ODETE COSTA SEMEDO – NO FUNDO DO
CANTO
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 295, de 25 de
abril de 2013, p. A40.
A Guiné-Bissau é um país de parca produção literária e Odete Costa Semedo
traz uma excelente contribuição para a poesia guineense com o seu livro “No
fundo do canto”, de 2003.
Após o trauma do sangrento conflito armado entre 07/06/1998 e 07/05/1999,
Semedo utilizou a experiência vivenciada como matéria poética para o
canto-poema de seu livro: é “o desabafo escancarado de uma situação” (SEMEDO,
2007, p. 13) em que o país havia mergulhado por causa dos vários descaminhos
políticos após a independência, em 1974.
“No
fundo do canto” trata da história recente do país e do horror da guerra, e, a
partir daí, afirmar a identidade nacional, buscando desconstruir a nação para
reconstruí-la poeticamente. Para isso, Semedo nos introduz na multifacetada
cultura das etnias guineenses, valendo-se do retorno às tradições, do culto aos
antepassados e ao uso constante de vocábulos da língua crioulo que se misturam
ao português.
Em
poemas curtos ou longos; ora épicos, ora líricos; o sujeito lírico narra em
primeira pessoa a guerra ou em terceira pessoa descreve fatos e determina
vaticínios. Logo, apreendemos a crescente tensão política do país em quatro
partes que se completam no decorrer da leitura, a saber: “No fundo... no
fundo”, “A história dos trezentos e trinta e três dias”, “Consílio dos irans” e
“Os embrulhos”.
Na
primeira parte somos convocados pelo tcholonadur, o mensageiro, que se
autoafirma o intermediário que narrará os acontecimentos: “Não te afastes /
aproxima-te de mim / (...) pede-me que te mostre / o caminho do desassossego /
o canto do sofrimento / porque sou eu o teu mensageiro / (...) vem... /
senta-te que a história não é curta”.
O
afastamento da cultura tradicional para que o país se enquadrasse na política
internacional, exigia a modernização da nação em detrimento das promessas da
revolução: “Veio a tecnologia / espreitou / mas não entrou / tropeçou num
buraco / estava escuro / não deu com a entrada / e continuou na rua ao pé da
casa / à espera de luz “.
“A
história dos trezentos e trinta e três dias” denuncia a agonia dos guineenses
com o cruel conflito. O caos estabelecido pela violência dos militares
nacionais e estrangeiros acompanha o horror da poetisa: “venceram a ganância /
a violência / e o desespero / E nós? / não acredito / no que os meus olhos
vêem”. O vaticínio se cumpriu; os ideais da libertação, minados: “Um mundo de
promessas / foi deixado para trás”. Surge a distopia: “Bissau não quis
acreditar / que estava sendo violada / violentada / adulterada (...) / nua
deitou-se de bruços / para receber chicotadas / para receber açoite”.
No
“Consílio dos Irans”, a convocação das entidades de todas as etnias e
subetnias, seus irans e totens em
rituais, mostra a pluralidade cultural guineense. As linhagens anunciam-se, é
feita a kontrada (grande reunião) com irans (divindades
protetoras) de todas as djorsons (linhagens), porque “há culpados... /
Que não fiquem mudos / nem impunes”. Semedo recorre à religiosidade tradicional
para reconstruir a fragmentada identidade nacional através da identidade
coletiva e procura salvar a nação da guerra.
Entretanto,
o rompimento com a exploração se dá quando todas as etnias se unem, ou seja, o
país se recompõe pela reconciliação de seus filhos, sem apoio estrangeiro. A
força dos antepassados e das entidades emerge a nação: “Os irans das djorsons
sentiram / Guiné e Bissau uma só / erguendo-se com vigor / reafirmando sua
força (...) / invocaram todas as energias / do alto às profundezas do mar / e o
chão foi abençoado”.
Depreendemos
após a leitura de “No fundo do canto”, que, Odete Semedo, testemunha do
conflito de 1998/1999, denuncia o horror da guerra, usa a ironia para
desmascarar o discurso da classe dominante e o mal que o neoliberalismo
encoberta. Em seu texto, propõe, através de alegorias e da desconstrução da
realidade do país, a revalorização da multifacetada cultura guineense em favor
da identidade e soberania nacionais.
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