sexta-feira, 6 de agosto de 2010

António de Névada – Esteira Cheia ou o Abismo das Coisas


António de Névada – Esteira Cheia ou o Abismo das Coisas
por Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário A Nação Nº 153, de 05 a 11/08/2010, p. 16

 

Apetece a celebração quando se depara com uma poesia que transforma o ato da leitura em uma surpreendente e valorosa experiência. Passam-se os versos, passam-se as páginas e a mescla de interesse e inquietação apodera-se do leitor, ávido pelo que virá. Dessa maneira, entorpecido por um intenso labor criativo e ousado na depuração da palavra, a demonstrar maturidade plena em seu ofício, que se encerra a gratificante leitura de “Esteira Cheia ou o Abismo das Coisas”, do mindelense António de Névada.

Lançada em 1999, sob a chancela da editora Angelus Novus, “Esteira Cheia...” revela profundas indagações de natureza ontológica em longos poemas narrativos de pungente conotação épica. Particionada em três Canções (meditações, aguarelas do tempo e canto à semeadura) subdivididas por três cantos, precedidas por um Prelúdio (esteira cheia de sol) e finalizadas por um Coro (esteira cheia, ribeira da vida), esse épico, com acerto chamado de épica lírica por Osvaldo Silvestre e que o poeta denomina de drama ou polifonia poética, assemelha-se à estrutura da ópera, tendo a música como um referencial marcante aludido na epígrafe dedicada ao jazzista John Coltrane, por sinal, um artista também preocupado com as questões metafísicas, sendo exemplo maior o seu antológico álbum A Love Supreme.

Ressaltem-se as diferenciadas marcas intertextuais que abrilhantam a poesia de Névada, tais como as explicitadas pelo poeta e que valorizam a literatura de Cabo Verde, casos de João Vário, Timóteo Tio Tiofe e Corsino Fortes, a cultura popular cabo-verdiana e africana, nomes universais como Dante Alligheri e T. S. Elliot, e contemporâneos, caso de Nuno Júdice. Tantas referências são reconfiguradas pela pena criativa do poeta que realiza um mergulho angustiado no âmago do ser, atestado a seguir: “É sabido que o sofrimento/ e a carência são sombras/ que a árvore da vida/ projecta sobre as almas./ Mas como sarar a podridão do corpo,/ como colher da murchidão,/ se a dolência corroeu-nos o espírito,/ se o êxodo levou-nos o canto/ secou-nos o pranto?”(p. 12)

Na incessante busca pelo sentido de estar no mundo, posto que “sua alma cresce entre joios de desespero” (p. 17), “os versos medem a agonia/ e cavamos à procura da essência” (p. 27) em uma época desarranjada que apresenta imagens insólitas como “uma gola sem pescoço/ empunhando punhos de espanto” (p. 25). A poesia refere-se ao homem cabo-verdiano, à sua resistência e à sua “impropícia beatitude” (p. 29) “no chão putrefacto” (p. 31), o sujeito lírico solidariza-se com as dificuldades da vida do ilhéu, “caminhamos em busca do tempo”. Esse tempo que chega a ser quase que tangível, devido à artesania do poeta.

Da impossibilidade da indiferença ao visualizar a abnegação do ilhéu ao cumprir seu dever em lavrar a terra seca, “as lágrimas humedecem os olhos./ Os elementos diluem-se no abismo das coisas” (p. 51), estupefato “sob o peso da angústia” (p. 49), “procurando a ancestralidade/ ou a linha da vida” (p. 44), o sujeito lírico divaga: “E não pensemos/ que o acto de questionar/ o melhor das coisas/ nos levará à grandeza” (p. 50). Ainda impressionado com a insistência do lavrador, “E o homem/ cultiva sobre a terra estéril,/ e sobre ela ajoelha-se/ para louvar ou possuir/ o dom dos deuses.” (p. 60), tanto que “a densidade das palavras/ não encontra/ o discurso necessário” (p. 62) e se questiona: “Será que cavamos a própria sepultura?” (p. 64)

Valendo-se de uma linguagem inovadora e culta, com metáforas arrojadas, forte presença telúrica, pertinentes indagações acerca da existência, “julgaremos o homem, sua essência,/ como quem julga a negação dos deuses,/ o infinito ou a irreferência dos deuses!” (p. 67-68), sobre o tempo e a verossimilhança, elevam o nome de António de Névada como legítimo representante da melhor poesia de Cabo Verde:

Ao recriar o desgaste, o atrito
entre a esperança e a desesperança,
estabelece-se a mais verossímil
das parábolas:
A vida! (p. 71)

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