Vera Duarte – O arquipélago da paixão
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n.
163, p. 11, 14/10/2010.
O segundo livro de poesia da escritora Vera Duarte, "O
Arquipélago da Paixão" (Mindelo: Artletra, 2001), apresenta em suas
epígrafes o constante diálogo entre os poetas de gerações posteriores com as
tendências temáticas de seus predecessores. Vera Duarte presta tributo aos
escritores que sedimentaram o corpo poético cabo-verdiano, parafraseando os
temas que os caracterizaram.
Vera Duarte é poeta, romancista, ensaísta e juíza, para além
de vários cargos em prol dos direitos da mulher. Nascida na cidade de Mindelo,
ilha de São Vicente, formou-se em Direito na Universidade Clássica de Lisboa,
em Portugal.
Como em seu 1º livro de poesia, "Amanhã
amadrugada", este "O Arquipélago da Paixão" também divide-se em
quatro cadernos. As homenagens não se restringem aos compatriotas, mas
estendem-se a angolanos como Mario de Andrade e Luandino Vieira, entre outros.
Em "Os meninos", dedicado a Jorge Barbosa, o uso
do pasargadismo como evasão denuncia
a condição miserável em que se encontram "os meninos da pobreza, do
abandono e do desespero. De ranho no nariz, pés descalços e calções rotos eles
passeiam seus corpos esqueléticos". Como alento à triste situação os
meninos "sonharão com terras distantes, glórias inexistentes e banquetes
fabulosos até que o romper do sol e a fome crónica os arranque do sossego
cúmplice dos botes para mais um dia de desesperanças”. E assim como o poeta
claridoso, oferecer o gesto solidário: "Queria então estar ao lado deles e
sem qualquer palavra, passar-lhes a Estrela da Manhã".
Na reflexão seguinte, Duarte homenageia outro claridoso,
Baltasar Lopes (Osvaldo Alcântara). Em "A viagem", a imagem de
Pasárgada é motivada pela pobreza do arquipélago: "No seu cotidiano de
miséria, dormindo no chão húmido de terra batida, coberto de serapilheira e
comendo os restos repartidos, (...)/ Aguarda contudo com ânsia o dia da
partida./ A viagem. O vapor./ Sabe que um dia, escondido em um navio cargueiro,
ele irá demandar novos horizontes, zarpará à procura da terra prometida./ Então
sim ele poderá decifrar a angústia que lhe encolhe a alma quando o seu corpo
celebra a ânsia da partida."
Já Mário Fonseca recebe um longo poema dedicado à liberdade,
às conquistas de todos os povos e às mulheres. Em "Ortodoxias em
desagregação", o eu lírico agradece a premonição do poeta, sua certeza na
Utopia, sua defesa da justiça, sua exaltação nas vitórias diversas em todas as
partes e em todas as épocas: "O fascínio vem-me de longe / de tudo o que
foi esperança / desde o início dos tempos".
Ao poeta Oswaldo Osório o eu lírico reflete e denuncia a dor
sofrida pela mulher, da estreita relação entre amor e morte. Divaga:
"confusa me pergunto se o amor rima com escravidão, submissão,
humilhação", e comenta o destino cruel: “converter-se de humano a farrapo/
no destino caótico de vidas/ que a vida nada reservou".
Em "A outra", dedicado à Dina Salústio, há o
conflito existencial de uma mulher que se rebela contra as normas sociais em
convívio inquietante com a mulher que aceita a submissão, além de questionar
uma "civilização incoerente": "Quem é essa outra mulher que me
habita e abusivamente ocupou quase todos os espaços? (...)/ Quem é essa mulher
que me oferece as bem-aventuranças e me cega para os precipícios?/ Madalena a
mulher espreita e tenta. Ela quer e sabe./ Mas há uma inquietação também por um
destino feminino sem subversões, feito de silêncio e de renúncias, que garantem
Maria, virgem mãe./ Quantas vezes me quedarei perplexa e angustiada perante as
encruzilhadas desta civilização incoerente?".
Apreendemos o amor incondicional de Vera Duarte a Cabo Verde
em “O Arquipélago da Paixão”, e, principalmente, à literatura das ilhas por
meio das epígrafes dedicadas aos poetas, ora do passado claridoso, ora aos seus
pares contemporâneos. Assim, percorremos o percurso de afirmação da literatura
cabo-verdiana no decorrer do século XX, suas inquietações, conflitos e mudanças
temáticas. É a poesia agindo com olhar crítico para um jovem país em
construção.
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