pela minha presença quando venho a Cabo Verde. Você e o José Maria Varela da inforpress.
Se está lembrado, há dois anos disse-lhe que a minha vinda tinha apenas a ver com condições psicológicas: basta-me sentir capaz de produzir cá como onde estou. As coisa mantêm-se no mesmo ponto, se bem que hoje tenha uma razão particular para vir viver para Cabo Verde.
Entrevista a José Luiz Tavares — Poeta
1. Considera-se um “enfant terrible”?
R: Não, não me considero. Terrível era Ivan e, que eu saiba, não sou russo. No entanto não deixo de reconhecer que possuo uma personalidade poética áspera, detonadora de atritos, no sentido em que a física o entende.
Enfant, serei sempre, pois é preciso conservar uma certa inocência, que não ingenuidade, e aquele módico de pureza que é o melhor antídoto contra a peçonha e as safadezas do mundo.
Claro que eu passo por ser um indivíduo desbocado, arrogante, destemperado, porque os senhores feudais da literatura caboverdiana e da lusofonia, os compadres do elogio mútuo e das palmadinhas no lombo não estavam habituados a que alguém lhes olhasse nos olhos e dissesse ao que vinha, independentemente de lhe assistir razão ou não. Ainda tenho presente o célebre discurso da Gulbenkian na cerimónia da entrega do prémio Mário António, em que metade da assistência ficou a olhar para mim entre o atónito e o assustado. Até amigos meus disseram-me que tiveram receio de aplaudir.
2. Como estudioso, como poeta existe de facto de uma escrita contemporânea cabo-verdiana?
R: Não sou estudioso no sentido em que as pessoas entendem habitualmente essa figura. Eu estudei, li, apetrechei-me teórica e tecnicamente para exercer a minha arte com a mais funda consciência dos seus pressupostos, não para produzir obras teóricas fora do âmbito da criação artística. O grande pensador de origem judaica George Steiner, chamava a essa capacidade teórica incapaz de criação inteligência parasitária ou secundária.
Tudo aquilo que faço e sei tem que convergir na obra. Para elucidar este aspecto, conto-te este episódio: em Setembro de 2004 pedi ao João Vário que apresentasse os meus livros paraíso apagado por um trovão e agreste matéria mundo na feira do livro do Mindelo. Vário, que possuía um notável conhecimento das coisas da arte, e que chamava agreste matéria mundo de livro de ensaios (eu prefiro poesia do pensamento ou lírica reflexiva) disse-me que não o faria, pelo simples facto de que os meus livros não tinham genealogia na literatura caboverdiana e que não eram livros que podiam ser apresentados assim do pé para a mão. Prometeu escrever sobre eles um artigo para a revista anais, mas infelizmente o seu estado de saúde não lho permitiu.
Quanto à contemporaneidade ou não da escrita caboverdiana, só entendo a questão num âmbito comparativo, isto é, se aquilo que se faz cá é co-mensurável com aquilo que se faz lá fora. Penso que nalguns aspectos sim, embora a literatura caboverdiana tenha padecido sempre de um problema de desfasamento, o seu grande problema genético. Repare, por exemplo, naquilo que é considerado o nosso modernismo: esteticamente é profundamente reaccionário em relação às grandes correntes, se pensarmos nas vanguardas que nesse tempo vicejavam e feneciam por esse mundo de deus.
3. Na tua condição de intelectual, de poeta, de homem incomoda-te ser rotulado “escritor cabo-verdiano” com todos os pressupostos que daí advêm? Que escritor, que género de literatura quem lê a sua obra vai encontrar?
R: Eu não sou intelectual nem tenho essa ambição, o que não me impede de atirar umas pedradas de quando em vez, mas sempre a partir da minha condição de escritor e de homem livre que não ambiciona mais nada senão traçar os contornos dos mundos a haver e esboçar o rosto do povo do futuro. Ambição sísifica, provavelmente, mas eu não nunca me conformei com os rasos eventos do dia ou com os pequenos mundos além da esquina.
Escritor e caboverdiano sou, como já respondi em certa ocasião, uma coisa está subsumida na outra, ainda que múltipla e fragmentária seja a condição de todo o criador autêntico. Agora o que é preciso é perceber se determinados livros se encaixam na sua tradição nacional, ou se se enquadram em âmbitos mais vastos e mais desterritorializados. Ou se é a condição étnica, jurídica ou linguística que determinam a sua pertença a esta ou aquela tradição de escrita.
Eu próprio que vivo agudamente, mas sem drama, essa ambivalência, em termos de obra produzida, não tenho nenhuma dúvida em relação à minha pertença enquanto indivíduo ao âmbito da literatura caboverdiana, recusando, com prejuízo para a minha privada, adquirir, até esta data, a nacionalidade do país onde vivo. Isto não quer dizer que o não possa fazer amanhã, mas nunca por calculismo, como alguns que conheço, que, sendo de direito caboverdiano e português, nunca tinham assumido essa dupla condição, vindo a fazê-lo porque enquanto portugueses nunca as suas obras obteriam qualquer projecção.
4. Tempos atrás afirmou que em Cabo Verde “infelizmente, demasiados maus livros têm sido premiados, o que não deixa de ser um sintoma preocupante”. Sinal que a nossa literatura actualmente é má?
R: Abraão, não me puxes pela língua, que sou suficientemente insensato para dizer umas verdades. A afirmação atrás citada foi proferida por mim num contexto determinado que foi a atribuição do prémio Jorge Barbosa pela Associação dos escritores Caboverdianos ao meu livro «Agreste Matéria Mundo», que tinha concorrido ao prémio sonangol e foi preterido em favor de um outro livro. Como sabe, houve alguma polémica à volta do assunto na rádio e nos jornais, mas nada disso é relevante. O que importa é o valor intrínseco da obra, e se ela nos acrescenta ou não, não apenas como povo, mas também enquanto agregado civilizacional, e penso que quanto a este último aspecto ninguém esclarecido e de boa-fé alimentará quaisquer dúvidas.
Se a nossa literatura é má? Eu não quero fazer um julgamento holístico, por atacado. Há alguns, poucos, livros bons, e do resto não cuido pois não me interessa.
5. Em Cabo Verde ninguém comenta ou fala da obra de outros escritores, por medo ou pequenez do meio. Desafiaria o JLT a dar-me os nomes mais pujantes, donos da melhor literatura feita por cabo-verdiano nos últimos anos?
R: Eu não quero falar de nomes, grupos, capelas, confrarias, tugúrios, movimentos e quejandos. Como lhe disse, prefiro falar de livros, mas em todo o caso posso fazer um breve excurso. Depois da morte do João Vário, mestre insuperável, o Arménio Vieira é o nosso maior escritor vivo. Há dois anos publicou um livro magnífico, Mitografias. É pena que não produza mais. O Vadinho é um poeta com grandes capacidades, ainda que por vezes demasiado enredado em alguns labirintos metafísicos. O Filinto atingiu um momento alto com «Das frutas serenadas». O Mário Lúcio é o nosso prosador mais imaginativo. Ah, falta o JLT, mas desse não posso falar.
6. Parece que por estas bandas os prémios fazem os nomes. Que valor dá aos prémios?
R: Os prémios podem fazer os nomes, mas não fazem as obras. Já vi algumas invencionices em Cabo Verde, donzelas e mancebos transportados ao colo por serem membros ou simpatizantes da confraria A ou B, ou porque é preciso atender a determinadas mitologias geográficas ou culturais, mas passado o efeito da bolha e da zoeira mediática, retornam ao lugar que lhes cabe.
No meu caso acho que todos os prémios que ganhei, ganhei com mérito, mas também posso estar enganado. Até já fiquei a saber que deixei de ganhar determinado prémio porque o júri não me considerou suficientemente modesto.
Para mim os prémios têm duas vertentes a considerar: dão visibilidade a uma obra e podem funcionar como um estímulo à produção de novas obras. Nunca é uma finalidade em si. É por esta razão que prefiro os prémios atribuídos a obras existentes do que bolsas de criação, que são atribuídas a uma intenção que pode transformar-se em obra de mérito ou não.
7. Dos prémios que já recebeu, qual ou quais os mais simbólicos para si?
R: Acho que todos os prémios que recebi foram importantes, desde as minhas redacções da escola primária que eram escritas no quadro para a classe copiar, até ao mais importante prémio literário que um autor caboverdiano alguma vez ganhou, o prémio Mário António da fundação Calouste Gulbenkian. O prémio Cesário Verde ocupa um lugar especial, pois foi o primeiro prémio literário significativo que ganhei. As distinções no antigo suplemento literário DN-jovem do Diário de Notícias faziam bem ao ego, pois eu tinha essa fixação tola de tentar provar que era tão bom ou melhor que o melhor dos portugueses que lá escrevia. O ter sido um dos dez finalistas das correntes d’escritas no meio de grandes monstros da poesia de língua portuguesa e espanhola, foi um momento assinalável. O Prémio Jorge Barbosa tem um significado particular, dado que foi a primeira vez que fui premiado no meu país. O prémio literatura para todos abriu-me um pouco mais as portas do Brasil. A indicação para o prémio Portugal Telecom, ao lado do Mia Couto e do Pepetela, é algo que não acontece todos os dias.
8. É voz quase unânime que daqui a poucos anos és um sério candidato ao prémio Camões. O que pensas dessa possibilidade? É algo que está no teu horizonte?
R: Não sou responsável por aquilo que os outros acham ou deixam de achar. É a opinião deles, nada mais do que isso. O que posso dizer é que quem me conhece sabe da minha determinação em construir uma obra consistente, até com sacrifício dalguns aspectos da minha própria vida. Mas cada um escolhe o seu destino, e eu escolhi este. Se esse prémio for o reconhecimento da consistência e da singularidade de um percurso, será bem-vindo, mas não estou preocupado com isso. Só a obra interessa, e é nela que empenho todas as minhas forças e capacidades.
9. Outra afirmação sua “Passa pela cabeça de alguém que hoje quando se fala da literatura cabo-verdiana se esqueça do nome de José Luís Tavares?” Como situaria a sua obra dentro da historiografia da literatura cabo-verdiana?
R: Essa afirmação foi proferida na sequência da atribuição do prémio Jorge Barbosa e reportando à atribuição de medalhas culturais, que eu já avisei para ninguém pensar em ma atribuir, pois teria de recusar dada a inexistência de critério na sua atribuição. Até uma vez fui sondado, na altura em que ganhei o prémio Mário António, para saberem se eu aceitaria o passaporte diplomático, na presença de uma terceira pessoa que o pode confirmar, mas recusei, pois na altura não estava claro para mim se não se tentaria condicionar a minha actuação por via dessa aceitação. Tenho sofrido alguns dissabores nas viagens que efectuo um pouco por todo o lado, mas face às circunstâncias da altura entendo que fiz bem em recusar. Comigo tem que ser tudo muito transparente.
Agora respondendo à questão: eu não me situo na literatura caboverdiana. Deixo esse trabalho a esses outros que vivem de botar faladura em relação à obra alheia. Em todo o caso, posso dizer: acho que sou um ET ali numa terra de ninguém. Se se quiser, entre mim e os outros, há um século de diferença. Por ora sou o único escritor caboverdiano do século xxi. Esta afirmação não é do domínio axiológico, isto é valorativo, mas sim cronológico, embora possa ser lida também na primeira acepção.
10. JLT é um poeta do português ou português das ilhas? Por outras palavras: a tua obra é comparável aos melhores autores portugueses de origem ,mas o facto de ser cabo-verdiano pode diminui-la aos olhos dos críticos?
R: Eu gosto de dizer que sou poeta do português. Isto de ser um escritor que vem das periferias da língua e escreve no coração da antiga metrópole colonial, tem vantagens e desvantagens. A vantagem é às vezes as coisas surgirem donde não se esperava, e de espanto em espanto, se a obra for consistente, atingires patamares que provavelmente o teu país não te proporcionaria. Terá sido isso que aconteceu com «Paraíso apagado por um trovão. Apesar de estar a falar em causa própria, em vinte anos de vida em Portugal nunca vi uma recepção tão clamorosa a um primeiro livro de poesia, sobretudo tratando-se de alguém que é estrangeiro em relação à língua e completamente estranho ao meio literário. Nem no caso do meu amigo Gonçalo M. Tavares, esse escritor portentoso, dos mais notáveis que apareceram em Portugal nos últimos decénios.
O reverso é uma certa suspeita que se instala em relação a ti, quer da parte dos teus correligionários do tipo «este agora está armado em escritor português» ou «é o novo protegido dos brancos», quer dos críticos ou escritores que se julgam donos da língua, mas como já não podem exercer sobre ti nenhum tipo de tutela ou porque a tua obra alcançou uma visibilidade que a deles não obteve, entram na fase do bloqueio. A propósito destes dois pontos de vista gostaria de citar um excerto de uma crítica do António Cabrita, um dos críticos que melhor tem lido os meus livros, a propósito de Agreste Matéria Mundo: « estamos diante de um caso literário a que só a miopia de uma certa crítica obcecada com os graus de parentesco não dá o devido relevo. Com José Luiz Tavares apetece lembrar o que Brodsky escreveu sobre Derek Walcott: esta cobardia mental e espiritual patente nos intentos para converter este homem num escritor regional pode explicar-se também pela pouca vontade da crítica profissional em admitir que o grande poeta da língua inglesa é negro». Pronto, foi o meu momento de egolatria.
11. Falando da língua portuguesa é a favor do acordo ortográfico?
R: Completamente a favor, por motivos particulares. Aliás, Lisbon Blues está escrito segundo as novas normas da grafia do Português. Para além das vantagens geo-linguísticas para o português, ele vem escavacar os não-argumentos desses que se opõem ao alfabeto caboverdiano. É o mesmo princípio, ainda que mitigado, que preside ao espírito dessa reforma.
12. E o crioulo? Oficializa-se ou não...que opinião sobre esse arrastamento do processo de oficialização da língua materna cabo-verdiana?
R: A oficialização da língua era para já ter sido ontem. A língua é o primeiro pilar da identidade de um povo, e se há quem não perceba isso, então estamos mesmo mal do ponto de vista da nossa consciência enquanto povo, nação e agregado civilizacional...
13. Há uns tempos li num blog que tinha dito que provavelmente nunca será em crioulo o poeta que é em português? Porque?
R: Isso é óbvio, Abraão. Eu tenho trinta e cinco anos de labuta com o português escrito. Há toda uma literatura produzida ou traduzida para o português, uma língua com praticamente nove séculos de existência e cujo percurso de consolidação escrita é paralelo à sua expansão oral. Como poderei eu da noite para o dia inventar as imagens, metáforas, boleios, acrobacias que tenho à minha disposição em português e que fazem parte de todo um arsenal que tenho há muito interiorizado? Não é um problema da natureza da língua caboverdiana ou das suas possibilidades expressivas. É preciso tempo para que a língua atinja o seu esplendor literário, para que se construa um idioma poético que ainda se encontra demasiado indexado à matriz oral e popular.
14. Fale-me um pouco do seu projecto Lisbon Blues seguido de Desarmonia?
R: Lisbon Blues e desarmonia são dois livros autónomos escritos em tempos muito diferentes, mas que por motivo de oportunidade editorial foram juntados num único volume.
Lisbon Blues é um projecto antigo. De todos os meus livros publicados é o mais antigo em termos de projecto, se bem que da primeira versão, que data de há uns quinze anos, tenha sobrado muito pouco. É a primeira vez que escrevo um livro a partir na minha condição étnica. Sem ser demasiado óbvio (aliás, nada na minha poesia é óbvio), ele é um livro profundamente político no sentido original da palavra polis.
Quanto a desarmonia (tecnicamente o livro mais exigente que já escrevi) nasceu da necessidade (e da dificuldade) de traduzir os sonetos de Camões, e não os Lusíadas como uma colunista suína e ignara andou a propagar por aí. A certa altura desta empresa dei-me conta que só dominando a técnica do soneto enquanto poeta poderia defrontar o grande Camões. O livro que ora dou à estampa é o resultado dessa aprendizagem minuciosa, e que de um ponto de vista formal foi o livro mais fácil e mais difícil de escrever. O resultado, sem qualquer auto-complacência, não desmerece o esforço dispendido.
15. Como vê a situação política social de cabo Verde a partir da diáspora?
R: Eu tenho uma gratidão e uma admiração profunda pelas gentes do meu país, políticos incluídos, sem olhar a partidos ou ideologias. Penso que todos eles, mesmo quando há desacertos, têm tentado fazer o melhor para Cabo Verde.
Claro que me inquietam alguns fumos (e até fogo) de corrupção, a questão da segurança, sobretudo na capital, a delapidação paisagística através da construção desenfreada e de um turismo intensivo de baixa qualidade, a propriedade e o uso dos solos e, concomitantemente, a especulação fundiária na qual anda metida meio Cabo Verde, se se vier a confirmar as denúncias vindas a público. Em qualquer caso os motivos de regozijo são bem maiores que os de crítica.
16. Volta um dia para leccionar e viver em Cabo Verde?
R: Nós falamos disso há dois anos. Aliás, aproveito a ocasião para lhe agradecer, pois parece que o Abraão é o único que dá pela minha presença quando venho a Cabo Verde. Você e o José Maria Varela da inforpress.
Se está lembrado, há dois anos disse-lhe que a minha vinda tinha apenas a ver com condições psicológicas: basta-me sentir capaz de produzir cá como onde estou. As coisa mantêm-se no mesmo ponto, se bem que hoje tenha uma razão particular para vir viver para Cabo Verde.
Riso,
ResponderExcluirNão entendo esses autores cabo-verdianos dizendo que a literatura de lá não é muito boa.
Concordo com o elogio que o entrevistado fez a Arménio Vieira, mas há outros bons autores.
Obrigada!
Também não compreendo bem, Norma! Encontramos autores realmente bons como José Luiz Hopffer Almada, Filinto Elísio, Mario Fonseca, o próprio entrevistado e o citado Arménio Vieira.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário!
bjs!!