sábado, 31 de março de 2012

Maus poetas ou a iluminação sapiente da palavra-lâmina hodierna

Maus poetas ou a iluminação sapiente da palavra-lâmina hodierna
Ricardo Riso
O acompanhamento dos proponentes a artífices das artes é um caminho tortuoso, configurado de curvas melindrosas, retas exaustivas, sinalizações turvas por elaborações incipientes, às vezes. Entretanto, trata-se de um exercício de prazer ao descobrir jovens propostos a correr os riscos que a literatura pode oferecer, tendo na palavra poética o desafio da lâmina a descobrir novos caminhos para o encantamento da palavra depurada.
Longo é o tempo para atingir a maturação da tessitura poética, o labor deve ser intenso para buscar a maturação, assim como o comprometimento com as leituras dos grandes nomes impõe-se. Alguns, por autossuficiência ou por não internalizarem a necessidade dessas atividades, ou por falta de talento, costumam precipitar-se e revelam dicções poéticas imaturas e que ainda assim encontram a estampa do livro. Por outro lado, outros agentes, poucos, é verdade, demonstram projetos literários consistentes, audaciosos, de ressignificação da linguagem à procura de novas possibilidades imagéticas e semânticas para o tempo em que vivem, merecedores de leituras criteriosas e atentas, visto que representam o que há de elevada qualidade estética na literatura angolana revelada em livros neste século XXI.
Caso norteador da melhor poesia angolana contemporânea que aqui propomos é o de Abreu Paxe e o seu poemário “O Vento Fede de Luz”, livro que reúne uma linguagem de pura inquietação, “com palavras lavra o corpo”, de sintaxe ímpar, de agilidade estonteante e desestabilizadora pela ausência de pontuação como de conectivos; imagens díspares e insólitas sobrepondo-se de forma ininterrupta, valorizadoras da fragmentação metafórica muito bem elaborada pelo poeta; vocábulos aparentemente dispersos, escrita automática em rico diálogo surrealista, “(...) na intimidade equilibrando horizontes/ no vértice/ da luz sol/ pedra no adro da alma/ sob o mesmo chão o escândalo de pálpebras/ move-se nos sensores/ traduz alguma matéria-prima”; de profunda ressemantização da palavra a rearranjar os sentidos explicitados de forma recorrente por expressões desveladoras do processo de estagnação sociopolítica de nosso tempo, mas que pela escrita incisiva do poeta “transformam o século sem músculo em poesia seguinte”.
A tessitura árdua de Abreu Paxe, “reinventando o silêncio” “duma fala invariavelmente ausente” mostra o comprometimento de um poeta inconformista que faz do labor criativo e radical o espaço para aguçar a percepção, trazer o conflito com a certeza, assim como recapturar o desejo de revelar “sonhos indecifráveis”. Seguidor da poesia simbolista, dos surrealistas e dando continuidade oxigenizante, por sinal também inovadora, à poesia de transformação, de riscos criativos tão fecunda em Angola na linhagem de Jorge Macedo, Lopito Feijó, José Luis Mendonça, E. Bonavena, João Tala, Trajanno Nankhova Trajanno, João Maimona e Fernando Kafukeno. A complexidade metafórica dos poemas e as intencionais imprecisões da linguagem nas experiências estético-formais trazem dinamismo incomum para o livro de Paxe e apresentam os questionamentos angustiantes de um cotidiano cada vez mais insensível e inócuo. Uma publicação de plena maturidade plástica, situando-a entre o que há de melhor neste século e desde já o justo posicionamento entre os clássicos da literatura angolana.
A exposição das contradições de seu tempo, o descortino do desassossego da contemporaneidade por meio da palavra poética reveladora e insurreta contra a suposta impossibilidade do homem agir, encontra espaço cativo na poesia de maturação e impressionante conseguimento estético de Nok Nogueira. Este jovem poeta possui uma obra de profunda inquietação existencial, de crítico olhar aos dilemas ontológicos de seu tempo e de indagações metafísicas, de filiação e de continuidade ao sistema literário angolano no que diz respeito às trajetórias poéticas de Trajanno Nankhova Trajanno e Adriano Botelho de Vasconcelos, para além do rigor estético-formal de divisões em cadernos, do domínio do ritmo para a prosa poética em incessante procura pela palavra depurada constatada após a estimulante leitura de “Jardim das Estações” e de “As Mãos do Tempo”, este ainda no prelo. Este poeta atingiu a maturação necessária para a percepção do instante poético que configura o caráter atemporal da poesia, só para recordar Octávio Paz, a partir da observação arguta e de extrema sensibilidade do Homem, assim plasticamente resolvida: “quando for a vez dos poetas anunciarem a travessia do vento estaremos diante da periferia de nossas vidas para que as palavras nos soem à musicalidade entretanto mais ninguém se esquecera de acentuar sua própria fala e doá-la a quem a quis ouvir por inteiro em passos cerimoniais e em praças municipais quem aprendeu com isso foram as flores e as aves dos campos quem subscreveu diante de nossos olhos foram os próprios homens quem se apresentara diante de nós foram as próprias canções quem se fez ouvir não só interrogara sobre a guerra mas os efeitos da paz quem se entregara ao bailado de carnaval foram as dançarinas do Marçal quem se ergueu de lembranças foram os Invejados e as besanganas quem se prostrou diante do nascer do trigo do pão e da flor foram as crianças”
O profícuo e caudaloso experenciar poético de Nogueira registra o seu nome como um representante consistente da renovação na literatura angolana. Nok Nogueira demonstra coragem para remoer o tempo que lhe coube viver, lirismo para tratar as questões agonizantes que nos afligem na contemporaneidade. Nogueira é Poeta por Excelência. Aqui, a sua ESTAÇÃO PRIMEIRA (as cinzas do tempo levam-nos a catalogar o sorriso): 1. não virei amanhã para que me não despeça  de ninguém que tenha amado um dia  a noção de ausência abala as estações das flores todas as despedidas entardecem pelo principiar da voz da canção as lágrimas envelhecem-nos ao tamanho do grão de areia que vimos pisando enquanto sentirmos a presença das estações em nossas veias como um nobre testemunhar de alegorias passadas nada espero de vós no dia em que decidir visitar a longevidade das canções porque nobre é a voz do poema quando entregue à Vida experimentar o sorriso como um preciso exacto instante de prazer ainda que não sejamos nós mesmos a sorrir por nós a tempo inteiro não espero encontrar na fronteira do caminho uma mão estendida solicitando-me o pouco do que ainda resta de minhas palavras as palavras são outras na extremidade da fala dos homens a voz dos poemas será outra os dias nascerão distintos dos outros cada mãe aconchegará seu filho e oferecerá suas tetas à terra até que a última gota de leite caia seca sobre as cinzas do tempo e se faça nova mente o clarear dos dias em nossas tristes avenidas se alguém quiser se despedir de si terá de o fazer não nos cemitérios mas no umbral dos céus onde suposta mente ainda se deixam ficar muitos dos que nos acenaram ontem a paz com as mãos vazias ao léu”.
Expressão paradigmática ao assumir os desafios da tessitura poética concomitante às denúncias de seu tempo estão presentes na obra do perscrutador da palavra, Pombal Maria. No seu livro “Palavras Lavradas” deparamo-nos com uma subversiva proposta estética dentro do sistema literário angolano ao aproximar-se da visualidade do concretismo, ou melhor seria neoconcretismo brasileiro. De Angola, visualização dialogante com Lopito Feijóo e Frederico Ningi. Maria explora a radicalidade de ler/ver os seus poemas com inovações sintáticas e semânticas, desconstrução morfológica e variação tipográfica, trazendo o componente visual aos poemas e a consequente abolição da linearidade dos versos. Uma poesia que vale pela ousadia extrema como demonstrada em “1ma cruz entre os ver-sos de interrogações”, de interessante ressemantização com versos de Lopito Feijoó, assim como a visualidade muito bem atingida no poema “Estranho Naufrágio”, para além da extrema ironia de “Poema invisível na lavra de palavras”, em que a suspensão do discurso favorece o desarranjo e a impossibilidade da leitura se dá com os diversos sinais de pontuação constituintes do poema, o que demonstra a necessidade de se buscar uma nova forma de discurso para a poesia.


Ainda que se apresente titubeante em alguns momentos, a coragem da subversão da linguagem exigindo do leitor participação ativa para a leitura dos poemas, como se somente a radicalização da linguagem seria possível em um mundo patrulhado e de cerceamento democrático, principalmente no campo da cultura quando outras propostas desafinam a ordem vigente, muito bem representada no poema “Diálogo dos Mudos”, posicionam este “Palavras Lavradas” de Pombal Maria em um novo paradigma para a poesia produzida em Angola. Experimentações e riscos, acertos e erros de um poeta que merece o nosso acompanhamento.
Nome incontornável ao processo de renovação da literatura angolana e um dos melhores da atual geração, caso de Ondjaki. De imensa inserção nos meios literário e acadêmico do Brasil e de Portugal, galardoado nestes países e em Angola, com mais de uma dezena de livros publicados, seus títulos romperam as fronteiras do mundo lusófono e já foram traduzidos para países como Itália, Cuba, Espanha, Suécia, Sérvia e Polônia, Ondjaki é o mais prestigiado escritor de sua geração e passeia com desenvoltura e correção por diversos gêneros literários. Questionar o seu talento é de uma cegueira injustificável. Pode-se questionar, e questiono, a enorme inserção no mercado editorial brasileiro enquanto outros escritores de inegável valor dos anos 1980 e 1990 permanecem inéditos no meu país. Entretanto, essa observação não pretende de maneira nenhuma desprezar o ótimo contador de histórias que evolui a olhos vistos e de merecedora citação os livros “O Assobiador” e “AvóDezanove e o segredo do soviético”. Na poesia, o multifacetado autor percorre um interessante, também ousado e perigoso caminho ao aproximar-se das inovações propostas na poética de Manuel de Barros. A renovação da linguagem por meio de um projeto de extrema sensibilidade para observar o homem e as suas contradições, encontra sua linhagem na língua portuguesa em nomes como Guimarães Rosa, Mia Couto e Luandino Vieira. Ondjaki percorre a trilha aberta por esses grandes nomes, o que valeu uma generosa crítica de José Castello acerca da edição brasileira de “Há prendisajens com o xão”, da qual não concordo do seu conteúdo por identificar ainda uma tessitura poética incipiente na sua “despalavreação”, de ligação excessiva ao mestre assumido pelo poeta, Manoel de Barros.
Contudo, Ondjaki é cultor da palavra-lâmina, logo há uma nítida evolução no poemário seguinte, "Materiais para a confecção de um espanador de tristezas” (2009), no qual o poeta dá continuidade ao seu projeto inspirado em Barros e começa a apresentar sua própria sintaxe, caminhando a passos largos para o amadurecimento já revelado na prosa, valendo-se de uma criativa ludicidade frutificada em poemas de pura emoção e devoção aos artífices da língua portuguesa, como em “intimidar o poema a ser raiz”: “era um poema lateral aos sentidos./ ganhava formato ébrio/ ao nem ser escrito./ longe dos pensamentos/ imitava uma pedra/ [aí as palavras drummondeavam]./ longe das lógicas/ – com tendência vagabunda –/ o poema driblava lados avessos/ de noites/ e animais/ [aqui as sílabas manoelizam, barrentas]./ mas uma estrela nunca brilha/ tão solitária;/ encarece-se também de luuandinar,/ miar à couto,/ esvair-se para guimarães.../ era um poema carente de afectar-se/ a ramos gracilianos./ assim alcançava/ o estatuto/ de raiz./ cheirado, emitia brilhos tímidos/ – fosse um pirilampo.”
Eis aqui uma pequena amostragem na humildade percepção minha, ainda que restritiva da poesia angolana dada a estampa do livro neste século XXI. Restritiva por não ter acesso a maior quantidade de poetas e preocupante pela impossibilidade de não registrar uma poetisa pelo desconhecimento das novas agentes, simplesmente. Ou seja, uma intervenção menor no debate diante da grandiosidade das propostas poéticas dos quatro nomes aqui expostos, autênticos cultores da palavra-lâmina, que certamente terão seus nomes no mesmo pedestal dos melhores escritores angolanos. 

sexta-feira, 30 de março de 2012

Conceição Evaristo e Dina Salústio

Conceição Evaristo e Dina Salústio
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 237, p. E22, 15/03/2012

As ex-colônias portuguesas herdaram da metrópole o patriarcalismo e a consequente postura machista predominante na sociedade, na qual a mulher é vista com subalternidade e estigmatizada por preconceitos de diversas ordens. Na literatura, as questões de gêneros nem sempre foram contempladas de forma igual, por isso os textos produzidos por mulheres desvelam dicção própria, por trazer à tona problemáticas de um universo invisibilizado pela ordem estabelecida.

No Brasil, a escritora negra Conceição Evaristo desenvolveu o conceito de “escrevivência” em razão da impossibilidade das teorias literárias tradicionais abarcarem a diferença do discurso feminino, especialmente o da mulher negra, sofrido em uma sociedade que já exclui a mulher, mas que ainda é opressora e racista em relação às negras. Por isso a necessidade de uma Teoria da Diferença. O eu-enunciador da escrevivência assume as suas experiências de vida e de outras mulheres como corpo de sua escrita, reconfigurando a voz individual da autora como irradiadora de uma voz coletiva de mulheres negras, que raríssimas vezes foram protagonistas no texto em prosa brasileiro. Dessa maneira, as histórias dessas mulheres jamais encontraram espaço para revelar suas angústias e anseios, a maneira como lutam em um cotidiano adverso, já que o eu-enunciador, majoritariamente homem e branco, nunca se preocupou com os dilemas dessa mulher negra, relegada aos restritos espaços de subalternidade em que se torna coadjuvante e silenciada nas tramas.

Dentro desse processo de escrevivência, o ato do eu-enunciador contar histórias relatadas por mulheres é a parte central deste conceito. Nesta perspectiva, o recente livros de contos de Evaristo, “Insubmissas lágrimas de mulheres” (2011), assemelha-se aos contos de “Mornas eram as noites” (1994), de Dina Salústio, pois ambos os livros concentram-se suas histórias no ato de recontar passagens do cotidiano feminino, de mulheres simples que vivenciam a dureza diária. Como diz Evaristo, “gosto de contar e ouvir casos. Muito da minha escrita nasce das histórias ouvidas, das imagens assistidas no cotidiano e de minha condição de mulher e negra na sociedade brasileira”; enquanto Salústio afirma que “necessidade de publicar as inúmeras histórias de mulheres, histórias de vida que passam por mim (...) Não são ficção, é cá um encontro que é verdade, um momento só (...)”.

Nos contos de ambas as autoras demonstra-se a preocupação do ponto de vista feminino da narrativa, as mulheres são as protagonistas e têm liberdade para revelar as dificuldades, anseios, medos e conquistas. Temas comuns entrecruzam-se nos livros. O estupro de companheiras ou de filhas em “Aramildes Florença”, de Evaristo, e “Nasceu fêmea é mulher”, de Dina; a violência doméstica e a revolta das mulheres contra o machismo escancarado em “Foram as dores que o mataram”, de Dina, e “Shirley Paixão”, de Evaristo; o abandono à própria sorte do destino de “Liberdade Adiada” de Salústio e “Natalina Soledad” de Conceição, são alguns dos tristes exemplos de aproximação das realidades vivenciadas pelas mulheres nas sociedades brasileira e cabo-verdiana.

É com o desenvolvimento de uma escrita que revela as tensões étnico-raciais e de gênero estratificados em Cabo Verde e no Brasil que Dina Salústio e Conceição Evaristo procuram recriar essas histórias de mulheres anônimas, iguais na dor, no sofrimento, nas injustiças e no silêncio motivador da perpetuação das atitudes violentas dos homens. Seus textos literários o espaço para extravasar a urgência de mudanças, a impossibilidade da continuidade da opressão à mulher. Conceição e Salústio apresentam-nos um texto de empoderamento, que tanto serve para estimular as mulheres a não aceitarem as manifestações virulentas da formação machista masculina como também, e principalmente, para nós homens, para revermos diariamente nossas atitudes e repensarmos o quanto de opressores somos e o quanto devemos mudar. De forma imediata.

sábado, 24 de março de 2012

Mia Couto - Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade

Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade* Mia Couto

Quero, antes de mais saudar os professores.

Durante anos, fui professor. E quando digo isto há uma emoção fortíssima que me atravessa. Eu não sei se há profissão mais nobre do que a de ensinar. E digo ensinar porque existe uma diferença sensível entre ensinar e dar aulas. O professor no sentido de mestre é aquele que dá lições.

Os professores que mais me marcaram na vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para além da matéria escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que um dia leu, comovido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua intenção nasceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redações, nós é que as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem grande se sujeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo que só faz quem ainda está a aprender?

Lembro-me como se fosse hoje: o professor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu ao estrado da sala segurando, nos dedos trémulos, um caderno escolar. E era como se ele se transfigurasse num menino frágil, em flagrante prestação de provas. Parecia um mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia salvar.

Depois, quando anunciou o título da redação veio a surpresa do tema que parecia quase infantil: o professor iria falar das mãos da sua mãe. Éramos crianças e estranhámos que um adulto (e ainda por cima com o estatuto dele) partilhasse connosco esse tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi bem mais do que um espanto: ele falava da sua progenitora como eu podia falar da minha própria mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos marcadas pelo trabalho, enrugadas pela dureza da vida, sem nunca conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético. No final, o texto acabava sem nenhum artifício, sem nenhuma construção literária. Simplesmente, terminava assim, e eu cito de cor: “é isto que te quero dizer, mãe, dizer-te que me orgulho tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não posso senão lembrar o carinho do teu eterno gesto.”

Havia qualquer coisa de profundamente verdadeiro, qualquer coisa diversa naquele texto que o demarcava dos outros textos do manual escolar. É que não surgia ali, em destacado, uma conclusão moral afixada como uma grande proclamação, uma espécie de bandeira hasteada. Aquele momento não foi uma aula. Foi uma lição que sucedeu do mesmo modo como vivemos as coisas mais profundas: aprendemos, sem saber que estamos aprendendo. Lembro este episódio como uma homenagem a todos os professores, a esses abnegados trabalhadores que todos os dias entregam tanto ao futuro deste país.

Comecei por saudar os professores. Parece que me esqueci dos estudantes. Ou que os coloquei em segundo plano. Mas não.

Todos somos professores, mesmo que não o saibamos. Perante os outros, perante os nossos pais, perante os amigos, perante nós mesmos, com bons ou maus exemplos, com tristes ou gratificantes lições, todos somos professores. Um dos maiores professores do nosso tempo é um homem que nunca deu aulas. É um homem que ensinou a sermos mais humanos. Mais do que isso, é um homem que ensinou a ter esperança num mundo tão desesperançado. Esse professor de toda a humanidade, de todas as raças e credos, é um africano. Chama-se Nelson Mandela. A sua vida foi uma interminável lição. Mandela é hoje uma bandeira mundial não apenas porque foi um político que dignificou a política, mas porque nos dignificou a todos nós, seres humanos. 

Deixem-me falar de Mandela. Este homem, que agora está doente e cansado, viveu encarcerado durante vinte e sete anos. Vinte e sete anos são mais do que o tempo de vida da maior parte dos presentes nesta sala. Vinte e sete anos de prisão é tempo suficiente para criar raiva, ódio e insuperáveis ressentimentos. Contudo, este homem converteu esse potencial negativo em força construtiva e reconciliadora. Um dos motivos de inspiração de Mandela foi ter encontrado num poema que se chama “Invictus”. Vou ler esse poema.

Do ventre da noite que tudo cobre

Negra como o fundo da cova escura

Agradeço aos deuses de todos os céus

Por quanto a minha invencível alma perdura



Ante as garras do cruel acaso

Nem eu tremi, nem o medo me turvou

Sob o peso da ameaça e da desumana violência

Eu sangrei mas a minha alma nunca se curvou



Não importa se a passagem é estreita

Não importa quantos castigos devo penar

Eu sou o dono do meu destino

Eu sou o capitão da minha alma.



Estes versos, meus amigos, foram uma espécie de suporte moral que deram força a Nelson Mandela. Vezes infinitas o prisioneiro 46664 da Ilha de Robin regressou a estes versos para não sucumbir. Como escritor e poeta, dá-me grande alegria saber deste poder da poesia. Neste caso, há qualquer coisa que deve ser acrescentada.
Na verdade, este poema foi escrito em 1875. O seu autor não foi um poeta sul-africano, não foi sequer um poeta africano. Quem escreveu estes versos foi um britânico chamado William Ernest Henley. Estes versos viajaram para além de séculos e continentes e iluminaram a esperança de um homem que, em vez de se vitimizar e procurar a vingança, nos deu uma eterna lição da crença nos outros. 

Eu venho falar para a Escola de Comunicação e Artes. Por isso me demorei nestes episódios. Porque acredito que a comunicação e a arte são ferramentas de mudança tão importantes como a política. Mandela fez da política um instrumento de comunicação da verdade. Ele fez da política uma obra na arte da reconciliação, numa nação dividida pelo preconceito. Talvez a cultura seja o mais poderoso e duradouro instrumento de intervenção social. No nosso continente isso é bem claro. Vejamos um exemplo:

Desde há 50 anos, quando começaram a acontecer as independências, o nosso continente conheceu mais de 210 presidentes. O desafio que vos faço é o seguinte: digam o nome de 10 (apenas 10) destes dirigentes que se tenham notabilizado como figuras humanas de referência. Terão dificuldade. Será muito mais fácil enumerarmos artistas e intelectuais dignos de serem lembrados. E é aqui que a figura de Mandela é tão importante para nós, africanos. Podemos não nos lembrar de muitos políticos africanos que nos dignifiquem. Mas o nome de Mandela basta para compensar toda essa ausência e devolver o orgulho de sermos quem somos.
Caros amigos, vou entrar agora no tema central desta alocução.

Todos os dias centenas de chapas de caixa aberta transitam por esta cidade que parece afastar-se do seu próprio lema “Maputo, cidade bela, próspera, limpa, segura e solidária”. Cada um destes “chapas” circula superlotado com dezenas de pessoas que se entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e frágil. Aquilo parece um meio de transporte. Mas não é. É um crime ambulante. É um atentado contra a dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é aceitável. Quem se transporta assim são animais. Não são pessoas. Quem se transporta assim é gado. Para muitos de nós esse atentado contra o respeito e a dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos aquilo que era errado acaba por ser “normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação definitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a maneira moçambicana.” Desse modo nos aceitamos pequenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados.

O caso dos chapas é apenas um exemplo, uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção do inevitável”. E é simples: aos poucos, os passageiros do “chapa” deixam de ser visíveis. Na nossa sociedade essas pessoas já contavam pouco. É gente pobre, gente sem rosto, gente que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá no jornal quando o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um simples número para se contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras coisas ganharam brilho na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a visibilidade os carros de luxo de uma pequena minoria. Deixamos de ver os “chapas” mortais, mas estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.

O assunto que quero abordar convosco hoje é esta operação que banaliza a injustiça e torna invisível a miséria material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza e faz paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria vida.

Estamos perante uma espécie de formatação mental e moral. A mensagem é a seguinte: querem dizer-nos as nossas doenças sociais são incuráveis. Resta-nos viver de remendos e expedientes.

Visitou-me um escritor amigo da Nigéria. Ele percorreu as cidades de Moçambique e ligou-me de Pemba. A primeira coisa que ele disse: Estou maravilhado! Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto espantou-me a mim. Principalmente porque esse assombro provinha de um cidadão da Nigéria, o maior produtor de petróleo de África. Só depois entendi. O que passa na Nigéria – depois de 50 anos de exportação de petróleo - é que as cidades nigerianas não possuem aquilo que para nós é comum: estações de gasolina vendendo gasolina. As bombas de combustível naquele país estão quase todas fechadas e a gasolina é vendida em garrafas e jerricans nos passeios públicos. Para alguns esse é um processo natural em África. Mas não é. O que sucedeu foi o seguinte: o governo subsidiou os preços dos combustíveis mas não foram os mais desfavorecidos que lucraram mais. Foi uma parte da elite nigeriana que se apoderou dos circuitos formais e desviou para os mecanismos informais a distribuição e venda do combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ainda mais ricos. Mas não é a questão politica que eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue, se tornou normal. Ver bombas de gasolina a funcionar numa nação bem mais pobre como é Moçambique foi, para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos proclamarem que os mercados informais são a única maneira que África sabe fazer comércio. Que apenas nas barracas sabemos comer e beber. É mentira. A dumba-nenguização da economia é uma estratégia escolhida para fugir dos impostos, para escapar das obrigações para com o património público. Quando o meu amigo nigeriano voltou a Maputo ele disse-me o seguinte:

- A minha surpresa não foi tanto o que eu vi em Moçambique. Foi sim o que já não sabia ver na Nigéria.

O principal aliado dos tiranos é a cultura da aceitação. Talvez alguns de vocês sabem que sou um dos autores do Hino Nacional. Quando entregamos o Hino para aprovação na Assembleia da Republica nós não podíamos imaginar que alguns deputados se sentissem incomodados com a passagem da letra que diz: Nenhum tirano nos irá escravizar. É claro que a letra não fala do presente. Mas um hino é feito para durar. E quem pode garantir que um candidato a tirano não assaltará a nossa futura história? O melhor modo de prevenir esse risco não é apenas consolidar a democracia política. É investir numa cultura viva, numa cidadania de construção do futuro. O que me interessa falar aqui, numa Escola de Arte e Cultura é a dimensão cultural das nossas pequenas e grandes misérias.

A invocação da chamada “africanidade” é uma das armadilhas mais usadas pelos tiranos. No Malawi atacaram e rasgaram a roupa de mulheres pelo simples facto de andarem de calças. Mulheres de calças não é uma coisa africana – foi o que invocaram os agressores. Em nome de África se agrediram e mataram pessoas apenas porque eram homossexuais. Em nome da pureza africana se continua a impedir que, apenas por serem do sexo feminino, milhares de crianças não prossigam os seus estudos. Em nome de África se cometem os maiores crimes contra África. O nosso continente é feito de passado e tradição, sim. Mas é feito de modernidade. É feito de mudança. Como todos os outros continentes.

As dinâmicas de mudança confrontam-se com uma identidade feita de passado e tradição. Tudo isto tem a ver com o processo da construção do inevitável. Esse processo envolve o mecanismo da acomodação e o mecanismo da invisibilidade. A acomodação tem várias facetas. Sabemos que está errado, mas nada fazemos. Porque temos medo. Porque achamos que não tem a ver connosco. Ou porque fazemos cálculos. É melhor calar e ser promovido. É melhor recolher uns magros favores em troca do nosso silêncio e da nossa cumplicidade.

O mecanismo da invisibilidade foi tratado por José Saramago no livro O ensaio sobre a cegueira. Nós estamos doentes, não porque os olhos tenham alguma deficiência, mas porque deixamos de saber olhar. Deixamos de querer ver. E deixamos de nos ver a nós mesmos. No fundo, este é o desfecho desse processo de alienação. Tornamo-nos cegos. Quem não vê, aceita que outros lhe digam como é o mundo.

Eu rabisquei uma lista de fenómenos sociais que se tornaram invisíveis em Moçambique. A lista é bem extensa. Mencionarei apenas de alguns.

A violência contra os mais fracos

O primeiro desses fenómenos é a violência. Dizemos com frequência que somos um povo pacífico. Isso é verdade. Mas os povos todos, do mundo, são pacíficos por natureza. O que muda é a sua história. Assim, é verdade que somos um povo pacífico, mas também é verdade que foi esse povo pacífico que fez uma guerra civil que matou cerca de um milhão de pessoas. A guerra terminou em 1992, e essa data é talvez a mais importante da nossa história recente, depois da Independência Nacional. Terminou o conflito militar, mas não terminaram outras guerras silenciosas, invisíveis e perversas.

Hoje somos uma sociedade em guerra consigo mesma. Os alvos dessa guerra são sempre os mais fracos. Estamos em conflito com as mulheres, com as crianças, com os velhos, estamos em guerra com os pobres, com aqueles que não têm poder. Somos uma sociedade obcecada pelo Poder. Quem não tem poder é como quem circula na traseira do chapa: não existe. Tudo tem uma leitura política, o mais pequeno detalhe é um recado, uma definição de hierarquias. Quem chega primeiro à reunião, onde se senta, quem não comparece à cerimónia, com que carro chegou, de quem se faz acompanhar, tudo isso são sinais de poder. Nas ruas sou chamado de patrão, sou chamado de “boss”, porque a minha cor da pele é tida como um sinal de Poder. O vendedor de viaturas insurgiu-se com a escolha de um carro que eu queria comprar. Deixe que escolho um carro compatível com o seu estatuto.  

Estamos em guerra connosco mesmos e o primeiro desses alvos é curiosamente uma maioria: as mulheres. Em Moçambique há mais um milhão de mulheres que homens. Mas ao nível das percepções, os homens dão pouca importância a essa verdade. Eles são chefes, os donos, e olham as mulheres como uma pertença privada. As mulheres, por outro lado, ainda pedem licença para existir. A maioria das mulheres que são objecto de violência dos maridos acha que isso não é um crime. Acham normal, acham natural. Ser agredida faz parte do seu destino, da sua imutável natureza.

E conto-vos três episódios reais, que retirei da nossa imprensa apenas nas últimas semanas:

Em Cabo Delgado 17 homens violaram uma mulher que se atreveu a atravessar o acampamento onde se praticavam os rituais de iniciação. Da parte das autoridades locais houve uma inaceitável passividade. Foi necessária insistência da família e de ONGs para que houvesse uma insuficiente resposta.

Em Manica dois jovens violam sexualmente uma mulher no sétimo mês da gravidez.

Em Tete um homem mata a criança de dois meses e esfaqueia gravemente a mulher porque a meio do dia ele chegou a casa e a mulher recusou fazer sexo com ele. O jornalista da televisão que entrevista o confesso culpado sugere uma quase legitimidade do ato ao perguntar: “o senhor devia estava necessitado não é verdade?”.

Reclamamos a violência da rua, mas é mais provável uma mulher ser agredida dentro de casa do que fora de casa. É mais provável uma criança ser agredida e violentada no espaço da sua família. Esta tendência não sucede apenas em Moçambique, mas no mundo. As estatísticas são reveladoras e assustadoras: cerca de 70 por cento dos actos de violência contra a mulher acontecem dentro da casa. Mais de 60 por cento dos assassinatos de mulheres são cometidos pelos seus companheiros ou ex-companheiros. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres ou já foi ou irá ser agredida ou violentada. Não é pois Moçambique que é afectado de modo particular. O que sucede é que para nós essa violência é legitimada por razões que se dizem culturais. Nós ainda banalizamos muito facilmente. É ainda prevalecente a ideia de que a mulher é que é culpada, porque ela é quem provoca a violência. Ainda achamos que este assunto não tem a ver connosco, que é para ser denunciado pelas ONGs. Isto é, desresponsabilizamo-nos. Mesmo sendo mulheres, achamos que este assunto tem a ver com os outros. Mesmo sendo homens, que têm mães, irmãs e filhas, achamos que isto não tem nada a ver connosco.  

OUTRA GUERRA - AS VIUVAS

Sugiro que leiam o livro de Fabrício Sabat, chamado As viúvas da minha terra, para ficarem com uma ideia do crime generalizado que é cometido contra mulheres que vivem um momento dramático da sua vida. E nesse exacto momento de fragilidade, são assaltadas pelos próprios parentes. Levam-lhes os bens, os filhos, o sossego.

CASO DAS VELHAS

Acusadas de feitiçaria, roubaram-nas durante a vida, fizeram sumir a sua infância e juventude e, no final, roubaram a possibilidade de uma velhice tranquila, usufruída com os netos e as lembranças. Está longínqua a imagem de África como um lugar especial porque os velhos são respeitados.

GUERRA CONTRA OS GAYS E AS LÉSBICAS

Moçambique nem é dos países menos tolerantes. Há países que consideram formal e legalmente um crime o simples facto de ser ter uma orientação sexual diferente. Mesmo assim, há entre nós, uma enorme intolerância.

CASO DOS DOENTES MENTAIS

Nós estamos tão ocupados com outras doenças que esquecemos que não é apenas o HIV SIDA que tem implicações do ponto de vista do estigma social. As doenças mentais são outro mal não visível. Não creio que existam estatísticas da prevalência de doenças mentais em Moçambique. Mas a média em África é de 14 por cento da população.

ALBINOS  

Vou contar-vos um episódio real. Conheci um pedreiro que chamarei apenas por Fabião, que certa vez executou uma obra para minha casa. Um dia, uma moça albina veio à minha porta pedir água. O pedreiro desceu do escadote onde trabalhava para me dar conselhos: “é melhor não dar, ou usar um copo que depois deita fora”. Quando lhe perguntei porquê, ele respondeu: “aquela tjidajna é alguém que tem muitos problemas”. E reproduziu os habituais mitos e preconceitos sobre os albinos. No final confessou: “ainda bem que na minha família nós não temos disso».

Passaram-se anos e a semana passada o mesmo Fabião ligou para mim a perguntar se era possível entrar sem convite na exposição “Filhos da Lua”, na Fortaleza de Maputo. Ele ouviu na rádio que a exposição tinha por tema “os albinos” e estava muito interessado em levar a sua filha a esse evento. “É que a minha filha nasceu albina.” Fabião não podia nunca imaginar ser pai de uma tjidjana. Mas foi. E ele agora, por amor a essa menina, queria enfrentar junto com ela os preconceitos que ele mesmo guardava dentro de si. Chamei Fabião e ofereci-lhe que levasse para a sua filha dois discos. Um de Salif Keita, outro do nosso Aly Fake. E disse “esses são os melhores copos de água. Refrescam a alma”.

Muitas vezes pensamos que essas diferenças vivem fora de nós. A diferença está dentro de nós. Um em cada 35 moçambicanos é portador do gene do albinismo. Um em cada 35 pessoas é portador dessa gente. Nenhum de nós sabe à partida se poderá ser pai ou mãe de uma criança albina.

GUERRA COM OS MORTOS

Até aqui falei de conflitos com mulheres, crianças, velhos. Mas todos esses segmentos sociais são compostos por gente viva. O mais triste é que a nossa sociedade entrou em guerra com os seus próprios mortos. Este é o sintoma mais grave da nossa patologia social: passamos a maltratar até os nossos mortos. O que acontece nos nossos cemitérios é um atentado contra os mais básicos princípios morais. As famílias enterram os seus entes queridos e são obrigadas a retirar o mais ínfimo valor que acompanhe o falecido. Sabem que no dia seguinte, o caixão foi assaltado, o morto foi despido. As próprias jarras de flores são quebradas antes de serem colocadas para prevenir que sejam roubadas e vendidas. Não contentes em assaltarem os vivos, há gangs que se especializaram em roubar os mortos. Nem depois do último suspiro estaremos a salvo dos ladrões.

Meus amigos

Eu disse que estávamos em guerra connosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se de duas violências. A violência daqueles que agridem. E a violência dos que se calam. Marthin Luther King disse O que me entristece não é apenas o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons.

A lista das nossas guerras domésticas estende-se por mais domínios. Os exemplos que escolhi ilustram o facto de que não somos a sociedade pacificada que pretendíamos ser. Há um percurso enorme a percorrer e esse caminho é sobretudo uma viagem interior. Essa viagem só acontecerá se vocês souberem ver, souberem não aceitar. Tudo o que aqui disse pode ser resumido em dois textos pequenos de autores alemães. Peço-vos que escutem. O primeiro é uma parábola e diz o seguinte:

“Um dia, vieram e levaram o meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram o meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram o meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e levaram-me mim. Nessa altura, já não havia mais ninguém para reclamar.”

O segundo texto é um apelo na forma de verso, escrito pelo dramaturgo Bertolt Brecht:



"Nós pedimos-vos com insistência:
Nunca digam - Isso é natural.
Diante das barbaridades de cada dia,
Numa época em que corre sangue
Num tempo em que a arbitrariedade tem força de lei,
Num momento em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
Se aceitamos as coisas como naturais

este nosso mundo torna-se imutável



Caros amigos



O nosso tempo também está em guerra contra os jovens. À nossa frente, e não falo apenas de Moçambique, se anunciam tempos difíceis. À nossa frente está um futuro magro em que parece que apenas alguns podem caber. O que nos sugerem é que briguemos uns com outros para ver quem cabe nessa estreita porta. Mas talvez seja possível criar um outro futuro mais amplo.



Vão ser assediados. Por forças políticas que estão mais preocupadas com o Poder do que com a resolução efectiva dos problemas. Por forças que se lembram dos jovens quando se trata de colher votos. Por forças que falam aos jovens, não falam com os jovens.

Vocês são jovens. Ser jovens é uma condição inerente, que se exerce sem esforço. Mais do que jovens, sejam diferentes. Tragam para o nosso tempo o inesperado, o que é novo, o que é historicamente produtivo.

Uma nova classe está povoando o poder político em Moçambique. São os papagaios. Reproduzem o discurso dos chefes. A maior parte deles são jovens. Mas são jovens de alma envelhecida. Os papagaios podem pensar que o seu futuro está assegurado porque olham o país como se fosse um aviário. Mas o nosso futuro como nação não se constrói senão com ousadia, com vitalidade e um infinito respeito pelos outros.

Ficamos muitas vezes à espera, ficamos à espera que o governo faça. Temos medo de tomar iniciativa. Achamos arriscado. Não agimos porque dizemos que faltam recursos, falta orçamento, falta autorização do chefe. Mas existem lições que parecendo pequenas podem tocar alguém para toda a vida.

O professor primário que leu uma redacção sobre as mãos calejadas de sua mãe não imaginava que estaria marcando para sempre um aluno seu. O poeta William Henley não poderia imaginar que versos seus poderiam sustentar, cem anos mais tarde, a vontade de lutar de um africano que iria mudar o destino de milhões de pessoas.

Fazemos o que fazemos não porque sejam grandiosas iniciativas mas porque necessitamos mudar as coisas e melhorar o mundo. Fazemos o que fazemos porque, como diz o poema, nós queremos ser donos do nosso destino e capitães da nossa alma colectiva.

*Fonte: texto gentilmente enviado pelo escritor Andes Chivangue em 14 de março de 2012.

Nóssomos - a literatura angolana como tema principal

Prezados,
A Nóssomos é uma editora portuguesa que concentra suas publicações na literatura angolana.
De refinada curadoria, a coleção de poesia reúne nomes consagrados do passado e da contemporaneidade, assim como jovens revelações.
Os títulos poéticos contemplados são de Agostinho Neto, Antonio Jacinto, Arnaldo Santos, José Luis Mendonça, Lopito Feijóo, Zetho Cunha Gonçalves e Nok Nogueira.
As edições são em convidativo pequeno formato e com delicadeza extrema em suas capas.
O melhor: o preço.
Vale a pena visitar o blog e encomendar livros de alguns dos melhores representantes da poesia angolana.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Japone Arijuane - Ensaio sobre o livro Lex & Cal Doutrina, de Lopito Feijóo

O olhar do jovem escritor e ensaísta moçambicano, Japone Arijuane, a respeito da obra Lex & Cal Doutrina, do angolano Lopito Feijóo.
Percebo como fundamental e enriquecedor o diálogo entre os países de língua portuguesa.
Ricardo Riso


Fragmentos do léxico de uma poesia doutrinária
Ensaio sobre o livro Lex & Cal Doutrina, de Lopito Feijóo

Há um jogo metafórico, na poesia de Lopito Feijóo, uma mensagem camuflada que tem uma disponibilidade en los legatos de interpretar, criticamente, a realidade.
Xosé lois Garcia
(investigador)

Muito foi dito, redito, mas para este “Lex & Cal Doutrina”, de Lopito Feijóo, remete-nos a uma profunda reflexão, no que tange ao uso do próprio léxico, aliás, este é, sem dúvida alguma, o propósito primordial desta obra. A separação das palavras em versos diferentes, dotando-as, cada uma em dois versos, cria, até certo ponto uma inibição logo a priori, mas que ao longo da exposição psicológica que as figuras nos remetem, vão se formando e ilustrando as imagens num sentido figurante, fazendo das palavras uma escultura da própria palavra, num sentido artístico do próprio léxico. Esta vanguarda de reinvenção vai até no íntimo quebrar a doutrina morfológica da palavra, rompendo não só com as regras, mas até o profundo sentido da significação da palavra em si.      
FULANA
PAIXÃO

É
ter na
mente
terno crepitante
móveis texturas
duas

leve duras stendo
se à tona
da
doce fulana
paixão inter
posta

inteira mente
eterna mente
mente que não mente.

(pag. 16)
A concepção inovadora, provavelmente única, de tratar a própria palavra, tal e qual um escultor maconde na sua labuta quotidiana ao pau-preto, remete-nos a estabelecer analogias, sem propriedade categórica, pois, os laivos da (re)invenção deste “Lex & Cal Doutrina” produzem na fonografia, se me permitam, um novo neo-concretismo, com tendências similares à poesia concreta brasileira, traços verosímil apontam a poetas como por exemplo Ferreira Gullar.
Pode dizer-se que, metaforicamente, Lopito Feijóo descobre, aqui, mais um dos vastos territórios da superfície poética, território este que na primeira apreciação o leitor vê na condição de um turista mal informado, ignorando todas as potencialidades do léxico doutrinal, mas quando esta visita torna-se constante, o belo revela-se na sublime racionalidade da construção lexical, destas vivas vivências que o escultor de palavras, Lopito Feijóo, propõe-nos. O muito foi dito, mas para percepção do conteúdo poético aqui exposto, aliás, destas figuras tecidas dentro da própria palavra, obrigam-nos ao mesmo exercício tal e qual a labuta de um escultor maconde.
A transcendência piscopoética tem aqui, nestes mares de letras pré-seleccionados, um oceano de conteúdo poético, como oceano, com suas riquezas e mistérios, que requer arduamente a capacidade do leitor desvendar os segredos deste oceano, se comparados às gotas e o conteúdo poético de cada verso aqui reinventado.
Esta obra é realmente uma descoberta de quão a palavra pode significar e dar significados diferentes, quando reinventamos a morfologia.
O facto de, a obra, vir servida em três imensas (imensidade qualitativa) subdivisões: Lexical Doutrina, Memorial Doutrinário e Eros Doutrinários, do conteúdo poético aqui abordado, obriga o leitor a mais um esforço peregrino na concepção, que se diga: a mesma transpiração que o poeta usa e ousa, deve ser a mesma no leitor para decifrar os signos dessa densa linguagem que o “Lex & Cal Doutrina” nos traz.
Feijóo a parece aqui, não como uma criança na noite, com medo de escuro, mas como a própria noite com escuro, medo, curiosidades e ocultismos por desvendar, como um poeta angolano, que não deixa em nenhum momento a originalidade do tradicionalismo (angolanidade), como justifica o poema dedicado ao seu mestre Luandino Viera, intitulado:
Das estradas do céu e do canto do grilito
Gri…gri…gri…
Ngasakidila kanzenze
Insunji mano insunji
 Ku diulu dia dikanu dié
Ngamono jitetembua
Ni mukengêji iazele
Dia kutululuka kuetu.
(Pag. 49)

 Os factos sociais do passado e do presente, guerras sofridas, corrupção, fome, miséria, e muito mais, tem nessas entrelinhas um destaque quase que explícito, aliás, como nos ensina Cícero, não conhecer o passado é permanecer criança, Lopito usa este passado, e vem como à voz das vozes que não se ouvem na labuta árdua do quotidiano subdesenvolvido, e em alguns traços depõe como testemunha ocular dessa África que lhe vive. É sem escrúpulos um poeta, que poetiza as vivas e duras vivências africanas, com muita transpiração, que se diga: felizmente consegue transmitir veementemente as imagens desta angolanidade usando a poesia como a fotografia fiel destas convivências.

Japone Arijuane

terça-feira, 20 de março de 2012

BIP - Bienal Internacional de Poesia (Luanda, Angola)


Bienal Internacional de Poesia

De 21 de Março a 21 de Abril de 2012, em Luanda

Programa de Debates

Dia 22 de Março pelas 15H00 no auditório do CEFOJOR.
1. A Poesia: Eterna Aventura Literária?
Manuel Rui (coordenador)
Nina Rizzi
Ernesto Melo e Castro
Odete Semedo
José Luís Tavares
Jofre Rocha
António Panguila

Dia 22 de Março às 17H00 no auditório do CEFOJOR.
2. Os Territórios da poesia
João Melo (coordenador)
Conceição Lima
Eduardo Quive
Luís Costa
Adriano Botelho de Vasconcelos
Rui Augusto
António José Borges

Dia 23 de Março às 15H00 no auditório do CEFOJOR.
3. A poesia: uma forma de navegação intimista
Elísio Filinto (coordenador)
Conceição Cristóvão
Trajano Nankhova Trajano
António José Borges
Amélia Dalomba
António Pompílio

Dia 23 de Março pelas 17H00 no auditório do CEFOJOR.
4. A Poesia: Uma Realidade Supra Sensível?
Tony Cheka (coordenador)
Amosse Mucavale
Jorge Melícias
John Bella
David Capelenguela
Roderick Nehone

Dia 24 de Março pelas 15H00 no auditório do CEFOJOR.
5. A Poesia: Que destino?
Luís Abel (coordenador)
Kudijimbe
Vera Duarte
Tony Cheka
Frederico Ningi
Camila Vardarac
Maria Ângela Carrascalão

Dia 24 de Março pelas 17H00 no auditório do CEFOJOR.
6. Onde Há Poesia, Há Humanismo, Esperança e Renascimento
Fernando Aguiar (coordenador)
Manuel Rui
Carlos Ferreira
Arnaldo Santos
Domingos Florentino
Micheline Verusck
Luís Cezerílo

Dia 25 de Março pelas 15H00 no auditório do CEFOJOR.
7. O Texto Poético e suas Transfigurações – Análise de Alguns Casos
Conceição Lima (coordenadora)
Diniz Muhai
Luís Kandjimbo
Filinto Elisio
Claudio Daniel
Luís Serguilha
João Melo

Dia 25 de Março pelas 17H00 no auditório do CEFOJOR.
8. A Poesia: Nicho das recordações humanas e da memória?
Luís Costa (coordenador)
Corsino Fortes
Jerónimo Salvaterra Manuel
Filimone Meigos
Fernando Cafukeno
Eduardo Bonavena
António Fonseca

O dia 26 de Março pelas 15H00 no auditório do CEFOJOR.
9. A Poesia como Lugar de expansão da Estética
Roderick Nehone (coordenador)
João Tala
Lopito Feijóo
Admir Assunção
Cristóvão Neto
Fernando Aguiar
José Luís Mendonça