quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Timóteo Tio Tiofe – O Primeiro Livro de Notcha


Timóteo Tio Tiofe – O Primeiro Livro de Notcha

Por Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, nº 180, de 10 de fevereiro de 2011, p. 27.
João Manuel Varela é um caso paradigmático na história da literatura de Cabo Verde ao afastar-se da cabo-verdianidade e do telurismo de raiz claridosa, com predomínio da obra de Jorge Barbosa, ainda fortemente influenciando seus pares nova-largadistas e demais nomes que despontaram na virada dos anos 1950/1960.
Varela fragmentou sua obra poética em heterônimos, sendo os poemas atribuídos a João Vário, os “Exemplos”, motivo de negação no meio literário de seu país, “obra por todos nós discriminada” no dizer de Manuel Ferreira em “Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa” (FERREIRA, 1987, p. 63), mas que ainda sofre com a “ostracização literária” como assinala José Luis Hopffer Almada em recente artigo, “Que caminhos para a poesia cabo-verdiana – parte II”. Ostracização estimulada naquele tempo por não acompanhar a temática de luta anticolonial, por privilegiar indagações ontológicas e metafísicas, e por fazer uso do longo poema narrativo com forte ressonância épica, para além das diferentes referências que vão da Bíblia aos clássicos da literatura ocidental.
Por outro lado, paralela à obra de João Vário, Varela cria um outro heterônimo, Timóteo Tio Tiofe, com um discurso cabo-verdiano e que rompe com a influência de Jorge Barbosa e cria “O Primeiro Livro de Notcha”, “um poema de que as minhas ilhas precisam e, em certo sentido, talvez, o poema que a minha geração aguarda ou aguardava de mim” (TIOFE, 2000, p. 13). Fragmentos desse poema vinham sendo publicados desde os anos 1960 até serem refundidos em “O Primeiro e o Segundo Livros de Notcha”, sob a chancela da Edições Pequena Tiragem, em 2000.
“O Primeiro Livro de Notcha” é dividido em três partes, subdivididas em “discursos”. Neles, o poeta retoma características da obra de Vário como a intertextualidade com a Bíblia e aos cânones ocidentais, porém insere o homem cabo-vediano na plenitude de seus anseios, receios, cotidiano, mitos, revoltas, língua materna, rememoração de populares, heróis nacionais e africanos, assim como o farto uso de elementos e expressões da geografia, da história, da botânica do arquipélago.
O narrador insere-se como africano, pois, para ele, “o nosso destino, o destino político do arquipélago, é inconcebível fora do contexto africano” (p. 13). Afinal, é “um homem deste século,/ um homem de África, (...) falando da África deste tempo e de seu povo” (p. 21). Tempo de emigração forçada para o contrato: “Vou dar nome para Angola ou São Tomé. Sabes se ainda recebem contratos para este mês, Cunha?” (p. 34). A respeito da emigração para S. Tomé, Tiofe, na “Primeira Epístola ao meu irmão Antonio”, aponta para a nova realidade submetida ao cabo-verdiano que se depara com “a humilhação, (...) a falta de recursos da terra. (...) é a partida como solução desesperada” (p. 133). Revolta expressa ao relatar a quantidade absurda de mortos nas letras frias das estatísticas pela seca e fome ao longo dos séculos, estimulando o apoio aos revolucionários: “quem não pensa, neste tempo de Sekou Touré, de BenBela, de Guevara, em pegar em armas?” (p. 97).
Esse sofrimento da África sempre foi “ignorado” pela instituição que apoiou a dor dessa população: “Algum tempo mais tarde, o papa Paulo VI recebia em audiência Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos. Soube-se, então, no Vaticano, que lutar pela independência é também uma maneira de merecer o reino dos céus” (p. 115). Aliás, a única solução para as ex-colônias de Portugal diante da intransigência deste em negociar as independências e indaga: “Ó homens da Europa, homens/ que vos embriagais de orgulho e simonia/ por que não haverá neste mundo/ outra certeza além da vossa?” (p. 119).
É incontestável a depuração da linguagem, o exaustivo e criativo labor com a palavra poética de João Manuel Varela proporcionando plena satisfação para quem ler este livro atribuído a T. T. Tiofe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário