quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Dina Salústio - Contra a violência, a literatura, por Ricardo Riso (Jornal A Nação 127 - 04/02/2010)



Dina Salústio – contra a violência, a literatura
Por Ricardo Riso

Diante da violência desmedida que assola os centros urbanos, vivenciamos uma estranha sensação de inércia, impotência frente às barbaridades do cotidiano e ao horror causado quando sabemos os motivos de determinados crimes e da pouca idade daqueles que os cometem. Questões que são abordadas em alguns contos de “Mornas eram as noites” (Camões, 1999), de Dina Salústio (1941 – ilha de Santo Antão, Cabo Verde), e que serão aqui expostos para nossa reflexão.

A violência descontrolada na sociedade demonstra-se nos atos agressivos dos jovens e da violência contra as crianças. Nos contos “Para quando crianças de junho a junho?” e “Filho de deus nenhum”, a revolta e a indignação apossam-se do narrador ao relatar dois momentos de crueldade extrema. No primeiro conto, um grupo de adolescentes espanca um doente mental sob os olhares inertes dos adultos, enquanto no segundo é mostrada a reação da sociedade contra a morte de um menino:

“De repente, uma rua larga, agora espreitada pela violência que transborda e agride os caminhantes. Uma dúzia. Talvez menos de uma dúzia de rapazes da quarta, que deviam ser crianças e que se haviam transformados em feras, perseguindo e atacando um doente mental. Livros e pastas esquecidos na valeta. Nas mãos, pedras. Nos gestos, ódio. Olhares frios. O homem no meio, indefeso, confuso, louco, impotente, cada vez mais agitado pelos uivos dos estudantes que nunca deveriam lançar outros sons que os da alegria e da esperança.” (p. 28)

“Homens e mulheres enfurecidos atacam a cadeia onde se encontra detida a assassina do pequeno Lizandro, de três anos, morto à dentada. (...) O pequeno Lizandro não resistiu às mordeduras e pancadas da madrasta. (...) Não conheceu alegrias. Para ele, apenas tristezas que o seu corpo cedo recusou.” (pp. 53-54).

Os dois contos poderiam ter acontecido em qualquer cidade do mundo. É a violência causada por um sistema neoliberal que exclui e oprime as classes menos favorecidas, traz desesperança aos jovens e deixa as famílias desestruturadas. Tempos amargos como o jovem que liderou o espancamento ao doente mental:

“‘... Se fosse meu pai, eu não teria pena... Se ele morresse, problema dele... Se eu gosto do meu pai? Se você o vir pergunte-lhe se ele gosta de mim, ou... se... se me conhece.’

Nas últimas palavras um soluço abandonado.(...) E quando o miúdo chefe se mexe e retoma o caminho para casa, arrastando os pés, não há crueldade nos seus olhos. Apenas uma criança amarga que havia parido prematuramente um homem. Desencantado.” (p. 29)

Entretanto, em “Campeões de qualquer coisa” o redimensionamento da atitude masculina é proposto por um personagem que se recusa a viver a hiper-competitividade que domina a sociedade capitalista. Ele questiona a hipocrisia de uma vida em mentiras e as máscaras que homens se obrigam a criar para sobressair.

““Ensinaram-nos que devíamos ser heróis de qualquer coisa. Exigem que façamos permanentemente exercícios de autoafirmação. Não nos educaram para corajosamente debatermos os nossos medos, falhas, hesitações, infernos. Apetrecharam-nos com o mito de super-machos e esperam que sejamos vencedores, fazendo-nos inimigos da própria maneira de estar, escamoteando a verdade, falseando as fronteiras. E porque somos apenas normais e temos vergonha da nossa normalidade, passamos o tempo todo a pensar numa roupagem que impressione. E vestimo-nos de atletas e mascaramo-nos de campeões, para, às escondidas, chorarmos a nossa simplicidade, a vulgaridade que enforma os nossos sentimentos íntimos. Não temos coragem para dizer não sou o melhor e não tenho que o ser, nem justificar-me da minha fragilidade. (...)” (p. 14-15)

Sendo assim, quem sabe se a partir dos contos de Dina Salústio, a reflexão sobre a ética distorcida da contemporaneidade, estimuladora da violência e que induz as pessoas a ser, ou a desejar ou a querer aquilo que não são ou não possuem, não nos ajudaria a buscar alternativas à degradação do ser humano?

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