Eulalia Bernard (Costa Rica),
brevíssimos apontamentos da sua poesia
Por Ricardo Riso
As histórias das nações do continente
americano são marcadas pelo silenciamento da participação dos negros na
construção desses países. Retirados à força da África, a presença negra é
mencionada durante o absurdo da violenta escravidão, depois com os processos de
abolição, porém mantém-se silêncio sepulcral à revolução dos negros escravizados
no Haiti (1804) e posterior expulsão dos colonizadores franceses. Uma
humilhação para europeus e elites coloniais temerosos que uma onda
revolucionária negra expandisse pelas Américas, que legou ao ostracismo para o restante
do mundo a digna revolta antiescravagista liderada por Toussaint Louverture.
O cânone das literaturas americanas
participa desse processo de ocultar os negros tanto nas personagens como na
autoria. Em razão disso, uma das funções do texto literário produzido por
negros é o seu caráter testemunhal, revisitando as rasuras da história,
rompendo com os estereótipos impostos pelo preconceito racial, exigindo o
reconhecimento da dignidade dos negros e da sua contribuição na formação de
seus países.
Na Costa Rica, pequeno país da América
Central, não poderia ser diferente e Eulalia Bernard (1935) é um nome que se
impõe ao romper com essa perspectiva. Nascida em Limón, filha de jamaicanos,
professora de literatura, criadora da cátedra de estudos afro-americanos na
Universidade da Costa Rica em 1981.
“Ritmohéroe” (Editorial Costa Rica, 1982),
livro de estreia desta poetisa negra, a primeira a ter publicação individual no
seu país, procura retratar a peculiar presença dos negros na Costa Rica e os
embates para construir uma identidade costa-riquenha. O prefácio de Quince
Duncan revela que a diáspora negra na Costa Rica começa com a chegada de negros
antilhanos – maioria jamaicanos – para construção de ferrovias ao final do
século XIX. Depois, os negros passam a trabalhar no cultivo da banana. Essa primeira
geração concentra-se na cidade de Limón, comunica-se em inglês e objetiva
juntar economias para retornar à Jamaica. A partir de 1930, o país atravessa grave
crise econômica, o regime fascista impõe o uso do idioma espanhol e força a
assimilação cultural dos negros. A segunda geração relaciona-se com a Jamaica
como um Éden, Limón como sua cidade e que guarda certos valores da cultura
negra. Em 1960, a geração seguinte reage a esse processo, busca suas raízes e a
contribuição dos negros para o país. Desde então esse processo vem sendo
fortalecido pela quarta geração já nos anos 1980, tendo na inserção às
universidades a marca para a disputa de novas epistemologias para pensar a
população negra na Costa Rica.
Na
sua poesia a fé católica surge não como resignação, mas como forma de
questionamento diante das injustiças sociais: “Y el negro rezó/ pero Jesús no
lo oyó/ y el negro rezó/ pero La Virgen no lo vio/ rezó el negro/ el negro
rezó/ (...) el negro no más rezó/ el negro el fusil tomó/ el negro habló y habló/
Jesús lo oyó/ la Virgen lo vio/ con su voz de fusil/ y su estómago de reloj”. A urgência de mudanças apresenta-se na brevidade dos
versos a partir da não manifestação de apoio das figuras bíblicas de Jesus e da
Virgem Maria, que podem ser transpassadas para a indiferença de uma sociedade
calcada na exclusão. Resta à população negra a voz insurgente para a emergência
de seu tempo.
Dentre as marcas culturais dos negros na
Costa Rica, a festa do carnaval é celebrada em alguns poemas como o momento de
liberdade e gozo para os negros: “El Carnaval,/ vamos, veamos los negros
brincar,/ que trabajo no les vamos a dar.// El Carnaval,/ siéntete rey o
reina del mar,/ negro!, es tu única oportunidad”. Realidade comum lá e cá.
O amadurecimento identitário, o
pertencimento à nação e o mito do paraíso perdido se dá em “Requiem a mi primo
jamaiquino”: “Soy negro del campo,/ del Valle La Estrella./ Soy uma estrella
negra/ em el flamante Blanco, azul y rojo/ de nuestra bandera”. A ruptura com o
motivo edênico da Jamaica para a primeira geração de negros na Costa Rica surge
com a identificação ao novo lugar, ao Valle La Estrela, e com o símbolo
nacional da bandeira. Com isso, na zona de tensão caracterizada o
entrecruzamento cultural aparece no uso da língua para a comunidade de Limón,
ora espanhol, ora inglês, ou no uso do ‘spainenglish’: “Sí Seño;/ soy
costarricense,/ aunque apellidado este/ con ‘insky’, ‘man’, o ‘Le’”.
É na transgressão da ordem estabelecida
que a poesia de Eulalia Bernard desvela a participação dos negros na formação
identitária costa-riquenha, tendo na ancestralidade do tambor a subversão da
palavra escrita, da religião, da língua. A força da poesia ao ritmo do tambor,
signo marcante da poética negra presente tanto no brasileiro Carlos de Assumpção
quanto no martinicano Aimé Césaire, ou ainda no moçambicano José Craveirinha:
“Mi poesía es um tamborileo. (A veces fuerte) con ritmos multiplicados por el
fervor fuerte./ (...)En mi poesía el tambor es lira y el ritmo es el soneto. Yo
soy la mambo del culto ancestro// Sé decir sí, sé decir ‘yes’. Sé decir lo que
quiero en las lenguas que prefiero, con el habla del tambor./ En mi poesía,
cada palabra es un dios. Cada dios es un ritmo, cada ritmo cópula, cada cópula
un canto./ Mi poesía es. Hazte tambor y amarás mi canto”.
Estes são rápidos momentos da poética de
Eulália Bernard, integrante dessa poética negro-diaspórica que incomoda com
seus deslocamentos estéticos, semânticos, sintáticos, os cânones literários.
Nenhum comentário:
Postar um comentário