sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A (pa)lavra fértil de João Tala em "Forno Feminino" - resenha livro


A (pa)lavra fértil de João Tala em Forno Feminino
Por Ricardo Riso

Desde sua estreia literária com A forma dos desejos (1997), cada novo livro de poesia do angolano João Tala gera imensa expectativa entre os admiradores das literaturas africanas de língua portuguesa. O recente “Forno Feminino”, sob a chancela da Kilombelombe, lançado em 2009, corresponde de forma gratificante ao que se espera de sua escrita, confirmando o seu nome entre o que há de melhor nas letras angolanas neste primeiro decênio do século XXI.

Possuidor de uma poesia marcada pelas imagens insólitas, virulentas e surpreendentes, de um labor estético-poético acurado e inovador na desarticulação da sintaxe e na ampliação semântica no decorrer dos versos impactantes, prenhe ressignificador dos sentidos em sinestésicas metáforas surrealizantes de poemas que recusam os superficiais e acomodados caminhos da fácil compreensão. Uma poesia que desestrutura, por isso causa admiração, torna sua leitura prazerosa e reveladora dos rumos seguidos pelo sujeito poético. Assim é a poesia para quem procura lapidar a palavra poética com esmero. Assim é a poesia de João Tala.

Este jovem escritor nasceu em Malanje, Angola, em 19 de Dezembro de 1959, iniciou suas atividades literárias na década de 80, quando morava em Huambo e fazia o serviço militar. Nessa época, fundou a Brigada Jovem de Literatura Alda Lara e entrou na Faculdade de Medicina. Como médico, trabalhou na Lunda Norte e em Luanda.

Representante da geração dos anos 1990, Tala logo obteve admiração no meio literário angolano com o seu primeiro livro, “A forma dos desejos” (1997), merecedor do Prêmio Primeiro Livro da União dos Escritores Angolanos daquele ano. O arrebatamento de sua obra inicial fez com que o poeta José Luis Mendonça declarasse: “‘A forma dos desejos’, veio impor novas exigências à mesa de leitura em relação aos novos autores. Uma das exigências será o critério de qualidade estético-literário. Para o referido poeta, esse livro, possui todos os ingredientes que compõem a obra verdadeiramente literária: a ousadia da mensagem, a imagética surrealista e vanguardista que procura superar o já criado, ou pelo menos, ser diferente trazendo algo de novo, a elaboração conceptual dentro dum diversificado figurino”. (1)

Tamanha empolgação que poderia ter sido contaminada pela precipitação, foi consolidada no livro seguinte, “O gosto da semente”, recebedor da menção honrosa do prêmio literário Sagrada Esperança/2000. A respeito desse livro, o poeta João Maimona considera João Tala "como uma das mais importantes revelações da década de 90. Uma voz que nos deixa um aviso de que a poesia angolana é uma paisagem com diversidade e infinidade de caminho. Faz parte da comunidade de jovens autores que, no limiar da década de 80, procuravam, com rigor, pesquisa e talento, seleccionar, agrupar e combinar palavras que pudessem servir a arte através da literatura. Uma das mais importantes revelações da década de 90." (2)

A partir daí, referendado pelas elogiosas críticas, cada lançamento de Tala passou a ser aguardado com intensa expectativa. Assim o foi com “A forma dos desejos II” (2003), “Lugar Assim” e com “A vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos” (2005). Para além das muito bem sucedidas incursões na prosa, tendo publicado dois livros de contos: “Os dias e os tumultos” (2005) e “Surreambulando” (2007). Todos os livros sob a chancela da União dos Escritores Angolanos, exceto “O gasto da semente”, editado pela INIC.

Apesar de um forte componente político, a obra de João Tala sempre teve um viés erótico. Neste “Forno Feminino” o poeta aprofunda essa tendência inspirando-se em um antigo forno da região da Lunda-Norte. Assim o descreve em nota introdutória:

(...) em 1989, chegado no Dundo, Lunda-Norte, (...) a primeira instituição que visitei foi precisamente o Museu do Dundo onde pude conhecer, porque estava exposto, o histórico ‘forno feminino’. É uma estrutura moldada de barro e (talvez) argila, com contornos à imagem de uma mulher em cujo ventre se abre uma cavidade – o forno – de que antigos ferreiros da região se serviam para fundir metais com que elaboravam instrumentos de trabalho, em especial para a caça. Contaram-me que da simbologia reprodutiva os caçadores acreditavam na sorte para obtenção de ganhos, dada a ubiqüidade, quer a duplicidade do factor reprodutivo/multiplicação.

Dessa maneira, o tumulto proporcionado pela longa guerra civil que devastou Angola até o ano de 2002, data do acordo que selou a paz, não aparece com a frequência dos livros anteriores, “é um tempo de ave o anúncio da abundância” (TALA, p. 83), e neste “Forno Feminino” há um nítido e satisfatório desejo de ruptura com o passado de tristezas, reflexo do novo momento vivenciado pelo país e que a embriaguez criativa, capaz de alterar os sentidos visualiza novos caminhos:

Poema ébrio não é mais tua raiva
apago tua escrita dorida de raivas.
Bombeiro da inquietação
leitor das cartas imóveis
o engenho da tua caligrafia
eu, teu empenho a cumprir-te
quanto te conversas e precisas extinguir
o ruído da palavra que nem gritas. (TALA, p. 72)

Os novos tempos procuram trazer a estabilidade perdida ao país, logo Tala concentra-se na celebração da mulher em uma poética extremamente erotizada que, em vários e surpreendentes momentos, atinge resultados fascinantes e imagens inesperadas, mostrando o apuro e o domínio do poeta fertilizando o Verbo:

Boa-noite. Venho de lume à
brisa de terra.
Trouxe o frasco de hormônio
achei-o na farmácia do tempo.

Boa-noite pedacinho. Outro desejo e
dois sorvos. Avivarei mulher em ti
com fogo novo. Noitinha, senhora
súbita alegria de doer onde salgava
o útero. Mais um sorvo e saltam tuas rosas
outro sorvo pode extinguir a angústia
reunida nos teus ovários. (TALA, p. 44)

A erotização proposta na poesia de João Tala apresenta um poder ilimitado em transformar o próprio verbo, a palavra ganha contornos inovadores, ampliando significados, expandindo sentidos que valorizam a ousadia deste poeta, como em “Palavra amor”:

conheço-a, era uma pálpebra
dormindo no rosto

encrespa o dia desperta o fundo
monstro de um beijo palavra animal
com seus órgão genitais e coração atordoado.

carne da minha carne essa palavra
é uma pálpebra: abre os olhos e respira. (TALA, p. 53)

A sintaxe renovada e o uso cuidadoso do enjambement reforçam as imagens deste autêntico artífice da linguagem, inquieto nas metáforas delirantes desse sujeito lírico de desejo devastador. Com isso, apreende-se diversas referências ao fogo, elemento primordial da natureza, derretendo a palavra, modelando-a e apresentando novos contornos poéticos. O gozo da poesia em “Trompas uterinas/Braços do mundo”:

ouço o recomeço acostumada seara
de grãos rompidos

ainda. as grandes mãos do mundo
fixam sementes, algarismos

palavras cervicais
húmus sobre terra húmida,

é esse o caminho que atinge ovários
pela boca da labareda. (TALA, p. 27)

A inspiração poética surge de elementos díspares, semeados para satisfazer o intenso erotismo do sujeito lírico:

No limite duma mulher tem qualquer criança
com jardins enrolados.
É com este pensamento que poesia arável
cresce, incha, desdobra, decifra
mulheres no limite de suas criaturas. (TALA, p. 70)

A lavra do poeta mergulha na metapoética e no corpo feminino – “A escrita é feminina as palavras são mulheres” (TALA, p. 74). A sinestesia fertiliza os sentidos, nutrindo nossos olhos para versos em orgiástico delírio da palavra:

palavras bonitas como a palavra mágica.
nascente uma palavra moça, recorrente.

palavra menstrual, rosada.
a rigor o mês assiste o vocabulário
da permuta,

a palavra volúpia teu sexo repleto de pássaros
notas mágicas de teus olhos cheios de plan(e)tas
muitas palavras por dizer ou rasgar
quando comes os frutos ensopados;

quando do fruto tens palavra sentir: formas e dores;
e caber na forma palavra nutrir. (TALA, p. 55)

Saciar a sede criativa, fecundar o verbo poético em um lirismo pontuado por imagens surreais como no poema “As mãos urgentes”:

O pasto recolhe à sede palavra grávida
e nas mãos urgentes de semear a conversa
a língua busca o seu cardume onde
súbitas figuras adivinham a sede
apenas húmidos sons extravasam os
peixes da boca. (TALA, p. 25)

A devoção à palavra poética e o respeito ao poder transformador do verbo ganham belíssima homenagem em “Tuas palavras mágicas”:

São estas diferenças que partilho:
eclesiástica palavra tu és uma igreja

nutrida uma palavra
espiga outra palavra

levantas-me escolástica o nervo
com a tua dor;
aurora com o teu lume,

álgebra inquieta não somarias
o tempo que não partilho. (TALA, p. 41)

O livro encerra-se com um poema-oração à mulher, “o mundo recriado a partir dos olhos duma mulher”, no qual o sujeito lírico demonstra todo o seu fascínio e crença na reformulação da vida terrena, tendo a mulher como a responsável maior por essa transformação:

Sou a palavra que você não disse
o nome que você não chamou.
Contigo viverei palavras desiguais
palavras ardidas na língua que as prolonga;
palavras perdidas e procuradas
onde tentas o sonho
(não há mais nada para sonhar?)
Sou a palavra que você não disse
uma canção ao maravilhoso.
As páginas perseguem-me e
da retórica colhes os números;
mas os números não dizem nada
- são as preocupações do pouco,
sem as contar sem as procurar.
Eu sei, nos teus olhos, mulher
se eleva o pensamento;
dos teus olhos, mulher
Deus recriará o mundo.
Assim fora o começo d’olhos pensados
nas mãos de Deus. (TALA, p. 41)

“Forno Feminino” confirma a tessitura textual envolvente de João Tala, a consolidação de seu nome entre o que há de melhor na poesia angolana contemporânea, para além da permanente tentativa de reconstituição do verbo poético, de uma escrita que subverte as normas da língua de forma inovadora. Apreende-se com “Forno Feminino” um desenvolvimento estético e temático libertando-se dos estilhaços da guerra, sem a amargura e a dor daqueles dias. O poeta João Tala reconstrói a linguagem, recria-se e distancia-se dos traumas do passado, e com isso presta a sua contribuição para a reconstrução do país. Agora, em tempos de paz.

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