Danny Spínola – Do Paraíso dos
Rabelados de Santiago
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 235, de 1 de
março de 2012, p. E13.
João Vário e Timóteo Tio Tiofe, os heterônimos de João Manuel Varela, apresentaram novos paradigmas à poesia cabo-verdiana com a inserção do longo
poema narrativo, metáforas muito bem elaboradas e complexas, o conteúdo
epicizante quando também heroico, assim como questões ontológicas e metafísicas,
características que isolaram Varela de seus pares poéticos como também o fez boa
parte da crítica especializada das literaturas africanas de língua portuguesa,
que em sua sistematização restrita à poesia de resistência não considerou a
obra de Varela como pertinente à formação da literatura cabo-verdiana. Porém,
como frisou Pires Laranjeira, a obra de Varela com seus “Exemplos” é pioneira
na perspectiva de antecipar a universalidade preponderante a partir dos anos
1980 no macrossistema dessas literaturas, fato que o próprio Varela, assinando
como T. T. Tiofe, mencionou como desacertos da crítica e apontou a mudança de
paradigma na poesia de Cabo Verde.
Danny Spínola, pseudônimo de Daniel Euricles Rodrigues Spínola, nascido
na ilha de Santiago, assim como José Luiz Tavares, entre outros, é um poeta
contemporâneo que dialoga com as obras de Vário e Tiofe. Spínola, já com vasta
obra literária e ensaística, debruça-se sobre a sua terra e sobre o homem
cabo-verdiano para fazer deles matéria de sua poesia, conforme apresentado no
poema “Do Paraíso dos Rabelados de Santiago” (pp. 299-306), inserido na
antologia “Destino de Bai”, sob organização de Francisco Fontes.
A respeito dos Rabelados afirma o autor em nota que se trata de
comunidades religiosas de ordem romano-cristã “que se afastaram da Igreja
Católica em 1942, devido aos novos preceitos da igreja, e foram viver isolados
(...) em comunidades dispersas pelo interior da ilha de Santiago. Comungando
uma vida natural, ligada à natureza, vivendo em casas de madeira e colmo, não
aceitando nada que cheirasse à modernidade, foram perseguidos e presos pela
PIDE, acusados de revoltosos políticos que apoiaram Amílcar Cabral”.
Dividido em cinco partes, o poema “Do Paraíso dos Rabelados de Santiago”
apresenta um sujeito lírico a narrar a saga épico-telúrica e heroica desses
filhos “erigidos pela lei da pedra e do vento”, enfatizando a primeira pessoa
do plural quase como anáfora com o uso do verbo “falamos”, ou reforçando a
apresentação desse “punhado de gente, crente” com o uso do advérbio “eis”.
Assim o sujeito lírico valoriza “estes filhos do conflito e da fé”, tanto
religiosa quanto política, “lutando contra o mundanismo e os mosquitos;/ As
pulgas e a modernidade das reluzentes garrafas DDT/ Em uníssono com o estigma
do Graal”. Na fé rebelada “querendo reinventar e reviver, como era no
princípio,/ Os auspícios do verbo e da maçã,/ Negando a intromissão e a
dominação/ Daqueles que dá nação as rédeas detêm”.
A poesia desvela o humanismo comovente em ricas imagens: “Tudo que seja
ouro ou moeda sem carne, ao seu desprezo votam/ Enquanto que o prumo de uma
choupana/ Ou o coração de um bosque à sua sombra/ São hóstias de sol a sol em
suas faces/ São eucaristias de sal nos seus precários pratos”. E tal como
Vário/Tiofe, vale-se da enumeração vasta como característica formal: “Eis os
filhos dos homens revelados/ Com as suas cabanas e seus funcos de cana e de
funchos/ Com os seus corpos tão-só cobertos de algodão e linho/ Com os seus
peitos de acordeão e alcatrão/ Ornamentados de madeira e sisal em cruz/ Com os
seus pés nus, gretados e hirtos, rescindindo a lavas e cinzas/ Com os seus
barros, os seus odres e as suas madeiras utilitárias/ Aguardando impassíveis os
derradeiros sóis dos céus”.
Da fé telúrica, “são esses os poucos cuja voz a natureza, de pássaros e
fonte, entende”; de caráter libertário e reformulador, “lá vão eles inventando
suas mezinhas,/ As suas poções místicas e as suas alquimias”; de sincretismo
religioso, “tementes aos Eclesiástes e aos Provérbios”.
Eis os Rabelados do Paraíso de Santiago em bela e justa homenagem
de Danny Spínola.
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