Arménio Vieira – MITOgrafias
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 233, de 16 de
fevereiro de 2012, p. E20.
A voz poética singular de Arménio Vieira revela alguns dos melhores
momentos da poesia cabo-verdiana, escorada na ironia fina e surpreendente, no
sarcasmo corrosivo, na referência e reverência a toda uma cultura litero-filosófica
ocidental estendendo-se às culturas orientais, árabes e do continente americano
em busca de uma universalidade plena que demonstra vasta erudição e intenso
labor de sua tessitura poética. Um livro de Arménio é deparar-se com um mundo
ilimitado de imagens a dialogar, ora de forma explícita, ora de forma
implícita, com autores expandindo-se em diferentes formas que vão do hai-kai a
prosa poética, passando pela poesia experimental etc.
No livro MITOgrafias, da cabo-verdiana Ilhéu Editora e lançado em 2006,
em três cadernos – Canto das graças, Dez poemas mais um (dedicado a João Cabral
de Melo Neto) e MITOgrafias (tendo uma parte intitulada “A musa breve de
Silvenius, que vai sendo longa”), o poeta renova o seu desmesurado arsenal
poético a serviço de um sujeito lírico que navega pelo filosófico, mitológico,
político, religioso, entre outras facetas de uma ininterrupta mutabilidade
sempre subordinada a um rigor com a palavra poética precisa, exata e depurada. Preocupação
estética que se apresenta ironicamente com o fazer poético e as simplórias
soluções de colegas das letras e o uso de referências pouco criativas: “Com
pauzinhos de fósforo/ podes construir um poema.// Mas atenção: o uso da cola/
estragaria o teu poema”, assim como a crítica a poetas que configuraram estilos
na literatura de língua portuguesa, casos de Quevedo e Góngora: “Comparar um
poema a um barco/ ou dizer dele que é uma rolha/ à deriva no azul, e, (...)/
sacar daí um texto/ em que os versos, em vez de versos,/ são mastros e velas e
remos,/ é anunciar aos peixes que se preparem,/ pois alguém perdeu a bússola/ e
um naufrágio é normal que aconteça”.
Uma poesia a serviço da transgressão que subverte os temas comuns da
literatura cabo-verdiana como a seca e a chuva, procura no referencial
brasileiro cabralino a Severina estética da pedra: “Não há guarda-chuva, João,/
contra o suão que em Setembro/ é uma vespa mordendo/ como se para o martírio/
não bastasse o calor e a secura./ Tão duro é o suão/ que, embora não tenha um
som,/ se porventura o tivesse,/ jamais seria o som/ da chuva, que, ainda que
molhe/ e mate, nunca mata queimando”.
Atento observador dessa vida “que é ácido e roda dentada”, poeta que
jamais fugiu aos enfrentamentos da vida, revela o sujeito lírico que “Eu...
sou/ como eu sou. Tenham paciência”. E assim, insubmisso e humanista, ataca a
crueldade dos líderes sanguinários que aparecem aos montes em seus poemas:
“Robespierre e Adolf Hitler/ se Átila os visse,/ largava a espada/ e fugia a
cavalo”; porém, não deixa de ser sarcástico ao valorizar a inventividade
poética à violência como o fato do título dar continuidade ao poema em
“Apollinaire nas trincheiras” “declarou guerra à vírgula. O kaiser/ declarou
guerra aos franceses”.
A dessacralização nas diversas ordens dos mitos greco-latinos, dos referenciais
literários e filosóficos até arrancam o riso diante de desmedida ironia, por
outro lado causam desconforto surpreendente quando há o mergulho nos mais
tenebrosos infernos, visto que “há infernos sérios,/ pavorosos, como o vento,
ciclónicos,/ não cabem nos livros, ninguém os pinta”, oriundos do mundo perverso
dos homens e que “consta que Cérbero,/ o cão de três cabeças,/ fugiu do Inferno
assim que os tipos/ da Gestapo aí entraram”.
A linguagem corrosiva que transfigura os referenciais gregos, como em
“Excentricidades gregas”, ainda dá espaço para questões de ordem ontológica e
metafísica, como também da religiosidade cristã subvertendo os seus
dogmas são exemplos os poemas “A explicação dos deuses” e a onipresença de
Deus em “Exercício teológico”.
MITOgrafias apresenta o poeta em estado pleno de maturidade poética,
sempre inquietante e renovadora. É um prazer indescritível ler Arménio Vieira.
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