Mulheres na poesia cabo-verdiana
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação,
n. 239, de 29 de março de 2012, p. E20.
O mês de março configura-se como o de celebração da
mulher, assim como de reflexão das condições adversas de subalternidade por que
passam as mulheres no mundo diariamente, realidade assaz comum em sociedades
regidas pela ética patriarcal-capitalista e de ideologia racial branca como
padrão hegemônico.
Da insistente pertinência e urgência do tema, em
trocas por correspondência eletrônica com a socióloga e poetisa Eurídice
Monteiro, intelectual com destacada presença na defesa dos direitos da mulher
cabo-verdiana, venho desenvolvendo algumas questões acerca da poesia de voz
feminina em Cabo Verde.
Em profunda análise da trajetória das
mulheres-poetisas em Cabo Verde, Monteiro discorre sobre a exclusão social e
literária que essas mulheres sofreram e sofrem ao longo dos anos, conduzindo-as
a fazer do texto literário o espaço para denúncia de suas condições
invisibilizadas ou estigmatizadas pelo cânone do arquipélago.
O texto de Monteiro revela questões impeditivas que
abarcam aspectos culturais, sociais, raciais e de gênero para apresentar a
“imposição da subalternidade do Outro” determinados por três paradoxos, sendo o
primeiro a cultura dominante que ainda se funda em termos europeizantes e
regionalizads, nos quais se destacam o padrão étnico-cultural africanizante
como de suposta inferioridade cultural predominante na ilha de Santiago; o
segundo trata das diferenças entre os espaços urbano e rural; enquanto o
terceiro revela a dialética de inclusão e exclusão das mulheres, em diferentes
combinações de gênero, classe, ou região, estigmatizando diferenças internas de
erotismo e exotismo no coletivo das mulheres das ilhas de S. Vicente e
Santiago.
A partir dessas formulações, Monteiro questiona a
ausência de poetisas no período nativista e na revista Claridade, sendo que
nesta jamais foi publicado texto de qualquer escritora, enquanto naquele a
ensaísta faz um interessante levantamento de poetisas com textos publicados nos
almanaques de lembranças, tendo especial destaque Antónia Gertrudes Pusich,
autora da primeira obra publicada de autoria cabo-verdiana, «Elegia àmemória
das infelizes victimas assassinadas por Francisco de Mattos Lobo» (poemas,
1844), e a primeira mulher a dirigir e fundar jornais.
A ensaísta mostra-se audaciosa ao questionar o cânone
e revelar o sexismo claridoso ao tratar a condição da prostituição nos poemas
de Jorge Barbosa em importante comparação a poemas de Yolanda Morazzo, assim
como a voz poética feminina evocando a participação como sujeito da história em
Vera Duarte e Carlota de Barros, para além da subversão das práticas sexistas
homogenizantes através da apropriação das manifestações culturais e da memória
coletiva. Para isso, menciona-se a importância da tradição oral revista por Nha
Nácia Gomi e sua “ironia mordaz e desafiadora das práticas sociais sexistas”.
Enriquecedores para os interessados na temática são
as propostas comparativas de textos pré e pós-independência e entre gêneros
literários, como Lay Lobo e Maria Helena Spencer; a perspectiva da luta
feminista em Vera Duarte e Dina Salústio; a percepção das vozes diaspóricas e o
deparar-se com as mutações do arquipélago no regresso em Carlota de Barros; e o
especial destaque à Eneida Nelly, jovem poetisa que recentemente deu fim à
vida, como resposta à asfixia vivenciada cotidianamente por uma mulher negra,
pobre e “colocou simultaneamente em debate o acesso desigual ao campo
literário-cultural, entre homens e mulheres de uma dada ilha, bem como entre as
mulheres de diferentes classes sociais ou regiões do arquipélago”, condição
traduzida no sugestivo título de seu único livro: “Sukutam” (Escuta-me).
Trata-se de um ensaio fundamental por chamar atenção
para o fato da marginalização das mulheres na sociedade cabo-verdiana manter-se
desde os tempos coloniais, mas que vem sendo alterado gradativamente por
vozes-mulheres cada vez mais inseridas nas diferentes áreas do saber.
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