terça-feira, 30 de julho de 2013

Eneida Nelly e o cânone


Eneida Nelly e o cânone
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 308, 25 de julho de 2013, p. A34.
O estabelecimento do cânone fala muito mais pelas ausências e silenciamentos impostos do que por aqueles contemplados para constituí-lo. Sua rigidez está conotada aos espaços de poder em disputa. Assim, é fundamental questionar a homogeneização do cânone, “ignorar essa abertura é reforçar o papel da literatura como mecanismo de distinção e hierarquização social, deixando de lado as suas potencialidades como discurso desestabilizador e contraditório”, afirma a ensaísta brasileira Regina Dalcastagnè no livro “Literatura Brasileira Contemporânea: um território contestado” (2012, p. 12).
Nas literaturas africanas de língua portuguesa, a ensaísta brasileira Laura Cavalcante Padilha, no artigo “A diferença interroga o cânone”, chama atenção de obras que contribuíram para a constituição deste cânone, são as antologias “No reino de Caliban” (1975), de Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban. Ela afirma que:
“Lembrando o fato de que o acervo crítico dessas literaturas se ter forjado inicialmente fora da África – na Europa e nas Américas, com Portugal e Brasil à frente –, começo a questionar até que ponto, o cânone “consagrado” por outras vozes que não as africanas, submeteu-se aos mesmos mecanismos de dominação e poder que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretudo se o objeto recortado são questões como de gênero e raça” (2002, p. 164).
Ou seja, na obra de Ferreira temos 36 escritores e, dentre eles, apenas uma mulher (Yolanda Morazzo), omitindo-se a questão de raça. Quase 20 anos depois, a seleção de Laban inclui 25 escritores, entre eles, apenas uma mulher, Orlanda Amarilis. Como já afirmamos em outros momentos, o negro e a mulher estão fora do cânone literário cabo-verdiano, por isso, a pertinência de interrogar o cânone e a pergunta que incomoda a quem interessa a manutenção do status quo: onde estão aqueles que sempre foram silenciados e excluídos?
A intelectual indiana Gayatri Chakravorty Spivak é uma das mais lúcidas vozes no combate à situação da mulher, voz subalternizada e excluída do jogo do poder. Para Spivak (2010), essa condição subalterna forçada mantém o silenciamento de sua voz e ainda assim quando consegue se pronunciar não é escutada. A pergunta de Spivak: pode o subalterno falar? O sujeito subalterno feminino não é sujeito da sua história, não tem voz e não pode falar, falam por ele, o que se configura uma violência epistêmica.
E perguntamos: se a mulher não pode falar, será que a mulher negra pode falar?
Diante da heteronormatividade presente nas sociedades patriarcais, logo brancocêntricas, não é de se estranhar a ausência de uma escritora negra no cânone literário cabo-verdiano. Eneida Nelly desafia esse cânone e os seus pesquisadores quando lança o seu único e derradeiro livro de poesia, “Sukutam” (Escuta-me), em 2011. Primeiro pela escrita em língua materna cabo-verdiana, que já conta com uma vasta produção que é ignorada pelos especialistas da literatura de Cabo Verde – os brasileiros que o digam, restritos à produção em língua portuguesa. Neocolonialismo? Por que não? Segundo, nos 50 poemas do livro, Nelly desvela a mundivivência de uma mulher negra, pobre, da zona rural da Ilha de Santiago. Estão ali a denúncia social e a sensibilidade feminina ao retratar o cotidiano de dificuldades e de resistência das manifestações culturais negras das camadas marginalizadas.

O papel pioneiro exercido por Eneida Nelly ao trazer o gênero, a raça e a autoria feminina em crioulo, demonstra a necessidade de reavaliação do cânone e da postura do pesquisador brasileiro de literatura cabo-verdiana, restrito à produção em língua portuguesa. Diante das adversidades da vida e do meio literário, seria surpresa o seu suicídio meses após a publicação do livro? Tal abertura pode oferecer outras abordagens para a literatura de Cabo Verde, contribuindo para sua diversidade. A poesia de Eneida Nelly escancara o desejo de ser ouvida. Mas, deixaremos o subalterno falar?

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