Pedro Cardoso... a manduco!
Ricardo Riso
Resenha publicada
no semanário A Nação, n. 174, 30/12/2010, p. 14.
Ao Prof. Manuel Brito-Semedo, com elevada
estima.
Há uma faceta de extremo interesse e pouco conhecida do poeta
pré-claridoso Pedro Monteiro Cardoso (13/09/1883 - 29/10/1942), reveladora de
um importante momento das ilhas em razão das profundas mudanças em Portugal com
o germinal sistema republicano. Trata-se da atuação de Pedro Cardoso como
cronista de jornais. Com o pseudônimo AFRO colaborou em vários jornais
cabo-verdianos e portugueses, dentre outros, “O Manduco”, do qual foi fundador,
e foi autor da célebre coluna “A Manduco...”, espaço de polêmicas e de um olhar
atento aos problemas sociais e políticos do cotidiano da então colônia
cabo-verdiana.
As crônicas de “A Manduco...” foram recolhidas e organizadas por Manuel
Brito-Semedo e Joaquim Morais em cuidadosa edição do IBNL, sob o título “PEDRO
CARDOSO – Textos Jornalísticos e Literários (Parte I)”, no ano de 2008. O livro
tem prefácio de Isabel Lima Lobo, é separado por duas seções: a primeira com
duas conferências de Cardoso – uma em defesa da língua cabo-verdiana, a outra no
Dia de Camões, exaltando o épico, Portugal e a língua portuguesa; a segunda
seção conta com 33 crônicas publicadas de 1911 a 1914 no jornal A Voz de Cabo
Verde, para além de fundamental ficha com a origem dos textos.
As crônicas de “A Manduco...” impressionam pelo tom incisivo, de marcante
e ruidosa intervenção político-social em defesa incontestável dos ilhéus e das
ilhas, assim como apresentam e valorizam a atuação pungente dos intelectuais
cabo-verdianos durante os primeiros anos da república portuguesa. Em sua estreia,
AFRO já demonstra o caráter de sua seção: “(...) ‘a manduco’ é simplesmente o
título de uma nova secção onde discretamente, sem ódios nem lisonjas, e a bem
dos interesses da província, se dirão verdades... agridoces”.
Célebre na poesia de Cardoso a exaltação da pátria lusitana e da mátria
terra crioula, porém o autor para reivindicar igual tratamento ao ilhéu recorre
à Constituição para combater o racismo: “Artigo 1º - O território de Portugal
compreende na África Ocidental o Arquipélago de Cabo Verde; (...) art. 5º - o
Estado Português é uma República Unitária baseada na igualdade dos cidadãos
perante a Lei. Logo, eu nasci dentro do território português, sou membro
constituinte da Nação e igual perante a Lei aos demais cidadãos.”
O problema da educação dos ilhéus é escancarado com indignação,
principalmente na quase completa exclusão das mulheres nas escolas por “existir
muito maior número de crianças do sexo feminino e não haver para elas escolas,
não em proporção às alunas, mas nem mesmo em número aproximado das destinadas
ao sexo masculino. A desproporcionalidade é flagrante e provém do exclusivismo
de outros tempos”.
Preocupações sociais várias são manifestadas e denunciadas pelo autor,
preocupações em sua maioria contemporâneas ao nosso tempo: “O uso e o abuso do
álcool e do tabaco, a tuberculose por esse abuso favorecida, as estiagens e o
analfabetismo são males que estão afectando intensa e extensamente a província.
Urge combatê-las sem descanso (...)”.
A instabilidade política da Europa, a ascensão da belicista Alemanha e
seu interesse nas colônias portuguesas em África é tema de “quem nasceu em
África mas é português não só pela bandeira como pelo sentimento e sangue”:
“(...) Não posso conformar-me à horrorosa ideia de que serei obrigado a não
falar, a não cultivar esta formosíssima língua toda feita de harmonia e doçura,
em que balbuciei as minhas primeiras canções destronada, substituída por aquela
em que escreveu Goeth”.
Pan-africanista convicto, defensor dos negros, demonstra seu apreço ao
dedicar crônicas ao brasileiro Luis Gama e ao libertador do Haiti, Toussaint
Loverture. Também comunista ferrenho, sobretudo humanista, o nativista Pedro
Cardoso revela nas crônicas de AFRO as tensões que nortearam o seu tempo. Jamais
omisso, determinado na defesa de suas posições, a pena corrosiva de AFRO
apresenta o grande homem e poeta: Pedro Cardoso.
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