Um espaço dedicado à literatura negro-brasileira, às literaturas africanas de língua portuguesa e demais literaturas negro-diaspóricas
domingo, 15 de julho de 2007
Luís Carlos Patraquim
O pós-independência moçambicano (1975) apresentou uma euforia em relação às letras. Várias publicações inéditas até então foram lançadas, livros reeditados e foi criada a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) que lançou várias obras e novos nomes. Nesse contexto, surge um nome que se tornaria emblemático na literatura do país, Luís Carlos Patraquim, com o livro Monção (1980), apontaria para os novos paradigmas que a poesia moçambicana passaria a percorrer na nova década.
Com o país independente e a distopia causada pelas promessas não cumpridas com a revolução e a conseqüente guerra civil entre a FRELIMO e a RENAMO, os poetas começam a abandonar a temática de combate e exaltação dos tempos revolucionários e, segundo Carmen Lucia Tindó Secco:
Reivindicam uma nova poética, não mais revolucionária apenas no sentido ideológico e social, mas também no plano individual, existencial e literário. Essa geração contemporânea propõe uma poesia capaz de cantar o amor, os sentimentos universais. (1)
Dentre os que acompanharam Patraquim naquele momento, podemos citar Mia Couto (Raiz do Orvalho, 1983), Eduardo White e Nelson Saúte, sendo que os dois últimos ligados à revista Charrua (1984), importante publicação que ajudou a consolidar os novos caminhos da poesia moçambicana.
Em Monção, vemos os poemas tratarem daquilo que é existencial, não apenas uma busca às emoções interiores, mas, também, recapturar as raízes perdidas por séculos de opressão e medo, daí a necessidade de cantar o amor, a imaginação e os sonhos em um constante exercício metapoético, com metáforas inusitadas e dissonantes, que buscam no universo onírico a multiplicidade cultural moçambicana esfacelada pela ação colonizadora. Há também a presença da intertextualidade. Carmen Lucia Tindó Secco comenta esta passagem:
No poema Metamorfose, notamos os versos de José Craveirinha, como já foi demonstrado por diversos estudiosos, e a Carlos Drummond de Andrade:
“quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento no mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade
(...)
mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
(...)
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo”
Embora anuncie a “monção” e a “morte do Adamastor”, metáforas da independência e do fim dos tempos coloniais, o poema, convocando versos de Craveirinha e Drummond, procura exorcizar o medo, há séculos, instalado em Moçambique. Consciente das mutilações sofridas por grande parte do povo, o sujeito lírico adverte (...) para a preemência de se restaurarem as emoções individuais bloqueadas pelos anos de arbítrio exacerbado, exaltando, então, a importância de cantar o amor, o desejo, os sonhos, a imaginação. (2)
Uma poesia que recorrerá ao surreal, pela livre associação de imagens apresentará a violência da realidade vivida no país, reativando o onírico presente no imaginário coletivo como forma de resistência para exorcizar o medo e trazer os sonhos adormecidos do moçambicano. Assim, recorrerá às raízes primevas na reconstrução da sua História e perceberemos as referências ao Índico, aos árabes e indianos entrecruzando-se às raízes das etnias negras e à herança trazida do Atlântico pelos portugueses, o que nos demonstra a identidade mestiça do país.
Com isto, o discurso se erotiza em um escrutínio sexo fundo com palavras. O recurso ao mar erotizado é uma constante em sua poesia: o mar, espumas e ondas são associados ao orgasmo, ao corpo da mulher, ao corpo da poesia e à linguagem num constante exercício metapoético que nos fazem viajar nas heranças ocidental e oriental na multifacetada identidade cultural moçambicana.
POESIAS
olhar em dispersão quando havia noite
e a casa em teu corpo era rubra e pétala
não sabia fingidor o silêncio
as pastagens húmidas
desejo na cidade quando o olhar em dispersão
e andavas com girassóis
via em teus cabelos era o corpo brunido
no escrutínio enebriante sumo contra os lábios
então passávamos a casa uma árvore na partitura
solta das mãos
queríamos seiva e nós quando o olhar
na noite em dispersão
(Monção, p. 21)
AUSTRALÍRICA
como dizer revolução sem eroniciar
no tempo
este admirável corpo de dança
a morna geografia do ventre
o mênstruo que é de sangue
e um arco-íris o goma
e a espuma cristaliza sobre a pele
e agora na monção escultora litanistórica
quando a vertigem do vento
vem de vir em teu rosto a inteira
irisdição
canto porque o poema se come
desde o milho à palavra em combustão!
(Monção, p. 25)
VARIAÇÃO DE NYAU
e os faunos bateram o som a pele fremente das planícies
abertas o vento corria vermelho por dentro e as mulheres
acordaram batendo mordendo o sumo dos cajueiros com
largas mãos acesas na noite a monção agónica nos tandos
espermáticos do olhar seios espigas verdes escorrendo leite
então o grito a alegria batendo alguém trouxera máscaras e
as gazelas húmidas sob a lua e o nervo das planícies abertas
quando os faunos bateram o som
(Monção, p. 26)
METAMORFOSE
ao poeta José Craveirinha
quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento no mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade
os jacarandás explodiam na alegria secreta de serem vagens
e flores vermelhas
e nem lustro de cera havia
para que o soubesse
na madeira da infância
sobre a casa
a Mãe não era ainda mulher
e depois ficou Mãe
e a mulher é que é a vagem e a terra
então percebi a cor
e a metáfora
mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
das mambas cuspideiras nos trilhos do mato
falemos dos casacos e do medo
tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes
e as espigas de bronze
as rótulas já não tremulam não a sete de Março
chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia
de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando
a natureza e o chão no parnaso das balas
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo
enquanto os tocadores de viola
com que latas de rícinio e amendoim
percutem outros tendões de memória
e concreta
a música é o brinquedo
a roda
e o sonho
das crianças que olham os casacos e riem
na despudorada inocência deste clarão matinal
que tu
clandestinamente plantaste
AOS GRITOS
(Monção, p. 27-28)
“Efectivamente o poeta Maiakovski suicidou-se”
oiço ler aqui
nesta espiral de esquinas e flâmulas
a um Poeta brasileiro
sentado sobre a pedra
minhas frases razuradas nas veias
que amor lhes dá
mais que o silêncio
e a magreza impúbere destes charcos suburbanos
ronda em tropel de espuma
haverá sereias vogando ao lado das folhas
dos poetas gregos?
Essa língua de Itabira
E agora num plano de Changara
Invenlírica pousada no tando súbito
Vermelho
Que pincel ou cor e forma
De suicídio
Mas te digo aqui a palavra
Entanto a espera dança
E o ritmo está bêbado
Disfarce do homem sem epílogo
Nem o poeta mata a poesia
(Monção, p. 29-30)
PARTITURA ECOLÓGICA
para a Manuela
suelto para a gazela na mesa grácil planura
em crescendo a colheita dum reflexo terno
tenro desejo animal harpejando arqueios
de códupula rápida
suelto para a alquimia ao vento de suas patas
na dança correndo o instinto solto e verde
o caçador espreita como ruge o trovão e a água
beija desprendida a pele trémula e eléctrica
suelto para a vida que morre e principia
no pulsar da fome ao sol do meio-dia
(Monção, p. 32)
nosso é o tempo do canto
conquistado a sangue
e terra
sobre o vibrato dos dias
alguma voz
são todas as vozes
este rosto etéreo a meu lado
e musgo nas marés do corpo
o sorriso de ser mundo
a noite nua
fremente
nosso é o tempo do canto
sobre o lugar
na descoberta palmo a palmo
de mais sol
o tempo amante
a voz da amada
o escrutínio deste sexo fundo
com palavras
(Monção, p. 33-34)
era a casa bailoçando em teus cabelos
e brunida ao fogo
a lança inexorável
quilha de barco ou convés
era o plâncton e a espuma
na exuberância das marés
era, meu amor, o tacto
de nós tão assim completo
tão assim exacto
que flores nasciam e se davam
na água do momento
e na epiderme desse silêncio
era sem dizer
que falava o esquecimento
(Monção, p. 36)
afasto as cortinas da tarde
porque te desejo inteira
no poema
e passas de capulana
teu corpo como as dunas
plantadas de pinheiros
rumorejando perto
a fúria das ondas
caindo brandas
no meu gesto
(Monção, p. 38)
EFABULÍRICA TABAGISTA
dormes como se morta
incendiado corpo nos dedos
ah! se tabaco fosses e lençol
no mais fundo da noite prismática
gizar o cigarro
fumando no teu sonho
(Monção, p. 48)
MUSICATÓRIO
ao Álvaro Marques
ó purilana queimada bacante
à 9a a fúria púbere
dionisíaco odre
ode instante
assim Beethoven se em périplo
chegasse à orla íris deste Msaho
aqui de sem pauta
mas seiva e nervura desde o tronco
e neste Olímpo de palmares
compor o delta a 4 mãos
e o sonho azeviche Fur Elise
enquanto os deuses esculturados em sura
dançassem o espanto e a matriz
indiciado mundo no Índico
onde só a terra gesta a raiz!
(Monção, p. 49)
SAGA PARA ODE
é preciso a distância para chegar
onde o poema parte e se reparte no léxico verde do teu corpo
com cinzas nocturnas e a madrugada nas mãos
é preciso o lugar ainda que doa
a emoção azul de sangrar por dentro
com o pensamento na galáxia terna do olhar
é preciso tudo como haver morte e flores
na raiz ao vento dos braços inteiros que se deram
por um nome uma ideia rubra nos lábios da liberdade
é preciso ver musgo e alegria até as ilhargas
da tua imagem garça a deslizar
e sorver água na exuberância lustral dos teus seios
é preciso a insurrecta solidão dalguns dias
quando os arquipélagos de ser dizem barco
e os teus passos espreitam
e tímidos percorrem o horizonte coral do silêncio
é preciso inventar-te porque existes
enquanto os deuses adormecem nas páginas dos livros
e o real é a infinita medida do canto
como acender as luzes ao meio-dia
e no mais sol das pétalas abertas
verter a seiva a singrar na terra
é preciso, meu amor, percorrer o tempo que nos deram
suspensos onde estamos nas pálpebras do verão
(Monção, p. 55-56)
(1) SECCO, Carmen L. T. R. (Org.). Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: UFRJ, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, 1999. v.3.
(2) SECCO, Carmen L. T. R. A magia das letras africanas – ensaios escolhidos sobre as literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. ABE Graph Editora. Rio de Janeiro, 2003.
(3) PATRAQUIM, Luís Carlos. Monção. Edições 70. Lisboa, 1980.
quarta-feira, 11 de julho de 2007
Jorge Guinle Filho: o desbunde neo-expressionista
Jorge Guinle Filho: o desbunde neo-expressionista
No Brasil, o neo-expressionismo (movimento de caráter mundial, que marcou o retorno à pintura nos anos 1980) coincidiu com o momento de reabertura política. O fim de vinte anos de trevas do período ditatorial estava próximo, os artistas brasileiros não queriam mais falar de direita ou esquerda, comunismo, desigualdades sociais, porões, tortura, fome, seca ou qualquer forma de patrulhamento ideológico. Havia, finalmente, um clima de esperança no ar, o estilo festivo trazido pelo desbunde exigia sua aparição nas artes plásticas. Os artistas da época desproblematizam a teorização excessiva e a racionalização da arte conceitual dos anos 70, portanto, nada melhor que o retorno à pintura, com toda a sua plenitude estética para saciar a sede que os novos tempos prometiam trazer.
Sincronizador para os Quatro Cavaleiros do Apocalipse , 1981 óleo sobre tela 160 x 230 cm
Nesse contexto, em julho de 1984, acontece a exposição Como vai você, Geração 80?, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. A presença maciça da pintura, com predomínio da figuração, com obras em grandes dimensões, sem chassis ou molduras, tendo como catálogo um número especial da revista Módulo, de julho daquele ano, em que o espírito irônico da época está muito bem representado no texto “Papai era surfista profissional, mamãe fazia mapa astral legal. Geração 80 ou como matei aula de arte num shopping center”, escrito por Jorge Guinle Filho, o principal nome, artista e teórico daquela geração.
Jorge Guinle aceitou o desafio de ser o porta-voz da geração, afinal ninguém era mais indicado do que ele para essa tarefa. Guinle passou anos entre Nova Iorque e Paris, e retornou ao Rio de Janeiro no apagar das luzes dos anos 70 quando os assuntos políticos eram mais leves.
A Reposição , 1983 óleo sobre tela 165 x 170 cm
Guinle viu de perto o surgimento do neo-expressionismo e acompanhou a consolidação de artistas como Julian Schnabel, George Baselitz, Sandro Chia e outros. Havia um hiato entre a produção brasileira, por causa da famigerada ditadura, e a do resto do mundo, logo, Guinle representou o sopro de renovação de nossas artes, mais especificamente da pintura, pois exalava erudição visual e inteligência pictórica para ser o líder da geração.
Macunaíma , 1986 óleo sobre tela 200 x 100 cm
A avanlanche imagética de Jorge Guinle é um convite a passear pela história da pintura do século XX. Vemos o fauvismo de Henry Matisse e o cubismo de Pablo Picasso, a action painting de Jackson Pollock e Willem de Kooning, e a pop art de Andy Warhol. Guinle vasculhou as obras de todos esses artistas, morou anos em Nova Iorque e Paris, nenhum deles o intimidava. Afirmou, certa vez, que era necessário retornar à pintura, e fez uma das obras mais cromáticas das artes brasileiras, o que o coloca ao lado de notórios coloristas como Alfredo Volpi e Iberê Camargo.
Ampla gestualidade, oscilação entre figuração e abstração e farto uso de cores, assim era pintura de Guinle. Como Jackson Pollock ensinou, o pintor gestual usa a mão, mas além dela o braço e todo o corpo no embate com o suporte a ser pintado. A emoção submissa oriunda da imersão física assegura a espontaneidade do processo criativo. Logo, o quadro torna-se "vida", e ele compreendeu bem a lição, portanto o que era excessivo e confuso o excitavam, o acúmulo de matéria pictórica o atraía. Essa fisicalidade fez com que Guinle não só desejasse criar uma coisa, mas viver a própria coisa.
É certo que em Guinle os movimentos ativos e os freios ousados estão presentes. As figuras, quando existem, são fragmentadas e submetidas a gestos imensos, intensos e sensuais. Os motivos, quando existem, são constrangidos ao puramente pictórico. O "Eu" está incluído na pintura, em e com todos os sentidos. A pintura é, afinal, esse "e", esse "no", o "entre" os dois.
A pintura de Guinle está em eterno movimento, tudo está por um triz: fundo que não é fundo, contornos que não contornam, figuras que não figuram, abstrações que não abstraem. São pinturas em perpétuo estado de redefinição: cada pincelada é temporária em vias de partir para um novo movimento. Inacabadas, work in progress para manter intacto o frescor de quando foram executadas vinte anos atrás.
Il Grido Giallo , 1986 acrílica e colagem sobre tela 200,9 x 300,5 cm
Infelizmente, Jorge Guinle teve uma passagem meteórica e morre em 1987. Entretanto, os parcos sete anos de trabalhos, que foram intensos e de grande qualidade, o levaram a participar de quatro Bienais de São Paulo na década de 1980, sendo que na edição de 1989 recebeu uma belíssima homenagem póstuma com 24 de suas melhores obras.
terça-feira, 10 de julho de 2007
Malangatana Ngwenya Valente
Malangatana Ngwenya Valente
Para o meu primeiro texto sobre Moçambique não poderia ter deixado de escolher o pintor da Matalana, Malagantana Ngwenya Valente. Nascido em 1936 numa região de etnia ronga, sendo que o apelido Ngwenya, significa jacaré, venha da África do Sul, de seu pai, que era de etnia zulu, Malangatana talvez seja hoje o maior pintor da história moçambicana.
A obra deste artista apresenta-nos e obriga-nos a mergulhar entre seres mitológicos assustadores e homens, ora híbridos, perdidos, comprimidos no espaço asfixiante da superfície pintada a revelar-nos a irracionalidade do colonialismo, a desumanidade das guerras colonial e da desestabilização em cores contrastantes e impactantes. Renascem figuras metamórficas, monstros que permeiam o imaginário do moçambicano, violentado com tantos anos de guerra. Mia Couto assinala:
Estes rostos repetidos até a exaustão do espaço, estas figuras retorcidas por infinita amargura são imagens deste mundo criado por nós e, afinal, contra nós. Monstros que julgávamos há muito extintos dentro de nós são ressuscitados no pincel de Malangatana.
Ressurge um temor que nos atemoriza porque é o nosso velho medo desadormecido. Ficamos assim à mercê destas visões, somos assaltados pela fragilidade da nossa representação visual do universo. (...)
No seu traço está nua e tangível a geografia do tempo africano. No jogo das cores está, sedutor e cruel, o feitiço, (...)
Estes bichos e homens, atirados para um espaço tornado exíguo pelo acumular de elementos gráficos, procuram em nós uma saída. A tensão criada na tela não permite que fiquem confinados a ela, obriga-nos a procurar uma ordem exterior ao quadro. Aqui reside afinal o gênio apurado deste ‘ingênuo’ invocador do caos, sábio perturbador das nossas certezas.
O feitiço, 1962.
Os seres representados são tantos, diversas alegorias a conduzir nosso olhar. Antepassados e figuras fantasmagóricas misturando-se, fragmentadas como a memória do homem moçambicano distante de suas raízes primeiras após tantos séculos de colonização e supressão de suas manifestações culturais. Frederico Pereira comenta:
Essa fragmentação, onde se encontram seres múltiplos da mitologia ordinária e da mítica pessoal, não evolui de facto em direcção a espaços organizados e organizadores. São esses espaços que permitem ao criador e ao Olhar do receptor encontrar-reencontrar na Obra uma fala que, ao invés de caótica, mas será polifônica. Aí se intui a presença, com efeito, de seres-em-diálogo, entre si e connosco. Seres-em-diálogo que dizem ainda: ‘Isto sou eu; isto é a minha terra; isto é a minha Cultura-Mãe’.
O poço sagrado, 1985.
É a maneira como Malangatana consegue descobrir soluções plásticas para ilustrar e, conseqüentemente, apresentar, denunciar a condição de seu povo, são estes fatores que fazem dele um artista maior. Trata-se da forma que arranja e re-arranja os elementos pictóricos que, logo, universaliza a sua obra ao olhar do espectador e “faz recordar-nos assim aquilo que os nossos tempos nos querem ir conduzindo a esquecer”, como observou Frederico Pereira.
É a consciência de ser moçambicano, a afirmação dos valores de sua terra contra a opressão da ditadura salazarista, metonimizada pela PIDE, que faz com que o artista explore a exaustão as figuras fantasmagóricas e dilaceradas que compõem o fragilizado e amedrontado universo onírico de Moçambique. Carmen Lucia Tindó Secco lembra que:
Há uma ausência de vazios que tenta suplementar as lacunas provocadas pelo processo de neutralização das alteridades, ao longo de séculos de submissão. Animais e homens. xicuembos (espíritos de antepassados) e shetanis (figuras mágicas e fantasmagóricas), lagartos repulsivos (os lumpfanas, que, segundo lenda das tradições moçambicanas registrada por Henri Junod, foram os responsáveis pela transformação dos homens em seres fadados à morte e não mais passíveis de ressurreição) e ngwenhas (jacarés com dentes afiados), seres híbridos e pássaros míticos como o ndatli (conhecido como o galo do céu, a ave do relâmpago e do trovão), se entrecruzam em metamorfoses, algumas vezes monstruosas, desvelando temores profundos, enraizados na alma do povo apequenado por tantas violências sofridas, materializadas por afiadas e ferinas garras.
É exatamente por ter a habilidade necessária para “sem perder a qualidade estética, pelo contrário, Malangatana começa a integrar no seu imaginário aquela ligação dos seus monstros – sexuais, tradicionais – com o monstro real: o colonialismo”, conforme observou Júlio Navarro e tinha percebido Eduardo Mondlane, presidente da Frelimo, fazendo-o a seguinte recomendação segundo palavras do próprio Malangatana:
(...)Em abril de 1961, essa foi a minha primeira exposição individual. Esta exposição coincidiu também com a vinda do sr. Eduardo Mondlane, que eu conheci pessoalmente, a ele e à mulher. Falei com ele e até pedi se ele não me podia dar uma bolsa para ir para os Estados Unidos. Nesta altura, ir para a América, ou sair dali era qualquer coisa que seria importante. E ele aconselhou-me a que não saísse daqui, porque tinha uma pintura que devia continuar a beber nas minhas raízes aqui, no aspecto de etnografia, de sociologia... Eu não entendi, de facto isso. Só compreendi mais tarde. Mas de qualquer modo obedeci, fiquei.
Esta referência às raízes ronga da Matalana foi realçada por vários que apoiaram o pintor nos primeiros anos de atividade artística. Malangarana cita seu amigo, o arquiteto Miranda Guedes.
Comecei por pintar uma pintura de paisagem, um pouco daquilo que se chamava retrato; não chegava a ser um retrato fiel. Continuei com naturezas mortas, mas depois comecei a dedicar-me à pintura decorativa, que foi provocada pelo facto de o arquitecto Miranda Guedes me ter consignado a pintar a contos, contos tradicionais. Aliás, quando ele me tirou do Clube de Lourenço Marques em 1960, a primeira coisa que ele faz é mandar-me de férias para junto de meus pais, para me reambientar, e trazer alguns contos para poder pinta. Isso fez com que a minha pintura, de facto, fosse mais para o sentido decorativo.
Na simbiose entre seres mitológicos e religião, depreendemos o caminhar na linha fronteiriça entre um mundo e outro a partir do caminhar do artista: tinha uma tia curandeira, da qual foi ajudante por algum tempo, ter estudado na escola da missão suíça e aprendido a língua ronga e todo o conhecimento tradicional aliado ao ensino da leitura, e posteriormente o ensino em uma escola católica onde não era permitido o uso das línguas locais e valorizado o ensino religioso. E é por subverter o espelhamento da cultura dominante que sua obra aproxima-se do barroco, mais precisamente do neobarroco, através da crítica à imposição do racionalismo ocidental efetuado pelas colônias, mas que não se concretizava plenamente diante do hibridismo e mistura das culturas várias que conviviam nas áreas colonizadas. Carmen Lucia Tindó Secco argumenta:
Na poética de José Craveirinha e na pintura de Malangatana Valente a dimensão neobarroca assume contornos cósmicos, intensamente atrelados a uma busca telúrica das raízes moçambicanas, apagadas, em parte, pelas práticas coloniais etnocêntricas. O erotismo neobarroco do poeta e do pintor se manifestam como jogo, revolta e indignação diante da consciência da fratura em relação às matrizes africanas.
O conjunto de Sevilha (3), 1990.
Diante do exposto, são representações como a presença de um feiticeiro portando um crucifixo, mostrando a mesclagem das culturas do colonizador e do colonizado que são para mim, o que atrai, instiga, incomoda e faz pensar; seria o punctum da imagem de Roland Barthes:
Nesse espaço habitualmente unário (a fotografia), às vezes (mas, infelizmente, com raridade) um “detalhe” me atrai. Sinto que basta a sua presença para mudar minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho, marcada a meus olhos por um valor superior. Esse “detalhe” é o punctum (o que me punge).
A conscientização social cresce com mais rapidez quando conhece o poeta José Craveirinha, artista com o qual adquire intensa amizade e suas artes dialogarão no decorrer dos anos. Craveirinha foi um poeta engajado na luta contra o colonialismo, identificamos várias fases na sua poesia que vão desde temas que resgatam os elementos culturais de sua terra, a negritude, o erotismo (comum aos dois artistas), a denúncia da violência colonial nos versos de Cela 1 ao lirismo de Maria, obra em homenagem à esposa falecida.
Evidente que esta atuação subversiva em plena ditadura salazarista não passaria impunemente pela PIDE, a polícia política. No percurso de ambos por um país livre haveria a opressão, a tortura, a morte, porém nada mais faria com que a convicção e esperança dos que estavam lutando desanimasse. Os versos do poeta da Mafalala retratam a afirmação dos combatentes:
Ao bom evangelho dos cassetetes
ouvir avoengos pássaros bantos
cantarem algures nos ombros
velhas melodias de feridas.
E depois
à sedutora persuasão das ameaças
pela décima segunda vez humildemente
pensar: Não sou luso-ultramarino
SOU MOÇAMBICANO!
Será suficiente esta confissão
sr. chefe dos cassetetes
da 2ª brigada?
Chico Feio, o espancador da PIDE, 1965.
As prisões aconteciam, Malangatana conta a sua experiência no cárcere:
(...) Mesmo na altura de 1961/62 tinha uma actividade política muito grande. Foi quando fiz parte do grupo em que o Craveirinha trabalhava clandestinamente, depois em 1963/64 as atividades crescem, também com o Luís Bernardo Honwana e outros. E somos presos, com o Rui Nogar, depois de termos contactado guerrilheiros que tinham vindo a Lourenço Marques para criar a Quarta Região Militar. Fomos presos juntos, alguns em celas diferentes.
(...)
fiquei pouco tempo na prisão comparado com muitos correligionários que ficaram de quatro a sete anos. Eu fiquei dezoito meses, (...) A base do julgamento foi pertencermos, sermos simpatizantes, da Frelimo. As provas que haviam foram que, de facto, nós tínhamos reuniões com guerrilheiros. A PIDE tinha a sua rede de informações, tinha acho que acompanhado a vida dos guerrilheiros desde a saída deles de Dar-Es-Salam, tinha um conhecimento mais ou menos exacto sobre eles.
Encarcerado, produz, em condições adversas, a série desenhos da prisão, segundo Mario Soares:
Testemunho e memória, esses desenhos, embora com recurso a diferentes técnicas, necessariamente limitadas pelas circunstâncias, inserem-se claramente no que de mais essencial constitui a estética desenvolvida pelo Artista.
Ora violentos – a violência praticada na prisão; ora sonhadores – o sonho de liberdade de qualquer preso; ora com recurso às suas mais fundas origens culturais, as da sua aldeia e do seu povo; ora evocando as famílias e as tragédias quotidianas; ora virados para o futuro imaginando o seu país livre e independente esses desenhos aparecem-nos, na sua diversidade, como um claro retrato da vida e dos sonhos de Malangatana e dos seus companheiros de prisão e de luta.
A violência fragmenta a vida do moçambicano que recorre ao espaço libertador dos sonhos para reduzir o sofrimento não somente seu, mas das esposas, das crianças, desorientadas com a falta de contato com a figura paterna, e pinta versos denunciando a situação:
“A Lua brilha
e a estrela
canta um poema triste
do céu que é enorme
do mundo que é vasto
das crianças que esperam
papá que nunca chega
A Lua brinca no céu e salta
e as crianças calaram as vozes
[e perguntam:
Mamã, o papá quando chegará
para nos contar as mil histórias”
Kenguelequezé, 1965.
Dono de um expressionismo acentuado, Carmen Lucia Tindó Secco define as várias fases percorridas pelo pintor da Matalana:
Expressionismo crítico – influenciado pelo neo-realismo – que efetua a denúncia do colonialismo, dos trabalhos forçados, dos cruzamentos culturais resultantes da imposição do cristianismo, das injustiças e misérias presentes no cotidiano dos bairros de caniço de Lourenço Marques;
A do expressionismo marxista, onde se depreende um didatismo pictural em prol da luta de libertação e dos ideais da revolução;
Julgamento de militantes da Frelimo, 1966.
A do onirismo cósmico e telúrico em que predominam o encarnado, os elementos do universo mítico moçambicano, os monstros, as unhas, os dentes, enfim, o horror e o sangue próprios de um contexto de guerra e violência;
Onde está a minha mãe, meus irmãos e todos os outros? 1985.
A do surrealismo cósmico, em que o azul substitui o rubro das telas, tingindo as figuras fantasmagóricas do imaginário ancestral que se retorcem à procura das origens, da paz e dos antigos sonhos.
O Ritual Nocturno, 1985.
Devemos acrescentar que o expressionismo de Malangatana apresenta características formais que o diferem do expressionismo de origem alemã. Notamos em sua pintura figuras e formas deformadas e distorcidas, cores vibrantes descompromissadas com a verossimilhança e o sentimento dramático de revolta com os anos de supressão da cultura de seu povo em telas viscerais a escancarar a agonia de um país que se quer livre. Todavia, o expressionismo praticado por ele carrega em seu traço a linha de contorno, o que seria contraditório para os alemães do início do século XX, pois estes eliminaram através do gestual livre, espontâneo e descompromissado, o que poderia ser uma espécie de controle para o que se deve expressar, daí chamo esta maneira de expressar-se de expressionismo matalanagantana.
Com o excesso de alegorias apresentados nas suas obras, Malangatana não problematiza a questão cara aos modernistas entre a relação figura/fundo, pois ao preencher toda a tela com incontáveis faces suas telas apresentam planaridade única, em um confuso e fragmentado labirinto a procura das próprias raízes sufocadas no decorrer dos séculos. A planaridade realizada por ele aproxima-se da técnica do all-over, desenvolvida por Jackson Pollock no apogeu do expressionismo abstrato dos anos 1950, com o seu preenchimento homogêneo da superfície pintada, como destacou o crítico americano Clement Greenberg ao falar da nova pintura à americana.
O Conjunto de Sevilha (9), 1990.
Expressionista e surreal também. Assim são suas formas zoomórficas dos seres mitológicos, e encontramos paralelos com o Pablo Picasso da época da Segunda Guerra Mundial e as pinturas infestadas de criaturas híbridas que enchiam de medo e horror medievais o homem europeu em plena Renascença retratadas por Hieronymus Bosch, assumidas por ele:
(...) já nos anos 60, 1962, 1963. comecei a ver também pinturas de Picasso... Do Bosch, de quem tive uma grande influência, quando vim a simbiosar aspectos mitológicos com a religião... convencional, digamos.
Ao falar de Moçambique em suas pinturas, Malagantana, neobarrocamente, subverte a ordem estabelecida e questiona o legado imposto pelo colonizador com uma ruptura estética a elevar em cores, formas e tintas as danças, feitiços, mitos... estórias contadas em telas de e para Moçambique.
Malangatana:
“A pintura pode descrever várias coisas que acontecem na vida política e pode ser utilizada para ilustrar aquilo que acontece. Por exemplo, pode denunciar factos. Eu uso a pintura, ainda hoje, para denunciar as atrocidades que acontecem hoje na África Austral, em Moçambique sobretudo. Da mesma maneira que pintei coisas que falavam das atrocidades da situação colonial, hoje falo dos massacres, hoje falo das mulheres cujo os seios são cortados, das crianças que são mortas, e também utilizo a pintura par lutar contra o apartheid.
(...) Mas continuo, de facto, a não ignorar aquilo que acontece ao ser humano em Moçambique. Eu não estou fora da sociedade moçambicana, e não deixo também de ter uma pintura que seja crítica em relação àquilo que eu considero injusto. Ela fala, conta coisas também. Isso, no sentido de fazer com que, afinal, o homem moçambicano se vá vendo através da minha pintura e, no caso da poesia, na do Craveirinha e do Rui Nogar.”
Fontes:
BARTHES, Roland. A câmara clara. Ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1984.
CHABAL, Patrick. Vozes Moçambicanas – literatura e nacionalidade. Coleção Palavra Africana. Editora Veja. Lisboa, 1ª edição, 1994.
FERREIRA, Gloria (ORG.). Clement Greenberg e o debate crítico. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2001.
NAVARRO, Julio (ORG.). Malangatana – de Matalana a Matalana. Catálogo da exposição no Instituto Camões, Portugal.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Craveirinha e Malangatana: cumplicidade e correspondência entre as artes. In: A magia das letras africanas. ABE Graph Editora. Rio de Janeiro, 2003.
SOARES, Mario. Texto da exposição virtual Malangatana: desenhos da prisão. Acessado em http://www.fmsoares.pt/ no dia 20/10/2006.
segunda-feira, 9 de julho de 2007
Navarro,
Te deixo meus textos póstumos. Só te peço isto: não
permitas que digam que são produtos de uma mente
doentia! Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo
biografílico. Ratazonas esses psicólogos da literatura
– roem o que encontram com o fio e o ranço de suas
analogias baratas. Já basta o que fizeram ao Pessoa.
É preciso mais uma vez uma nova geração que saiba
escutar o palrar dos signos.
Ana Cristina Cesar, ou Ana C., como assinava seus textos, nasceu em 1952 e decidiu dar um basta a sua vida em outubro de 1983, menos de um ano após o lançamento de A teus pés (dezembro/1982), seu único livro publicado em vida e que reunia os três anteriores que havia publicado independentemente, a saber: Cenas de Abril (junho-julho/1979), Correspondência Completa (agosto/1979) e Luvas de Pelica (novembro/1980).
Diante do exposto, como evitar leituras simplificadas da obra de Ana C.? Seguindo sua sugestão, como fugir do tal obscurantismo biográfílico? Foi este o desafio a que me propus. Concentrei-me no poema enquanto poema, junção de palavras, de sensações e efeitos, apesar de seu trabalho literário ser calcado em diários e cartas que tendem ao tom confessional.
Bom, a própria Ana C. nos apresenta algumas pistas para entendermos sua criação literária. Em seus textos críticos pensou literatura, pensou poesia, fez crítica literária, estudou tradução, e assim, podemos perceber que tudo isso participava intensamente de sua produção literária. Nos ensaios e artigos confrontamo-nos com uma teórica consistente, que levanta questões para compreensão de seus próprios textos.
Não devemos dispensar a leitura da produção crítica da autora, pois através dessa produção esclareceremos a leitura de seus poemas, que a princípio, nos parecem estranhos, difíceis, herméticos etc. o que poderia nos levar a uma leitura surrealista ou simbolista, a procurar significados ocultos por entre palavras e linhas.
Diários, cartas, tom de confidência e temas íntimos são características que induzem a leitura de sua literatura em busca de um espelho da vida da autora. E Ana C. adorava brincar propositadamente com esse desejo do leitor, por isso insistia em uma escrita que parecia esconder segredos íntimos de mulher.
Os diários, que compõem todo o livro Luvas de Pelica e parte de Cenas de Abril, não são seus, mas diários inventados. Ela dizia: “Eu acho que exatamente é esse tipo... essa armadilha que estou propondo. Existem muitos autores que publicam seus diários mesmo, autênticos. Aqui não é um diário mesmo, de verdade, não é meu diário. Aqui é fingido, inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção. (...) Se você vai ler esse diário fingido, você não encontra intimidade aí.” Ainda diz: “(...) intimidade... não é comunicável literariamente. A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura.”
Assim, ficcionando diários e cartas, ela brinca com o obscurantismo biografílico.
Para Ana C., ainda que o poeta parta de uma emoção vivida, um acontecimento particular para escrever, esta sua intimidade só é trabalhada como material bruto, pois ao produzir o texto literário, não há como ser fiel ao sentimento inicial, ainda que assim se desejasse. Sendo assim, o escritor deve “morrer”, enquanto sujeito fixo e fechado em suas crenças e obsessões pessoais, e se abrir ao texto: “Em todo o texto, o autor morre, o autor dança, e isso é que dá literatura.”, falava Ana C..
Aqui, Ana C. aproxima-se de pensadores contemporâneos e podemos traçar um paralelo com a idéia de morte do autor, de que a literatura não é o lugar da afirmação, mas antes da desconstrução do sujeito. Roland Barthes, em A morte do autor: a escrita como a destruição de toda voz, de toda a origem e a constituição de um espaço neutro da linguagem; a escrita começa com a morte do autor. Nesta concepção da literatura, não se trata mais de um sujeito que se afirma no texto, mas de um sujeito que se desfaz para dar voz à própria fala.
Trata-se de fabricar o real e não de responder a ele. Não há um real falsificado no poema, mas um real fabricado no poema. O texto como fábrica de um real; assim era o poema e a literatura para ela. O texto literário é construção, construção da realidade, constitui em si uma realidade, um real inédito, um universo próprio. “O poeta pode representar, fingir descaradamente; não tem mais um compromisso com uma Verdade, não se propõe a simbolizar um inefável e preexistente sentir ou existir.” (pg. 164). O texto assume-se como criador: “o poema é uma produção, um modo de produzir significação mediante o fingimento poético, e não uma nobre tradução do indizível.” (Crítica e Tradução, p. 164)
Nesse sentido, em Ana C., a palavra é viva, a palavra cria realidades. O poema de Ana C. deve ser visto como um ser com vida própria, que visa interferir sensorialmente no mundo, nas pessoas, nos corpos, como qualquer outro objeto real. Sendo assim, a palavra é libertária, o texto possui liberdade, a liberdade de poder dizer e inventar tudo, criar a realidade que se quiser, porque o real do texto é outro, espaço livre em que tudo pode existir. Na realidade que a escrita constrói, o poema pode nos ferir como uma faca:
“olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas”
(A teus pés. Cenas de Abril. P. 89.)
Aqui temos o corpo do poema e o corpo que sente, uma mistura de corpos, de reais: o real do poema e o real da gente. O corpo do poema surge como provocador de sensações no corpo de quem lê, como causar um filete de sangue nas gengivas. O poema cria esse real que é feito de palavras, uma realidade própria à linguagem que atua na realidade das pessoas.
Em A teus pés, ela radicaliza, fragmenta mais a escrita, os textos são aparentemente desconexos, com versos que parecem não se encaixar, mas ainda mantém a cara de diário, de correspondências, e podemos continuar com a impressão de que há segredos escondidos que aguçam a curiosidade. Para ela, os vazios, espaços em branco seriam o que ela define como “não-dito” do texto literário, algo que difere de “entrelinha”. Ela diz: “A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não. (...) Eu acho que, no meu texto e acho que em poesia, em geral, não existe entrelinha. (...) Existe a linha mesmo, o verso mesmo. O que é uma entrelinha? Você está buscando o quê? O que não está ali?” (Crítica e Tradução, pp.262-263)
Como vemos, a poesia de Ana C. não lida com simbologia alguma, os elementos não estão no “lugar de” ou representando algo. Em um debate público ela foi questionada sobre o que quis dizer com “pato” em Luvas de Pelica, sua resposta: “Pato, por acaso, é um significante que puxa muitos outros (...) Quanto mais puxar melhor (...) Não vou dizer nunca para você o que, para mim, o símbolo do pato significa...”.
Não busquem “o que eu quis dizer”, por exemplo em “contramão”, no poema “Mocidade Independente”: “(...) Voei para cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão”. (A teus pés. p. 44)
Ana C. via o ato da leitura no que chama de “puxar significante”, ou seja, ir fazendo associações mais diversas e inesperadas a cada vez: “Ler é meio puxar fios, e não decifrar.” (Crítica e Tradução, p. 264). Encarar as palavras como significantes nômades, que mudam a cada leitura, significados múltiplos.
Assim, Ana C. acredita no não-dito da literatura, um não-dito da própria realidade textual. A entrelinha remete a uma insinuação escondida, já o não-dito é aquele que pertence ao próprio texto, e não remete a algum objeto externo originário. Seria um não-dito da liberdade: os espaços em branco, o silêncio em torno das palavras, que relacionam infinitos “fios”, que cada leitor puxará e abrirão imprevisíveis associações.
Ana C. dizia: “Você pode ter lido um ou dois [poetas] e já sacar o que é poesia: que a poesia é um tipo de loucura qualquer. É uma linguagem que te pira um pouco, que meio te tira do eixo.” (Crítica e Tradução. p. 270) Esta aí a poesia e sua força, Esta aí a chance de nos desvencilharmos, quem sabe, de uma concepção limitada da poesia como representação.
Para sorte nossa, Ana C. foi uma promessa que se cumpriu suficientemente: por ter sido precoce foi bastante, talvez intuindo o pouco tempo que teria para registrar o esplendor da sua inteligência e da sua vocação.
Armando Freitas Filho
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Textos
“Escrever cartas é mais imperioso do que se pensa. Na prática da correspondência pessoal, supostamente tudo é muito simples. Não há um narrador fictício, nem lugar para fingimentos literários, nem para o domínio imperioso das palavras. Diante do papel fino da carta, seríamos nós mesmos, com toda a possível sinceridade verbal: o eu da carta corresponderia, por princípio, ao eu ‘verdadeiro’, à espera de correspondente réplica. No entanto, quem se debruçar com mais atenção sobre essa prática perceberá suas tortuosidades. A limpidez da sinceridade nos engana, como engana a superfície tranqüila do eu.”
“A relação entre professor e aluno assume muitas vezes um caráter de sedução: o aluno copia a matéria sem dizer palavra, embasbaca-se com o brilhantismo do professor, aplica os seus modelos e injeições ao texto literário. O bom professor passa a ser aquele que ‘tenta’ eroticamente sua turma, e que reina sobre ela como um sultão sobre o seu harém.
Por outro lado, o aprendizado da teoria literária pressupõe uma competência cultural e lingüística que o sistema educacional como um todo não fornece; e a instância oficialmente incumbida de transmitir os instrumentos para que se pense a literatura não sabe ou não se julga obrigada a transmiti-los metodicamente a alunos cada vez mais despreparados. Daí se estabelece uma outra dimensão na relação docente, que é o terrorismo, o medo da onipotência intelectual do professor. Essa sujeição porém não é simplesmente intelectual mas está inscrita no próprio corpo dos alunos e dos professores e se expressa na sua postura na dentro de sala de aula e diante do próprio trabalho: na ocupação física do espaço escolar, na submissão a um modelo de comportamento ou a uma teoria, na afirmação de uma determinada teoria como a Teoria.”
Primeira lição
Os gêneros de poesia são: lírico, satírico, didático, épico, ligeiro.
O gênero lírico compreende o lirismo.
Lirismo é a tradução de um sentimento subjetivo, sincero e pessoal.
É a linguagem do coração, do amor.
O lirismo é assim denominado porque em outros tempos os versos sentimentais eram declamados aos sons da lira.
O lirismo pode ser:
a) Elegíaco, quando trata de assuntos tristes, quase sempre a morte.
b) Bucólico, quando versa sobre assuntos campestres.
c) Erótico, quando versa sobre o amor.
O lirismo elegíaco compreende a elegia, a nênia, a endecha, o epitáfio e o epicédio.
Elegia é uma poesia que trata de assuntos tristes.
Nênia é uma poesia em homenagem a uma pessoa morta.
Era declamada junto à fogueira onde o cadáver era incinerado.
Endecha é uma poesia que revela as dores do coração.
Epitáfio é um verso gravado em pedras tumulares.
Epicédio é uma poesia onde o poeta relata a vida de uma pessoa morta.
Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares
Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... Ai que enjôo me dá o açúcar do desejo.
Não volto às letras, que doem como uma catástrofe. Não escrevo mais. Não milito mais. Estou no meio da cena, entre quem adoro e quem me adora. Daqui do meio sinto cara afogueada, mão gelada, ardor dentro do gogó. A matilha de Londres caça minha maldade pueril, cândida sedução que dá e toma e toma e então exige respeito, madame javali. Não suporto perfumes. Vasculho com o nariz o terno dele. Ar de Mia Farrow, translúcida. O horror dos perfumes, dos ciúmes e do sapato que era gêmea perfeita do ciúme negro brilhando no gogó. As noivas que preparei, amadas, brancas. Filhas do horror da noite, estalando de novas, tontas de buquês. Tão triste quando extermina, doce, insone, meu amor.
Sou linda; gostosa; quando no cinema você roça o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais quem desejo, que me assa viva, comendo coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no cinema é escuro e a tela não importa, só o lado, o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora deste sabe onde me encontro até de olhos fechados; falo pouco; encontre; esquina de Concentração com Difusão, lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta.
Precisaria trabalhar – afundar –
como você – saudades loucas –
nesta arte – ininterrupta –
de pintar –
A poesia não – telegráfica – ocasional –
me deixa sola – solta –
à mercê do impossível –
– do real.
Quando entre nós só havia
uma certa carta
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café
Bibliografia:
Barthes, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. Edições 70. Lisboa, 1987.
Cesar, Ana Cristina. Crítica e tradução. Editora Ática. Rio de Janeiro, 1999.
De Hollanda, Heloísa Buarque. Impressões de viagem. Editora Brasiliense.
Revista José, agosto/1976. Pp 3-9. Debate: Poesia Hoje com Luiz Costa Lima, Sebastião Uchôa, Jorge Wanderlay, Heloísa B. de Hollanda, Ana Cristina Cesar, Geraldo Carneiro e Eudoro Augusto.
sábado, 7 de julho de 2007
Ainda na comemoração do 32º aniversário de Cabo Verde independente, tentei elaborar um texto apresentando alguns aspectos da poesia cabo-verdiana que tanto interesse e espanto me causaram. Vamos a eles.
Quando estudei a disciplina de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, ministrada pela Profa. Norma Lima, algumas peculiaridades no percurso da poesia cabo-verdiana instigaram-me a curiosidade, tais como a maneira como foi tratada a colonização pelos portugueses, diferenciada das outras quatro colônias (Angola, Guiné, Moçambique e São Tomé e Príncipe), pois as ilhas não eram habitadas o que fez os navegadores das naus levarem escravos de Guiné para lá; a mestiçagem populacional; o bilingüismo com intensa presença do crioulo no falar local; as difíceis condições climáticas; o aspetcto geográfico reforçado pela insularidade do arquipélago causando um sentimento contraditório nos homens de sua terra em relação ao mar, em querer ficar, mas ter que partir, ou seja, a evasão e a posterior anti-evasão. Foram basicamente estes pontos que auxiliaram na reivindicação de uma identidade independente e a maneira como eram tratados pelos poetas que fizeram soprar o vento desbravador em mim.
No início do século XX, os poetas tentam criar uma história, um passado para o arquipélago diferenciando-o do português colonizador, o pai, e que valorizasse a mãe-terra crioula, a mátria. Entretanto, os escritores ainda recorrem a referências européias na busca de um passado heróico para sua pátria e, assim, chegam ao mito hesperitano. As origens do mito são descritas por Simone Caputo:
Aqui pontuamos um topos interessante do percurso de busca de identidade crioula: o recurso ao mito arsanário ou hesperitano como origem (associado à idéia de pátria). As obras de José Lopes e de Pedro Cardoso, já nos seus títulos (Hesperitanas, 1928, e Hespérides, 1929; Jardim das Hespérides, 1926, e Hespéridas, 1930, respectivamente) interpretam a origem como: ilhas do velho Hespério – pai das Hespéridas – que abrigavam jardins repletos de pomos de oiro, guardados pelo dragão de cem cabeças, morto por Hércules. As “ilhas perdidas no meio do mar”, destacadas por Jorge Barbosa em seu antológico Arquipélago, 1935, e já eram identificadas por Camões, em Os lusíadas (canto V, VII, VIII, IX) como Cabo Verde (Cabo Arsinário ou Estrabão).
Os poetas recorrem ao passado de glórias do paraíso perdido de Atlântida como uma maneira de acalanto à situação em que se encontravam, diante da miséria perpetrada pelas condições climáticas adversas das ilhas. Porém, apresentam ainda uma situação confusa, onde ora assumem a pátria lusitana, ora almejam “a terra onde nascemos” (ilha-mãe) como podemos constatar nos trechos a seguir.
Camões surge nos versos de José Lopes:
Mas somos filhos, nós, de outros gigantes
Que, “por mares nunca dantes navegados”
Nossas Ilhas tiraram do mistério
(Hesperitanas. p.29. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.163.)
Todavia, clama as “ilhas nossas mães” (Hesperitanas. p.25. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.163.)
Já Pedro Cardoso canta a pátria portuguesa, mas não se esquece da sua pátria crioula:
A minha pátria é uma montanha olímpica
Tamanha! (...)
Na verdade, escutai! – chama-se
Fogo!
(Hespéridas. p.57-58. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.163.)
Nasci na Ilha do Fogo,
Sou, pois, caboverdeano,
E disso tanto me ufano
Que por nada dera tal.
Ser filho de Cabo Verde,
Assevero – fronte erguida –
Que me é honra a mais subida
Ser neto de Portugal.
(Algas e corais. p. 5. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.163-164.)
Devemos frisar que a referência ao mito hesperitano foi motivada pelas “pesquisas de José Lopes e Pedro Cardoso nos alfarrábios e enciclopédias da biblioteca do Liceu de S. Nicolau, do qual foram alunos”. (GOMES, 2006)
Até mesmo a submersão de Atlântida, após os cataclismos, encontra justificativa nos versos de José Lopes, e com isso afirma que o arquipélago de Cabo Verde é o que sobrou da antiga civilização:
Das vastas extensões assim submersas
Então ficaram estas nossas ilhas
(Hesperitanas. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.165.)
aos “Irmãos caboverdeanos”, Pedro Cardoso conclama:
pisamos...
talvez a mesma terra que os Atlantes
(Hespéridas. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.165.)
Depreendemos que este recurso ao mito hesperitano já propõe uma alternativa para a terra-mãe, renegando a pátria portuguesa. Todavia, a referência a este mito ainda apresenta uma solução longe daquilo que é vivenciado, o sentimento de evasão está presente e também aparecerá em outro movimento literário surgido com os poetas que formaram o corpo da revista Claridade a partir de 1936, e será conhecido como Pasargadismo.
A revista Claridade (1936-1960) é liderada por Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes, integrantes da elite intelectual crioula cabo-verdiana, sendo acompanhados por Corsino Fortes, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira entre outros. Esse grupo de escritores passa a assumir suas raízes locais e admiram as inovações literárias propostas pelo modernismo brasileiro. Vêm o Brasil como modelo de país mestiço independente de Portugal, com uma língua diferenciada do colonizador (cito “Pronominais”, de Oswald de Andrade), a semelhança climática com o Nordeste brasileiro, e o conhecimento de nossa literatura, como podemos inferir no poema “Você, Brasil”, de Jorge Barbosa:
Eu gosto de você, Brasil,
Porque você é parecido com a minha terra.
Eu bem sei que você é um mundão
E que a minha terra são
Dez ilhas perdidas no Atlântico,
Sem nenhuma importância no mapa.
(...)
Você, Brasil, é parecido com a minha terra,
as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias.
Mas há no entanto uma diferença:
é que os seus retirantes
têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,
ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem
porque seria para se afogarem no mar...
(...)
havia então de botar uma fala
ao poeta Manuel Bandeira
de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima
para ver como é que a poesia receitava
este meu fígado tropical bastante cansado.
Havia de falar como Você
Com um i no si
– “si faz um favor –
de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos
– “mi dá um cigarro!”
(...)
Os claridosos terão como temas os flagelos sentidos pela população, a seca, a fome, assim como a presença constante da insaluridade e a conseqüente evasão para solucionar este drama. Podemos citar na prosa, o livro “Flagelados do vento leste”, de Manuel Lopes, como representante deste período.
Mas é com Manuel Bandeira e a sua busca da felicidade tendo como imagem a ida para Pasárgada, que os poetas assumirão a evasão como principal característica. Sua influência é tamanha que faz escritores como Jorge Barbosa considerá-lo como um irmão brasileiro citando-o em diversos textos, e outro importante admirador claridoso é Osvaldo Alcântara (Baltazar Lopes). Assim comenta Simone Caputo Gomes:
A imagem de Pasárgada fecunda seus textos, não mais motivada pela doença, como nos poemas do brasileiro, mas pela pobreza do arquipélago. A nova Pasárgada não se resume a um espaço único, mas propõe-se, por meio da evasão, sempre como transposição de limites: “Eu vou-me embora, / não vou mais ficar / avassalado pela Astral Inferior” (Rapsódia da ponta da praia. Claridade, n. 5, p.13.)
Ou como espaço perdido (e não lugar a conquistar, em Bandeira). No seu “Itinerário de Pasárgada”, Osvaldo Alcântara nos fala da “saudade fina de Pasárgada”.
Entretanto, a evasão proposta pelo pasargadismo será contestada pelos escritores das gerações seguintes, anunciar-se-á o sentimento de anti-evasão e tendo como lema o dito “Não vou mais para Pasárgada”, os poetas do Suplemento Cultural (1958) e da Geração da Nova Largada (Ovídio Martins, Gabriel Mariano, Aguinaldo Fonseca entre outros) recusam o mito pasargadista e propõem a permanência em Cabo Verde como forma de resistência e ação, postura esta que já vinha sendo discutida pelos representantes da revista Certeza (1944, dois números).
Ovídio Martins retrata o momento de ruptura nos versos que seguem.
Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão
e prenderei nas mãos convulsas
ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada
(Anti-evasão. apud: Antologia temática da poesia africana, Mário de Andrade, p. 48.)
Morremos e ressucitamos todos os anos
para desespero dos que nos impedem
a caminhada
Teimosamente continuamos de pé
num desafio aos deuses e aos homens
E as estiagens já não nos metem medo
porque descobrimos a origem das coisas
(quando pudermos!...)
Somos os flagelados do Vento Leste!
(Flagelados do Vento Leste. Apud: Antologia temática da poesia africana, Mário de Andrade, p. 46-7.)
Onésimo Silveira apresenta o gosto pela origem cabo-verdiana, seus ritmos, suas mulheres.
O povo das Ilhas quer um poema diferente
para o povo das Ilhas:
Um poema com seiva nascendo no coração da ORIGEM
Um poema com batuque e tchabéta e badias de Santa Catarina
Um poema com saracoteio d’ancas e gargalhadas de marfim!
O povo das Ilhas quer um poema diferente
para o povo das Ilhas:
Um poema sem homens que percam a graça do mar
E a fantasia dos pontos cardeais!
(Um poema diferente. Apud: Antologia temática da poesia africana, Mário de Andrade, p. 56.)
Depreendemos que a procura identitária na poesia cabo-verdiana vai se desenvolvendo com o passar dos anos. O início do percurso trilhado em sinuosos versos entre a “transpátria lusa”, o resgate do mito hesperitano como pátria, a terra-mãe, a evasão do pasargadismo até chegar à poesia atual ainda na incansável busca pela identidade, Almada passeia pela temática típica dos seus predecessores e propõe um novo canto:
Quero
Um canto diferente
Para Cabo Verde
Já não somos
Os flagelado do vento leste
Dominamos os ventos
Já não somos os contratados
Como animais de carga para o Sul
Conquistamos a dignidade de gente
Por isso
Vou cantar
De forma diferente
Para esta pátria do Meio do Mar
Vou esquecer, enterrar
Os lamentos, as lamúrias
A tristeza
De quem quer ficar
Com o destino de ter de partir
Não vou chorar
A pobreza, a fraqueza
A seca
A natureza madrasta
Canto
Para este povo
Um canto de alegria
(1988. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.168-169.)
Bibliografia:
ANDRADE, Mário de. Antologia temática de poesia africana: na noite grávida de punhais. Sá da Costa Editora, Lisboa. 1977.
GOMES, Simone Caputo. Rostos, gestos, falas, olhares de mulher: o texto literário de autoria feminina em Cabo Verde. In: Chaves, Rita e Macedo, Tânia. (Orgs.) Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo, Alameda, 2006.
SECCO, Carmen L. T. R. (Org.). Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Cabo Verde. Rio de Janeiro: UFRJ, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, 1999. v.2.
sexta-feira, 6 de julho de 2007
A pincelada rítmica de Kiki Lima
Kiki faz do cotidiano da população simples e das raízes culturais de Cabo Verde o principal tema de suas obras. Percebemos uma busca identitária em suas pinturas para os cidadãos de seu país através das atividades diárias, em momentos que o artista apresenta semelhanças temáticas com os modernistas brasileiros da Semana de 22, como Di Cavalcanti. O artista pinta os pescadores, homens e mulheres do povo em situações comuns etc.
Esta relação com o Brasil que é resgatada por Kiki, aconteceu na literatura de seu país nos anos 1930 com os chamados “claridosos”, poetas como Jorge Barbosa, Manuel Lopes, Baltasar Lopes entre outros criaram a revista “Claridade”. Escritores que tinham na literatura e na proximidade climática do nordeste brasileiro com o arquipélago uma rica fonte de inspiração, sendo Manuel Bandeira um dos nomes de referência, tendo a
perseguição da felicidade na imagem de Pasárgada um mote criativo para o movimento que ficou conhecido como Pasargadismo. Simone Caputo descreve como esta imagem era tratada pelos claridosos:
“A imagem de Pasárgada fecunda seus textos, não mais motivada pela doença, como nos poemas do brasileiro, mas pela pobreza do arquipélago. A nova Pasárgada também não se resume a um espaço único, mas propõe-se, por meio da evasão, sempre como transposição de limites: ‘Eu vou me embora, / não vou ficar mais / avassalado pelo Astral Inferior’”. (Rapsódia da ponta da praia. Claridade, n. 5, p. 13)
Este sentimento de evasão desencadearia posteriormente um clamor anti-evasionista representado no célebre poema de Ovídio Martins:
Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão
E prenderei nas mãos convulsas
Ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada. (Ovídio Martins)
Apreendemos que as questões cabo-verdianas passam pelas atividades artísticas e Kiki utiliza a gestualidade excessiva, típica do expressionismo, para demonstrar e exaltar um povo que passou séculos sob o jugo colonial português. Talvez, por isto, o uso do idioma crioulo em alguns títulos de seus quadros e as representações de homens e mulheres em suas festas na dança da “coladeira”, mostrando a alegria de uma população que luta contra as adversidades impostas pela economia e pelo clima, a insularidade, a seca. Devemos lembrar que o artista também atua como poeta, compositor e intérprete, o que pode ajudar a justificar as obras com constantes cenas de bailes e mulheres dançando em um ritmo contagiante transmitido pelo tratamento pictórico dado carregado em sensualidade.
Diferente do expressionismo alemão do início do século XX, que tinha na dor e angústia o seu apelo dramático, Kiki nos apresenta um expressionismo ensolarado numa paleta de cores vibrantes e festivas que mais o aproximam do estilo fauvista de Matisse e André Derain. Descompromisso com a forma da figuração humana, demonstrado no uso intenso e rápido da espátula; quebra da perspectiva, não há preocupação com o que está ou não representado no fundo da tela, pois o seu motivo principal são os cabo-verdianos em conversas despreocupadas, mulheres trabalhadoras e dançarinas.
Com uma pintura que trata de temas locais e consegue ser universal como toda boa arte, o pintor-músico-poeta Kiki Lima mostra-nos a alegria contagiante dos cabo-verdianos em seus quadros, o que muito contribui para o amadurecimento e afirmação deste pequeno e jovem país.
Agradecimento especialíssimo às Profas. Simone Caputo (pelas informações e algumas das imagens que aqui estão) Maria Teresa Salgado, Norma Lima e Carmen Lucia Tindó Secco, e às amigas Claudia e Gisela.
Caputo, Simone. A poesia de Cabo Verde: um trajeto identitário. In: Revista Poesia Sempre n° 23. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2006.
Acessado em 15/01/2007 - http://www.artafrica.info/html/artistas/artistaficha.php?ida=29
Tchalê Figueira
Tchalê Figueira é um dos principais nomes da pintura cabo-verdiana na atualidade. Além do relacionamento com pincéis e tintas, Tchalê também atua como poeta, tendo já publicado em poesia “Todos os náufragos do mundo” (1992) e “Onde os sentimentos se encontram” (1998), além de arriscar-se na música, pois adora percussão. É irmão do pintor-poeta Manuel Figueira, outro importante nome da pintura cabo-verdiana que realizou obras de grande apelo durante a luta contra o colonialismo.
Nasceu na ilha de São Vicente, em 1963. Quando estava próximo da idade para o alistamento militar no exército português em 1970, antes da independência colonial, aos dezessete anos Tchalê conseguiu embarcar em um navio rumo à Holanda, seguindo, de certa maneira, o sentimento de evasão que tantas vezes aparece na literatura de seu país em nomes como Jorge Barbosa e Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes). Virou marinheiro e retratou essa experiência no romance “Ptolomeu e a sua viagem de circum-navegação”. Após dois anos vivendo sobre os mares fixou residência na Suíça. Lá, matriculou-se na Escola de Belas-Artes da Basiléia entre os anos de 1976-79, onde aprimorou as técnicas das vanguardas européias.
Dono de um acentuado expressionismo em suas pinturas, percebemos cores e formas da figuração humana descomprometidas com a verossimilhança. Suas cores são saturadas, como que para escandalizar a presença dos seres marginalizados pela sociedade; sua gestualidade alterna momentos de intensa agressividade, fluidez e certa precisão nos traços das faces humanas, que ora remetem às tradicionais máscaras africanas, seja na forma à qual Pablo Picasso se inspirou ou na zoomorfização; e há ausência de rigor na perspectiva acadêmica problematizando a relação figura e fundo, sendo este último geralmente indefinido em vastas áreas em uma paleta reduzidíssima de cores.
A figura humana apresenta formas exageradas, grotescas e toscas em situações eróticas e, às vezes, surreais. Tchalê mostra-nos pinturas que subvertem a representação erótica feminina, pois se apresentam em poses sensuais, porém passam desconforto, são repugnantes tanto pelas cores como pelo tratamento masculinizado dado às mulheres, como podemos notar nas prostitutas de “Tele(come)”. Nesta pintura o artista faz um interessante trabalho com os significados que o título pode demonstrar: o uso do telemóvel (o aparelho de celular como é chamado em Cabo Verde), o nome da operadora de celular no país (Telecom) e a finalidade dos serviços para quem liga.
Trata-se de uma pintura de denúncia a procurar desmascarar a representação das classes menos favorecidas que ambientam a Rua da Praia, local de seu ateliê no Mindelo. São prostitutas, contrabandistas, bandidos, pescadores, artistas, loucos e ociosos em cenas do cotidiano, onde depreendemos a busca incessante do pintor em dar visibilidade e escancarar a condição de desigualdade dessa camada de excluídos da sociedade de sua terra.
Segundo Mário Lúcio Sousa, “A pintura de Tchalê é ficção permanente, nua e crua realidade cotidiana. Surrealismo na esquina. Tchalê trouxe um dos mais importantes elementos estéticos da arte caboverdeana do séc. XX: ele cria personagens, (...) mas que têm a virtude de representar toda a gente, de ditadores a mendigos, de proletário (pobretário é um termo do Tchalê) a apaixonado.”
Um novo caminho que mostra a ousadia que também se apresenta em suas contundentes opiniões, que vão desde os rumos indefinidos da arte caboverdiana aos desajustes sociais, passando pelo despreparo dos governantes do país deste importante pintor contemporâneo e na sua inquietante busca em retratar os seus pares. Assim é a obra de Tchalê Figueira.
Imagens:
Rainha do carnaval. Acrílica s/tela. 250 x 150 cm. 2004.
Bem vinda na bicicleta. Acrílica s/tela. 200 x 150 cm. 2004.
Tele (come). Acrílica s/tela. 200 x 150 cm. 2004.
Com um boy na cama. Acrílica s/tela. 200 x 150 cm. 2004.
Este é o meu novo blog. Um espaço criado para comentar algumas das minhas paixões: artes, literatura, cinema, música, teatro... Aqui você encontrará textos sobre as literaturas e artistas africanos de língua portuguesa, muita pintura, rock'n'roll, poesia, filmes e o que mais brotar na mente.
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Riso