sábado, 20 de novembro de 2010

Dia da Consciência Negra 2010 - Conceição Evaristo, Éle Semog, Cuti e Lande Onawale

Meu Rosário

Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.
Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo
padres-nossos e ave-marias.
Do meu rosário eu ouço os longínquos batuques
do meu povo
e encontro na memória mal adormecida
as rezas dos meses de maio de minha infância.
As coroações da Senhora, em que as meninas negras,
apesar do desejo de coroar a Rainha,
tinham de se contentar em ficar ao pé do altar
lançando flores.
As contas do meu rosário fizeram calos
em minhas mãos,
pois são contas do trabalho na terra, nas fábricas,
nas casas, nas escolas, nas ruas, no mundo.
As contas do meu rosário são contas vivas.
(Alguém disse um dia que a vida é uma oração,
eu diria, porém, que há vidas-blasfemas).
Nas contas de meu rosário eu teço intumescidos
sonhos de esperanças.
Nas contas de meu rosário eu vejo rostos escondidos
por visíveis e invisíveis grades
e embalo a dor da luta perdida nas contas
de meu rosário.
Nas contas de meu rosário eu canto, eu grito, eu calo.
Do meu rosário eu sinto o borbulhar da fome
no estômago, no coração e nas cabeças vazias.
Quando debulho as contas do meu rosário,
eu falo de mim mesma um outro nome.
E sonho nas contas de meu rosário lugares, pessoas,
vidas que pouco a pouco descubro reais.
Vou e volto por entre as contas de meu rosário,
que são pedras marcando-me o corpo caminho.
E neste andar de contas-pedras,
o meu rosário se transmuta em tinta,
me guia o dedo,
me insinua a poesia.
E depois de macerar conta por conto do meu rosário,
me acho aqui eu mesma
e descubro que ainda me chamo Maria.
(EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. p. 16-17)

torpedo
irmão, quantos minutos por dia
a tua identidade negra toma sol
nesta prisão de segurança máxima?
e o racismo em lata
quantas vezes por dia é servida a ela
como hóstia?

irmão, tua identidade negra tem direito
na solitária
a alguma assistência médica?

ouvi rumores de que ela teve febre alta
na última semana
e espasmos
– uma quase overdose de brancura –
e fiquei preocupado.

irmão, diz à tua identidade negra
que eu lhe mando um celular
para comunicar seus gemidos
e seguem também
os melhores votos de pleno restabelecimento
e de muita paciência
para suportar tão prolongada pena
de reclusão.
diz ainda que continuamos lutando
contra os projetos de lei
que instauram a pena de morte racial
e que ela não tema
ser a primeira no corredor
da injeção letal.

irmão, sem querer te forçar a nada
quando puderes
permite à tua identidade negra
respirar, por entre as mínimas grades
dessa porta de aço
um pouco de ar fresco.

sei que a cela é monitorada
24 horas por dia.
contudo, diz a ela
que alguns exercícios devem ser feitos
para que não perca completamente
a ginga
depois de cada nova sessão de tortura.

irmão, espero que esta mensagem
alcance as tuas mãos.
o carcereiro que eu subornei para te levar o presente
me pareceu honesto
e com algumas sardas de solidariedade.
irmão, sei que é difícil sobreviver
neste silencioso inferno
por isso toma cuidado
com a técnica de se fingir de morto
porque muitos abusaram
e entraram em coma
fica esperto!

e não esquece o dia da rebelião
quando a ilusão deve ir pelos ares.

um grande abraço
deste teu irmão de presídio

assinado:
zumbi dos palmares
(CUTI. Negroesia - antologia poética. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 92-94)


BLACK POWER
eles ficam se perguntando
como posso me fazer bonito
com tudo aquilo que acham feio
como posso regritar meu grito
depois de tanta opressão
eles não sabem como chego até você irmão

o que pensam que sabem de nós
é só o que pode ser escrito
o que pode ser falado
mas a nossa força é indescritível brother

emerge dos séculos
de luta por liberdade
para ser cúmplices olhares
ou apertos de mão
(ONAWALE, Lande. O Vento. Salvador: Ed. do Autor, 2003. p. 51)

A CHAVE DA COR BRASILEIRA
Todos os dias, a vida inteira
uma razão interior, harmoniosa,
que herdei de gente da minha gente,
e veio por séculos a fio da meada,
me conduz e anuncia,
sem ser oráculo ou magia,
que sou vida porque sou negro,
que sou pleno porque sou negro,
que sou feliz porque sou negro.
Em toda a minha volta,
na versão dos outros,
na exclusão, no sofrimento,
no preconceito esplêndido
nada de mim pode Ser
além do branco, o possível.
E todos os dias me espreitando,
esperando chegar alguma dor,
ou ruptura no fio da meada,
uma outra razão turva e pesada,
insinuosa e despudorada
oferece uma das chaves
que abre o mundo dos brancos...
É para eu entrar, mas sozinho
e lá poderei ser pitoresco e faceiro,
desde que deixe os meus no caminho
e tranque para sempre o negro
que também sou, fora de mim.
(SEMOG, Éle. Tudo que está solto. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2010. p. 110-111)

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