POSFÁCIO Uma leitura de “M’bique, conversas com a sombra”
Ricardo Riso, 30 de novembro de 2011.
A expectativa gerada por “Agarra-me o sol por trás”, primeiro livro de poesia de Tânia Tomé, poderá ser saciada por seus leitores com a sua segunda incursão poética que agora se apresenta com o enigmático título: “M’bique, conversas com a sombra”. Após o peso e a pressão da estreia, o livro seguinte de um(a) autor(a) carrega a responsabilidade da confirmação gerada pelo primeiro ou a decepção de um brilho fugaz ao qual o atual não se mostra compatível ao esperado. Caberá ao leitor esse exercício.
Neste novo livro, o conjunto de poemas apresenta questões de ordem ontológica de extremo interesse em um precioso labor com a linguagem, com a palavra poética. No “útero de palavras” aqui proposto, temos a ressignificação dos sentidos inertes empregados no cotidiano a convidar o leitor a refletir a sua existência e por isso as provocações interrogativas direcionadas a nós: “Entendes?”, “Confundiste-te agora?”.
O sujeito lírico de Tânia Tomé expõe suas indagações associando-as a um trabalho de renovação da linguagem, “O meu gosto em falar uma língua que não existe”, o que remete às considerações de Roland Barthes em “Aula” acerca do uso da língua:
Só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (...) porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é teatro. Posso portanto dizer, indiferentemente: literatura, escritura ou texto. As forças de liberdade não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, (...) mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua.
O ato de trapacear a língua encontra no fazer poético o seu espaço de excelência, pois o sujeito lírico possui a liberdade para deslocar as palavras do seu sentido usual e, ao mesmo tempo, procurar um novo sentido para a existência: “Aprendi a ser, de maneira difícil,/ sendo à medida que crescia para dentro,/ encolhendo os verbos. Distorcendo-os (...)”. Trata-se de um processo de interiorização do ser, de uma poética do eu para ampliar os sentidos adormecidos das palavras; nessa direção, encontrar a liberdade. Tal procedimento é por demais conhecido e consagrado na literatura moçambicana pelo célebre escritor Mia Couto, mas que neste livro de Tânia Tomé encontramos, em nosso entendimento, ressonâncias maiores na poesia do brasileiro Manoel de Barros.
Barros é autor de uma poesia de extrema criatividade e ludicidade com a palavra, deslocando-a e revelando surpreendentes e inusitados sentidos que espantam por subverter o real de forma radical. Não há como não lembrar do velho Manoel quando lemos o supracitado verso de Tomé: “O meu gosto em falar uma língua que não existe”; enquanto ele versifica da seguinte maneira em seu “Livro das Ignorãças”: “Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.” É nesse processo de desconstruir a linguagem, por conseguinte, descoisificar a realidade que o sujeito lírico de Tomé chama atenção para a urgente necessidade de transgressão do ser, de se ter “jeito de não ser”. Para isso, as imagens retratadas pelo sujeito lírico tornam-se dissonantes, surreais, sendo necessário – e retornamos a Manoel de Barros – desinventar objetos – e que na poesia de Tomé assim aparece: “Na casa tinha um televisor preto e branco. O evidente é que esse televisor só poderia ser de cartolina evidentemente, mais não podia ser.”
Para complementar a visão crítica que se apresenta nesses novos poemas de Tânia Tomé, fundamental é o olhar para as descobertas das crianças: “Há coisas que só as crianças conseguem enxergar. Coisas do acredito”; de um olhar questionador à busca do “criançamento das palavras” de Manoel de Barros, desse olhar para o novo, que se maravilha com o inusitado a ponto do sujeito lírico retomar outro poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, e o seu célebre poema “No meio do caminho”. Para o sujeito lírico, “isso era o mais interessante da pedra, o incerto.” A pedra no meio do caminho como obstáculo para movimentar as dúvidas e inquietações do ser, de se tornar a mola propulsora para a investigação que gerará a descoberta, a elevação para um novo ser indagador e criativo. Poeta.
Na sua intensa vontade de desaprender para ser, mergulhado em suas indagações ontológicas ainda assim o sujeito lírico mostra-se político e preocupado com o tempo e com o meio que vive e demonstra ser extremamente moçambicano, vinculado à terra-mãe ao reverenciar sua cultura e a sua literatura relacionada ao macrotema da ilha – “Eu tenho uma ilha dentro de mim, navegando-me inteiro o todo, o tudo./ Oi ilha, dentro de mim!” –, ao encontrarmos ecos de Eduardo White, Mia Couto, Rui Knopfli e Luis Carlos Patraquim, apenas para citar alguns, e apresenta com virulência que a inquietação do ser também passa pela da nação moçambicana e os caminhos tortuosos desde a independência: “a terra tem sintoma, tem problema de existir,/ sofre de sofrer, e tudo por onde fenda/ vive mora numa hemorragia vermelha/ sem pressa de acabar”.
Uma profunda viagem ao âmago do ser é proposta pelo sujeito lírico, assim como as ressonâncias sociais e políticas que acompanham essa desconstrução do antigo ser para o nascimento de um novo ser a desvelar o “nosso futuro por vir”, espaço da utopia, espaço que encontra abrigo na palavra poética, que conduz o sujeito lírico a recordar o ainda necessário poema de José Craveirinha de recusa do real desigual e desumano. Por isso, aqui compartilhamos o sentimento de reconstrução e dizemos SIA-VUMA!
É essa vocação utópica da poesia que Tânia Tomé em “M’bique – conversas com a sombra” convida à reflexão aos constrangimentos do presente, suas incertezas e desenganos, e por meio da palavra poética pensar nossa existência para assim partirmos à constituição de um novo ser, “e aí, só aí seremos. M’bique.”
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