domingo, 30 de junho de 2013

Rasuras da História desveladas na Poesia (A Nação)


Rasuras da História desveladas na Poesia
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 263, de 13 de setembro de 2012, p. E18
As diversas revoltas contra o sistema escravocrata ocorridas no século XIX aparecem de forma tímida na literatura cabo-verdiana, principalmente se levarmos em conta que “raramente aqueles escritores (‘da geração claridosa’) se debruçam sobre as grandes revoltas camponesas da ilha de Santiago. Mas descrevem repetidamente as revoltas urbanas do Mindelo ao qual se sentem associados”, de acordo com José Carlos Gomes dos Anjos em “Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde” (2006, p. 139), como exemplo o mitificado Ambrósio, versado por Gabriel Mariano.
Uma vertente bastante marcante da obra poética de José Luis Hopffer Almada é o resgate de cenários, protagonistas e revoltas antiescravocratas do passado, principalmente da ilha de Santiago, buscando a valorização da afro-crioulidade identitária conforme o próprio poeta esclarece a este jornal na sua edição 92: “A memória é um lugar onde se podem resguardar muitos milagres. Lugar de refúgio e de ancoragem, pode por outro lado ser constantemente reencenado nos termos propostos pela imaginação e pelo engenho do criador que se propõe revisitá-la. Para além dessa pressão incontornável, creio importante empreender algum labor de resgate do passado histórico de Cabo Verde e, especialmente, de Santiago, ilha particularmente vituperada durante grande parte do período colonial e do período pós-Independência. Tem-se por vezes a impressão de que alguns se especializaram na ocultação da história da ilha, das suas populações, das suas elites, das suas manifestações culturais mais características... Contra a amnésia (deliberada e induzida) há que contrapor a memória e as suas revisitações. (...) A interpretação do passado mediante o discurso científico não substitui todavia o que ao poeta, ao escritor e ao artista da palavra compete: criar emoções e comoções presentes com o olhar debruçado sobre as circunstâncias e os afectos dos nossos antepassados, reencenados no palco imaginário da nossa memória e da nossa genealogia.”
Contra a amnésia induzida que estranhamente ignora um contexto histórico de contestação à ordem estabelecida no século XIX presente nas revoltas dos Engenhos (1822), Monte Agarro (1835) e Achada Falcão (1842), dentre outros fatores, as invasões napoleônicas, a fuga da Família Real, a independência do Brasil às lutas liberais em Portugal (VIEIRA,1993;1999), valemo-nos do que Jacques Derrida menciona como “suplementar” para preencher as rasuras que se apresentam na literatura a partir de um contradiscurso inclusivo, pois para o ensaísta o “signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais como suplemento (...), suprir uma falta do lado do significado” (DERRIDA, 1971, p. 245).
Com esta perspectiva que Hopffer Almada procura desvelar o passado colonial cabo-verdiano nos poemas de seu heterônimo NZé dy Sant’Y’Águ, tal como aparece no poema “Monte-Agarro”, incluído no livro Praianas (2009, p. 95-96). Este poema retrata a malograda insurreição antiescravocrata protagonizada por Gervásio, Narciso e Domingos em 1835, que pretendia extinguir o sistema escravista, matar os senhores brancos e tomar a ilha de Santiago, tornando-a um Haiti cabo-verdiano (ALMADA, 2007). Entretanto, com o insucesso “era esse o destino/ de monte-agarro fonteana/ julangue serra-malagueta/ e dos cavalos da sua noite exausta/ resfolegando contra os próceres/ do morgadio e do pelourinho...” (2009, p. 96).
Encerra-se o poema recordando outras revoltas malogradas, mas permanece a dimensão humanística da obra de José Luis Hopffer Almada conotada à evocação da filosofia ubuntu dos direitos humanos proferida pelo filósofo Mogobe Ramose no artigo “Globalização e Ubuntu”, que resgata o aforismo “Motho ke motho ka batho”, que “afirma ser humano é afirmar a humanidade própria através do reconhecimento da humanidade dos outros e, sobre tal embasamento, estabelecer relações humanas entre eles” (2010, p. 212).

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