Rasuras da História desveladas na
Poesia
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 263, de 13 de
setembro de 2012, p. E18
As diversas revoltas contra o sistema escravocrata ocorridas no século
XIX aparecem de forma tímida na literatura cabo-verdiana, principalmente se
levarmos em conta que “raramente aqueles escritores (‘da geração claridosa’) se
debruçam sobre as grandes revoltas camponesas da ilha de Santiago. Mas
descrevem repetidamente as revoltas urbanas do Mindelo ao qual se sentem
associados”, de acordo com José Carlos Gomes dos Anjos em “Intelectuais,
literatura e poder em Cabo Verde” (2006, p. 139), como exemplo o mitificado
Ambrósio, versado por Gabriel Mariano.
Uma vertente bastante marcante da obra poética de José Luis Hopffer
Almada é o resgate de cenários, protagonistas e revoltas antiescravocratas do
passado, principalmente da ilha de Santiago, buscando a valorização da
afro-crioulidade identitária conforme o próprio poeta esclarece a este jornal
na sua edição 92: “A memória é um lugar onde se podem resguardar muitos
milagres. Lugar de refúgio e de ancoragem, pode por outro lado ser
constantemente reencenado nos termos propostos pela imaginação e pelo engenho
do criador que se propõe revisitá-la. Para além dessa pressão incontornável,
creio importante empreender algum labor de resgate do passado histórico de Cabo
Verde e, especialmente, de Santiago, ilha particularmente vituperada durante
grande parte do período colonial e do período pós-Independência. Tem-se por
vezes a impressão de que alguns se especializaram na ocultação da história da
ilha, das suas populações, das suas elites, das suas manifestações culturais
mais características... Contra a amnésia (deliberada e induzida) há que
contrapor a memória e as suas revisitações. (...) A interpretação do passado
mediante o discurso científico não substitui todavia o que ao poeta, ao
escritor e ao artista da palavra compete: criar emoções e comoções presentes
com o olhar debruçado sobre as circunstâncias e os afectos dos nossos
antepassados, reencenados no palco imaginário da nossa memória e da nossa
genealogia.”
Contra a amnésia induzida que estranhamente ignora um contexto histórico de
contestação à ordem estabelecida no século XIX presente nas revoltas dos
Engenhos (1822), Monte Agarro (1835) e Achada Falcão (1842), dentre outros
fatores, as invasões napoleônicas, a fuga da Família Real, a independência do
Brasil às lutas liberais em Portugal (VIEIRA,1993;1999), valemo-nos do que
Jacques Derrida menciona como “suplementar” para preencher as rasuras que se
apresentam na literatura a partir de um contradiscurso inclusivo, pois para o
ensaísta o “signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na
sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais como suplemento (...),
suprir uma falta do lado do significado” (DERRIDA, 1971, p. 245).
Com esta perspectiva que Hopffer Almada procura desvelar o passado
colonial cabo-verdiano nos poemas de seu heterônimo NZé dy Sant’Y’Águ, tal como
aparece no poema “Monte-Agarro”, incluído no livro Praianas (2009, p. 95-96).
Este poema retrata a malograda insurreição antiescravocrata protagonizada por
Gervásio, Narciso e Domingos em 1835, que pretendia extinguir o sistema escravista,
matar os senhores brancos e tomar a ilha de Santiago, tornando-a um Haiti
cabo-verdiano (ALMADA, 2007). Entretanto, com o insucesso “era esse o destino/ de
monte-agarro fonteana/ julangue serra-malagueta/ e dos cavalos da sua noite
exausta/ resfolegando contra os próceres/ do morgadio e do pelourinho...”
(2009, p. 96).
Encerra-se o poema recordando outras revoltas malogradas, mas permanece a
dimensão humanística da obra de José Luis Hopffer Almada conotada à evocação da
filosofia ubuntu dos direitos humanos proferida pelo filósofo Mogobe Ramose no
artigo “Globalização e Ubuntu”, que resgata o aforismo “Motho ke motho ka
batho”, que “afirma ser humano é afirmar a humanidade própria através do
reconhecimento da humanidade dos outros e, sobre tal embasamento, estabelecer
relações humanas entre eles” (2010, p. 212).
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