domingo, 30 de junho de 2013

Arménio Vieira – MITOgrafias (A Nação)


Arménio Vieira – MITOgrafias
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 233, de 16 de fevereiro de 2012, p. E20.
A voz poética singular de Arménio Vieira revela alguns dos melhores momentos da poesia cabo-verdiana, escorada na ironia fina e surpreendente, no sarcasmo corrosivo, na referência e reverência a toda uma cultura litero-filosófica ocidental estendendo-se às culturas orientais, árabes e do continente americano em busca de uma universalidade plena que demonstra vasta erudição e intenso labor de sua tessitura poética. Um livro de Arménio é deparar-se com um mundo ilimitado de imagens a dialogar, ora de forma explícita, ora de forma implícita, com autores expandindo-se em diferentes formas que vão do hai-kai a prosa poética, passando pela poesia experimental etc.
No livro MITOgrafias, da cabo-verdiana Ilhéu Editora e lançado em 2006, em três cadernos – Canto das graças, Dez poemas mais um (dedicado a João Cabral de Melo Neto) e MITOgrafias (tendo uma parte intitulada “A musa breve de Silvenius, que vai sendo longa”), o poeta renova o seu desmesurado arsenal poético a serviço de um sujeito lírico que navega pelo filosófico, mitológico, político, religioso, entre outras facetas de uma ininterrupta mutabilidade sempre subordinada a um rigor com a palavra poética precisa, exata e depurada. Preocupação estética que se apresenta ironicamente com o fazer poético e as simplórias soluções de colegas das letras e o uso de referências pouco criativas: “Com pauzinhos de fósforo/ podes construir um poema.// Mas atenção: o uso da cola/ estragaria o teu poema”, assim como a crítica a poetas que configuraram estilos na literatura de língua portuguesa, casos de Quevedo e Góngora: “Comparar um poema a um barco/ ou dizer dele que é uma rolha/ à deriva no azul, e, (...)/ sacar daí um texto/ em que os versos, em vez de versos,/ são mastros e velas e remos,/ é anunciar aos peixes que se preparem,/ pois alguém perdeu a bússola/ e um naufrágio é normal que aconteça”.
Uma poesia a serviço da transgressão que subverte os temas comuns da literatura cabo-verdiana como a seca e a chuva, procura no referencial brasileiro cabralino a Severina estética da pedra: “Não há guarda-chuva, João,/ contra o suão que em Setembro/ é uma vespa mordendo/ como se para o martírio/ não bastasse o calor e a secura./ Tão duro é o suão/ que, embora não tenha um som,/ se porventura o tivesse,/ jamais seria o som/ da chuva, que, ainda que molhe/ e mate, nunca mata queimando”.
Atento observador dessa vida “que é ácido e roda dentada”, poeta que jamais fugiu aos enfrentamentos da vida, revela o sujeito lírico que “Eu... sou/ como eu sou. Tenham paciência”. E assim, insubmisso e humanista, ataca a crueldade dos líderes sanguinários que aparecem aos montes em seus poemas: “Robespierre e Adolf Hitler/ se Átila os visse,/ largava a espada/ e fugia a cavalo”; porém, não deixa de ser sarcástico ao valorizar a inventividade poética à violência como o fato do título dar continuidade ao poema em “Apollinaire nas trincheiras” “declarou guerra à vírgula. O kaiser/ declarou guerra aos franceses”.
A dessacralização nas diversas ordens dos mitos greco-latinos, dos referenciais literários e filosóficos até arrancam o riso diante de desmedida ironia, por outro lado causam desconforto surpreendente quando há o mergulho nos mais tenebrosos infernos, visto que “há infernos sérios,/ pavorosos, como o vento, ciclónicos,/ não cabem nos livros, ninguém os pinta”, oriundos do mundo perverso dos homens e que “consta que Cérbero,/ o cão de três cabeças,/ fugiu do Inferno assim que os tipos/ da Gestapo aí entraram”.
A linguagem corrosiva que transfigura os referenciais gregos, como em “Excentricidades gregas”, ainda dá espaço para questões de ordem ontológica e metafísica, como também da religiosidade cristã subvertendo os seus dogmas são exemplos os poemas “A explicação dos deuses” e a onipresença de Deus em “Exercício teológico”.

MITOgrafias apresenta o poeta em estado pleno de maturidade poética, sempre inquietante e renovadora. É um prazer indescritível ler Arménio Vieira.

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