Cuti – compromisso com a afirmação da consciência negra na poesia afro-brasileira
por Ricardo Riso
sou a ave da noite / sou ávida noite / que bate asas de vento / e traz um canto agourento / ao sonho dos opressores / e traz um canto suave / a despertar outras aves / pro revoar da justiça
(CUTI. Ave. p. 76)
A epígrafe assinala o compromisso de Cuti, pseudônimo de Luís Silva, na conscientização do negro brasileiro. Além de ser um dos criadores e mantenedores da importante publicação “Cadernos Negros”, Cuti tornou-se nome de referência destacando-se no panorama literário, social e intelectual brasileiro por sua expressiva produção literária, pela coerente defesa dos seus ideais e reivindicações em prol da população afro-descendente, massacrada por séculos de submissão e opressão.
Com uma produção multifacetada, Cuti passeia com desenvoltura, rigor e excelência pela poesia, prosa, teatro, ensaios etc. sempre tendo como preocupação primeira revelar as desigualdades impostas pelas relações étnico-raciais e em elevar a autoestima do afro-descendente brasileiro. Com isso, o reconhecimento e o respeito ao seu trabalho ultrapassa as barreiras “invisíveis” da sociedade brasileira impondo-se pela ótima qualidade de sua escritura, o que fica evidente na leitura dos 84 poemas selecionados pelo autor na antologia “Negroesia” (Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007).
Abrangendo sua produção poética desde 1978, ano de sua estreia, Cuti acrescenta dez poemas inéditos na edição de “Negroesia”. Dividida em quatro partes: Cochicho, Aluvião, Chamego e Axé, anunciam as temáticas que perpassam os textos reunidos por um sujeito lírico criativo, inovador e dissonante na maneira como subverte o discurso da ordem estabelecida, reformulando pensamentos e atitudes, chamando atenção para as injustas condições sociais e sendo incisivo na crítica à consciência submissa do negro.
A preocupação em denunciar as mazelas da língua revela-se em diversos poemas, sendo enfrentadas pelo sujeito lírico que recorre a figuras de linguagem como anáforas, assonâncias e aliterações; ora é lúdico, ora é lírico; às vezes irônico e sarcástico; ora polissêmico, ora em surpreendentes neologismos. Em relação à forma, encontramos poemas curtos e longos, alguns em prosa demonstrando a versatilidade do autor.
A perversidade do racismo à brasileira é escancarada na constante autocensura do negro em várias situações humilhantes do cotidiano: “às vezes sou o policial que me suspeito / me peço documentos / e mesmo de posse deles / me prendo / e me dou porrada (...) / às vezes sou o meu próprio delito / o corpo de jurados / a punição que vem com o veredicto (...)” (p. 53). Tal consciência do negro, reveladora de sua baixa autoestima, torna-o incapaz de ser agente da história e conquistar sua dignidade, mostrando o quanto é pernicioso o discurso dominante. O curto poema “Medo Medular” expõe esse problema: “todo mundo tem medo / da vingança do preto / até o preto” (p. 48).
Por outro lado, o sujeito lírico está “atento / contra o jogo da humilhação e / do cansaço” (p. 39), em sua luta diária para afirmar sua identidade negra desprezada por séculos pela elite social branca. Não se entrega, resiste, faz da fruição poética o espaço para almejar os novos tempos conduzidos por um novo homem negro, “o negro pronto (...) com suor dilui espinhos / do horizonte cria músculos / e semeia o novo no crepúsculo” (p. 39-40). Como “está se fazendo sempre” (p. 39), o sujeito lírico, como “um peixe fora d’água”, insurge contra manifestações aparentemente inofensivas de desprezo a sua etnia, recorre à polissemia para demonstrar sua posição em “Para ouvir e entender ‘estrela’”: “se o papai-noel / não trouxer boneca preta / neste natal / meta-lhe o pé no saco!” (p. 42)
No seu papel de conscientização e de elevar a moral do negro, o sujeito lírico utiliza a metapoesia em diversas situações, reconfigurando as significações, abalando os sentidos, desestruturando as certezas e rebelando-se contra a linguagem opressiva busca metáforas impactantes para eliminar a autocensura, cria neologismo (poesídios) para libertar-se do encarceramento imposto, como em “Negroesia”:
“enxurrada de mágoas sobre os paralelepípedos / por onde passam carroções de palavras duras / com seus respectivos instrumentos de tortura // entre silêncios / augúrios de mar e rios / o poema acende seus pavios / e se desata / do vernáculo que mata // ao relento das estrofes / acolhe os risos afros / embriagados de esquecimento e suicídio / no horizonte do delírio // e do âmago do desencanto contesta as máscaras / lançando explosivas metáforas pelas brechas dos poesídios / contra o arsenal do genocídio.” (p. 29)
Mostrando-se atento ao seu tempo e compromissado em diminuir as injustiças até então perpetuadas a seus pares, o sujeito lírico revolta-se contra a hipocrisia da classe dominante que destina espaços específicos e limitados para suas reivindicações, e manifesta sua indignação em “A Trajehistória”:
“então dirigi meu verbo indignado aos palacetes onde anos a fio passei a desfiar meu rosário de denúncias com a fé inabalável de que as flores brotariam em maio e os frutos em novembro. distintas senhoras e senhores conversavam na varanda ouviam meus discursos aplaudiam e quando minhas palavras secavam ordenavam que me servissem bebidas finas. e diziam: – estamos estudando... estamos estudando... estamos estudando... as suas reivindicações... (p. 79)
Quando “a noite entrou toda nua e decidida com seus versos iansânicos” (p. 79), o sujeito lírico apreende que jamais terá suas reivindicações atendidas pelos caminhos liberados pelo poder. Resta o abandono à submissão, o sofrimento com as consequências de sua decisão; porém, retorna ao passado e recria com afeto o quilombo, o local que seus antepassados conseguiam manter a autonomia da identidade negra, ainda o espaço simbólico de libertação para os dias atuais e para unir os seus pares nas lutas vindouras:
por isso eu fugi e criei este quilombo no lado esquerdo do peito. Aqui flores e alimento nascem de janeiro a janeiro e outros fugitivos são recebidos com um canto guerreiro e podem adormecer com uma cantiga de ninar. (p. 80)
Apesar da poesia cutiana ser incisiva ao defender o negro, o afeto é frequente como forma de acalanto às dores sofridas por séculos de desprezo e humilhações, fragmentando e dilacerando o negro. Ler os poemas de Cuti é como receber um “abraço fraterno” (p. 67); com lirismo, os versos procuram recompor a história do negro:
eu vou ao mar pedir à maré-cheia / que despeje no meu coração tudo o que é meu / dessa longa e interminável viagem / de ser preso de um lado / retalhado do outro / e desacreditado depois // (...) eu vou ao mar lançar minha rede / tecida em caminhos de fuga / quilombola / pois minha falta de mim / minha falta de tribo / saímos de madrugada em busca de raízes afogadas / raízes suculentas no coração da história (p. 61-62)
Sensível ao problema da educação brasileira, pois “a corte sempre ordena / que se barre a nossa gente” (p. 57), que não se esforça em elaborar um plano educacional inclusivo, a fim de respeitar e considerar a diversidade étnico-racial do país, o sujeito lírico, “em secular esforço / de superar-se coisa e se fazer pessoa” (p. 73), apresenta a defesa coerente do regime de cotas e ações afirmativas: “cota é só a gota afrouxando botas / de um exército / para o exército da equidade // cota não reforça derrota / equilibra / entre ponto de partida / e ponto de chegada / a vitória coletiva / reinventada” (p. 74).
Ao percorrer as páginas de “Negroesia” deparamo-nos com poemas que são como “foice aparando o coice da prepotência” (p. 16) do discurso vigente, de um sujeito lírico que explora os extremos das potencialidades da língua para desmascarar as artimanhas do racismo e fazer da tessitura poética o local para “quebrar todo os elos dessa corrente de desesperos” (p. 50). Por ser “daqueles que cobram o leite derramado” (p. 46), a poesia de Cuti ensina-nos a abrir “a porta enferrujada do silêncio” (p. 70), a abandonarmos nossas angústias, medos e pesadelos. Cuti crê na força do verbo poético atuando na transformação de novas consciências, na afirmação da identidade negra, na valorização da sua história coletiva, na justiça social que um dia se fará.
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