Filinto Elísio e os novos caminhos para “desoficinar a poesia”
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 182, p. 13, de 24/02/2011.
Meu primeiro contato com a poesia de Filinto Elísio se deu com o livro Das Frutas Serenadas, ocasião que tive oportunidade de conhecê-lo na USP, Brasil. Com o avanço das páginas do referido livro, vi que estava à frente de uma poesis que vivenciava sua insularidade dentro da literatura cabo-verdiana. Deparei-me com um vigor surpreendente que privilegiava a metapoética aliada a uma deliciosa união de sinestesia e exacerbado erotismo, para além do pleno uso das rimas internas, assonâncias e aliterações subvertendo a estrutura do soneto, configurando o poeta como um excelente sonetista. Evidências que seriam aperfeiçoadas com o livro seguinte, Li Cores & Ad Vinhos, e a plena maturidade de Filinto em seu ofício.
Entretanto, o inquieto poeta resolveu aventurar-se pelo romance, aliás, o antirromance, rompendo com tudo o que já tinha sido escrito até então em seu país, e jogou nas ruas Outros Sais na Beira-Mar. Um outro assombro, como sempre prazeroso, diante do audacioso hibridismo proposto pela narrativa fragmentada de Elísio, mesclando diferentes gêneros literários e incorporando características textuais da internet, como os e-mails.
Em sua permanente desassossegada criação literária o autor decide retornar à poesia. O que esperar de um novo livro de poesia de Filinto Elísio? Algo transgressivo, no mínimo, assim o escritor habituou-me.
Recebo Me_xendo no baú que sairá pela portuguesa Letras Várias, em caprichada edição com pinturas do português Luís Geraldes e um CD com os poemas declamados por João Branco e Nancy Vieira. Passo rapidamente os olhos pelas páginas e percebo que Filinto retoma características do passado e os sonetos, predominantes nos dois últimos livros, são abandonados, ou melhor, há apenas um. Agora os versos são curtos, breves, a lembrar os tempos Do lado de cá da rosa.
Me_xendo no baú está dividido em cinco cadernos, totalizando 35 poemas. Os cadernos possuem títulos curiosos em razão da grafia escolhida pelo poeta, deslocando nossos sentidos sendo reconfigurados pela sonoridade das palavras, arte na qual Elísio é mestre como são os grandes nomes da poesia: Ó de ceia das i_lhas. Formado por dez poemas, este primeiro caderno propõe-se uma peculiar leitura das ilhas de Cabo Verde “antes do verbo”. Diante dos sentidos desgastados das palavras pela insensibilidade da contemporaneidade, o poeta “pensa palavras primordiais” para ressignificar a história das ilhas em forma de poesia, esmaecidas pelos fragmentos da memória e dignificá-las com a força libertadora do verbo poético. O derradeiro caderno retorna ao país e o poeta celebra as manifestações musicais das ilhas em belíssimos poemas. Estão lá a morna (reatualizada), a coladeira, a tabanka, o cola son jon, o funaná, o batuque – e a comovente homenagem às mulheres: “na re_tina de aquém & mar/ mulheres da grande ilha/ tam_borilam entre suas coxas/ o destino de serem outras deusas/ a_finação das máguas – suas lem_branças…”. Surpreendo-me com o criativo neologismo “máguas”, a unir a mágoa das mulheres abandonadas por seus homens e a água do mar, esse mar que leva os companheiros para a terra-longe.
Desarranjar os estáticos sentidos semânticos dos nossos tempos, perscrutador das palavras, poeta. Palavra, erotismo, poesia, a geografia das ilhas a serviço da poeisis de Elísio, navegador de uma linha tênue que invoca exclamações. “São o caos querendo o cosmos” para a peculiar grafia de sua poesia. Não por acaso, o ar, elemento da natureza representando o voo, a liberdade da palavra poética, presentifica-se. Percepções inertes na agitação dilaceradora do cotidiano. Cabe ao poeta restaurar as “coisas levi_tantes” e fecundar “lavra_s novas”.
“Persistem em mim todas as fomes”. A fome que devastou o povo das ilhas em tempos idos se demonstra insaciável na incessante recriação do verbo poético. A sinestesia permanece marcante, a erotização estonteante, palavra poética de puro desejo, versos surgidos na efemeridade da vida, o que o leva a dessacralizar o desejo, sendo fiel ao seu instinto masculino: “versejo-te sendo este desejo/ uma estranha forma de cruz”.
A celebração simbolista nas metáforas inusitadas, a intertextualidade com Arthur Rimbaud e com a própria obra: “rosa do lado de cá?”; as referências obrigatórias do poeta: o Fernando Pessoa de “Ode Marítima” e “Autopsicografia”, e o mineiro Carlos Drummond de Andrade das Gerais de tanto agrado do poeta de Santiago, para além do universal expresso nas citações da mitologia egípcia.
Em seu “tabu_leiro” de palavras, a investigação ininterrupta dos sons e a sua musicalidade em diferentes grafias – “em mi fá sol lá da melo dia” e “musicar fonemas” –, substancia-se com o farto recurso de termos e maneiras de escrita apropriados da internet, “S grafema impreciso/ VC de vossemecê”; na supressão de vogais e a crítica ao empobrecimento da língua portuguesa tratada de forma invertida: “amiúde sem vogais/ de ataúde consoantes:/ amar-te em MR-T/ FDR-T gemendo assaz letras/ CMR-T engolindo-as todas”; assim como, a ironia de um surrealismo delirante que somente um poeta transgressor como Elísio poderia proporcionar: “S exílio/ S lírio/ C de cílio/ e de você/ esse delírio”.
Por outro lado, a reverência a um cânone da literatura de Cabo Verde, profundo admirador da expressão máxima da poesia, a sua musicalidade. Falo de Corsino Fortes de “Pão & Fonema” e “Árvore e Tambor”: “aliterando em T/ (corsino verseja tambor)/ metaforizando em P/ (cor & sino tal poesia)”.
Criatividade extrema, ludicidade com as palavras, o poeta a cantar o seu “hino de liberdade”, a criar inusitadas pontes com um mestre da sonoridade das palavras como Manuel Bandeira – em desassombro de qualquer pasargadismo ou antipasagardismo da história literária cabo-verdiana – e o seu poema “Rondó do Capitão”, utilizando versos livres, imagens automáticas e surreais, onomatopeias, versos impregnados por temos da computação – “mas/ não me piches/ no graffiti/ nem me_gapixels/ em photoshop”. Por isso o poeta afirma para mim, para o leitor, “upgrada-te”. Sentimento necessário para acompanhar o intenso uso da tecla “underscore” (ou underline) fartamente aplicado na internet, que ora serve para reforçar o gozo sexual em “den_goso”, ora para jogos lúdicos como as “equações estéticas” de “Intradoxos”: “a_barco/ b_arco/ c_rco/ ...de circo meu bem”. Transgressão na linguagem que procura restaurar sentidos profundos dissolvidos pelo tempo, lucidamente reconstruídos no processo constante de “desoficinar a poesia”.
Me_xendo no baú revela a ludicidade em harmonia com a complexidade criativa de um poeta que se atreve a inovar, a se apropriar de referenciais contemporâneos para sua escrita. Não é por menos que afirma: “querem de mim ainda as transgressões”. Filinto, todas, se possível. Que continue “vasculhando o ú” de sua poesia, deslocando as imagens, recriando palavras e sons, desestabilizando os incautos da poesia sem tesão, revisitando as ilhas do arquipélago, celebrando suas músicas, esfarpando “metrificações e versos”, valorizando os poetas que o formaram... por arriscar novos caminhos para a sua poesia, Filinto Elísio amplia a vastidão de seu mar e fortalece a insularidade de sua trajetória na literatura cabo-verdiana, tornando-se um obrigatório mar a ser navegado. Com prazer, sempre.
Nada conheço da literatura caboverdiana, Ricardo. Mas seu blog me instiga e abre portas para conhecê-la.
ResponderExcluirObrigado. Voltarei com mais calma.
Abraços
Caro Tuca, creio que quando conhecer textos de Filinto, António de Névada, José Luiz Tavares, José Luis hopffer Almada e Arménio Vieira (Prêmio Camões 2009), o senhor ficará encantado.
ResponderExcluirA literatura de CAbo Verde vivencia um ótimo momento e vale a pena ser lida por nós. Fiz uma parceria com a editora Artiletra e agora encontra-se alguns livros de autores cabo-verdianos à venda na Kitabu - Livraria Negra. Um nome que você pode adquiri sem arrependimento é o de Valentinous Velhinho.
Para melhores informações, estarei disposto para a troca.
Abraços,
Ricardo Riso