Kaoberdiano Dambará
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 243, de 28 de
abril de 2012, p. E14
Raras são as manifestações literárias da afro-crioulidade e da língua
materna na literatura cabo-verdiana entre os nativistas, hesperitanos e
claridosos até a chegada de uma postura mais contestatária dos representantes
da Nova Largada, sendo assinalável para a timidez de tal afirmação a postura
racista, branca e eurocêntrica da colonização portuguesa que sempre procurou
desvalorizar os aspectos culturais da afro-crioulidade e das origens negras
contribuintes para a formação da sociedade cabo-verdiana.
Diante de quadro opressor e de negatividade explícita, favorecido por um
discurso de exaltação à mestiçagem que oculta os traços identitários negros, um
sentimento afro-crioulizante só poderia surgir atrelado a um quadro de ruptura
com a então colônia e de necessária libertação em prol da independência da
nação a ganhar corpo na década de 1940, se torna um processo irreversível nos
anos 1950, com a criação do PAIGC e a idealização da “reafricanização dos espíritos”
de Amílcar Cabral e Manuel Duarte, e atinge o seu auge na década seguinte com
as guerras coloniais iniciadas em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
Nessa perspectiva, é de suma importância para a compreensão da luta
anticolonial o papel exercido pelos escritores que vivenciaram esse período a
leitura da obra de Kaoberdiano Dambará, pseudônimo de Felisberto Vieria Lopes,
nascido em 1937 na ilha de Santiago. Segundo Mario Pinto de Andrade no prefácio
para a Antologia Temática de Poesia Africana – O Canto Armado, vol. 2:
“Kaoberdiano Dambará, que define a revolta para a liberdade, indica claramente
o dever do militante de brandir o ferro no cimo dos montes. Daí o facto de o
PAIGC ter saudado então a poesia do autor de Nóti (edição do PAIGC, 1964) como
‘das mais vigorosas, combativas que jamais se escreveu em língua crioula’”
(1979, p. 13).
Expressiva é a maneira como a defesa do negro, do país e da África livres
apresentam-se em seus poemas, também totalmente compreensível o apoio à
divulgação de sua obra pelo PAIGC, já que os poemas são em língua materna e
incisivos nas suas críticas como demonstram os textos selecionados na antologia
supracitada de Andrade e no vol. 1, intitulado na Noite Grávida de Punhais. O
uso do imperativo mostra o poder de arregimentação para a luta que se trava em
todo o continente: “Ergue-te e caminha filho de África/ ergue-te negro escuta o
clamor do povo: África Justiça Liberdade”.
Sua obra desvela os motivos da falta de união e os conflitos existenciais
do ilhéu a partir da perspectiva racial: “Bo bem di londji / (...) Dikansa no
bem kombersa / xinta bo bem flam,’m ta pidi’u!/ (...) nôs sangui ê kêl um ta
korê na vea./ Ma ê kel: - Branko dja suparano,/ bo ta diskunfia di mi!”. Manifesta
o caráter didático ao revelar o arquétipo do opressor na figura do espantalho
do grande latifundiário: “Na triatu’l Mundo,/ tud’ê forsa’l Distino,/ tud’ê
forsa’l spantadjo:/ Nhôs da ko nho Fifi na tchon,/ spantadjo ta kaba, Distino
ta kaba!
Como também é assinalável a gradação tensa das estrofes rumo ao processo
de conscientização identitária negra e libertária do poema Juramento em
intertextualidade com “O galo cantou na baía” de Manuel Lopes: “galo dja korko
assa;// sê pam sirbi Branko, ma’m krê morê/ probi, sukuro, negro – na bo pé:/
nh’aima ta russussita na floresta.// Nha mai dexam mustura nha sangui/ ko
tromento, ko batuko, ko stribilim:/ Aima di nôs guentis dja labanta di koba!”
Substantivos os poemas dedicados ao grande líder Amílcar Cabral após a
sua morte e a perpetuação de seus ideais para revigorar e inspirar a poesia de
combate, sendo homenageado com as letras de seu sobrenome iniciando cada verso:
“Canto no ôbi, no ka cêta:/ Anôs, nôs sorti ê spantado,/ Bento ki passa na sono,/ Riba’l kórda’l nôs bida,/ Anti kôrda, djê passa;/ Liberdádi ê kaminho kâ dexano!”
A luta pela libertação do país e a valorização do negro cabo-verdiano
como inspiração para a poesia de Kaoberdiano Dambará é a testemunha da utopia
que virou realidade.
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