Conceição Evaristo e Dina Salústio
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 237, p. E22, 15/03/2012
As ex-colônias portuguesas herdaram da metrópole o patriarcalismo e a consequente postura machista predominante na sociedade, na qual a mulher é vista com subalternidade e estigmatizada por preconceitos de diversas ordens. Na literatura, as questões de gêneros nem sempre foram contempladas de forma igual, por isso os textos produzidos por mulheres desvelam dicção própria, por trazer à tona problemáticas de um universo invisibilizado pela ordem estabelecida.
No Brasil, a escritora negra Conceição Evaristo desenvolveu o conceito de “escrevivência” em razão da impossibilidade das teorias literárias tradicionais abarcarem a diferença do discurso feminino, especialmente o da mulher negra, sofrido em uma sociedade que já exclui a mulher, mas que ainda é opressora e racista em relação às negras. Por isso a necessidade de uma Teoria da Diferença. O eu-enunciador da escrevivência assume as suas experiências de vida e de outras mulheres como corpo de sua escrita, reconfigurando a voz individual da autora como irradiadora de uma voz coletiva de mulheres negras, que raríssimas vezes foram protagonistas no texto em prosa brasileiro. Dessa maneira, as histórias dessas mulheres jamais encontraram espaço para revelar suas angústias e anseios, a maneira como lutam em um cotidiano adverso, já que o eu-enunciador, majoritariamente homem e branco, nunca se preocupou com os dilemas dessa mulher negra, relegada aos restritos espaços de subalternidade em que se torna coadjuvante e silenciada nas tramas.
Dentro desse processo de escrevivência, o ato do eu-enunciador contar histórias relatadas por mulheres é a parte central deste conceito. Nesta perspectiva, o recente livros de contos de Evaristo, “Insubmissas lágrimas de mulheres” (2011), assemelha-se aos contos de “Mornas eram as noites” (1994), de Dina Salústio, pois ambos os livros concentram-se suas histórias no ato de recontar passagens do cotidiano feminino, de mulheres simples que vivenciam a dureza diária. Como diz Evaristo, “gosto de contar e ouvir casos. Muito da minha escrita nasce das histórias ouvidas, das imagens assistidas no cotidiano e de minha condição de mulher e negra na sociedade brasileira”; enquanto Salústio afirma que “necessidade de publicar as inúmeras histórias de mulheres, histórias de vida que passam por mim (...) Não são ficção, é cá um encontro que é verdade, um momento só (...)”.
Nos contos de ambas as autoras demonstra-se a preocupação do ponto de vista feminino da narrativa, as mulheres são as protagonistas e têm liberdade para revelar as dificuldades, anseios, medos e conquistas. Temas comuns entrecruzam-se nos livros. O estupro de companheiras ou de filhas em “Aramildes Florença”, de Evaristo, e “Nasceu fêmea é mulher”, de Dina; a violência doméstica e a revolta das mulheres contra o machismo escancarado em “Foram as dores que o mataram”, de Dina, e “Shirley Paixão”, de Evaristo; o abandono à própria sorte do destino de “Liberdade Adiada” de Salústio e “Natalina Soledad” de Conceição, são alguns dos tristes exemplos de aproximação das realidades vivenciadas pelas mulheres nas sociedades brasileira e cabo-verdiana.
É com o desenvolvimento de uma escrita que revela as tensões étnico-raciais e de gênero estratificados em Cabo Verde e no Brasil que Dina Salústio e Conceição Evaristo procuram recriar essas histórias de mulheres anônimas, iguais na dor, no sofrimento, nas injustiças e no silêncio motivador da perpetuação das atitudes violentas dos homens. Seus textos literários o espaço para extravasar a urgência de mudanças, a impossibilidade da continuidade da opressão à mulher. Conceição e Salústio apresentam-nos um texto de empoderamento, que tanto serve para estimular as mulheres a não aceitarem as manifestações virulentas da formação machista masculina como também, e principalmente, para nós homens, para revermos diariamente nossas atitudes e repensarmos o quanto de opressores somos e o quanto devemos mudar. De forma imediata.
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