Canto obscuro da memória
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 283, de 31 de
janeiro de 2013, p. E14
Os agentes das
literaturas africanas de língua portuguesa revisitam fatos, reconstroem
acontecimentos, desvelam personagens rasurados pelos anos de colonização e de
uma história escrita por um discurso hegemônico alheio aos interesses dos
colonizados. Com o advento das independências em meados dos anos 1970, essas
literaturas passaram a desenvolver releituras até então silenciadas nos tempos
de antanho. O direito a significar mencionado por Homi Bhabha passa a ser
exercido e o texto literário transforma-se no espaço para tensionar os
apagamentos do passado, oferecendo a possibilidade do direito à memória àquelas
vozes que deveriam sair da subalternidade.
Evidente que
em uma “nova” ordem a disputa de poder permanece e outras negociações são
realizadas. O ensaísta uruguaio Hugo Achugar destaca que o ato de narrar não é
só para quem quer, mas de quem sabe e possui o direito ao relato, de escolher e
decidir na tensão entre o esquecimento e a memória. Nesse sentido, quando as
instâncias de poder são controladas por homens a voz feminina permanece
excluída. Por isso, que ressaltamos o enorme interesse nas literaturas
produzidas por mulheres, principalmente negras, pois são as vozes que sofrem
maior silenciamento.
A obra poética
da são-tomense Conceição Lima (1961) remexe incômodos do passado, estremece a
inércia do presente, inquieta e pressiona para possibilidades de leituras diversificadas
para o futuro por meio de sua linguagem contradiscursiva. Substanciada na
condição feminina, os poemas de São Lima – como é carinhosamente conhecida –
abordam diversos aspectos que angustiam seus conterrâneos e todos que se
indignam com as injustiças impostas aos negros entre outras minorias. Seu livro
“A dolorosa raiz do Micondó” (2011, 2ª ed.), o 2º de três obras, revela o
quanto a poesia feita com esmero pode surpreender e agraciar aos sentidos
indiferentes. Para isso, destaco o longo poema “Canto obscuro às raízes”.
Neste poema, o
sujeito poético trata com habilidade um drama para os negros da diáspora: a
origem de seus antepassados africanos. Assim, inspira-se na obra do escritor
afro-americano Alex Haley, autor de “Raízes”, que narra a obsessiva recolha
para reconstruir o caminho feito por seu antepassado forçosamente retirado da
África no século XVII e escravizado nos EUA, “que ao olvido dos arquivos/ e à
memória dos griots Mandinga/ resgatou o caminho para Juffure,/ a aldeia de
Kunta Kinte –/ seu último avô africano/ primeiro na América”.
Porém, como
percorrer esse caminho de retorno? Apesar de impor o seu direito à voz, “eu, a
que agora fala”, o sujeito poético transparece a agonia diante da
impossibilidade de reconstruir o percurso de seus antepassados, “não encontrei
em Libreville o caminho para Juffure.// Perdi-me na linearidade das fronteiras”.
Entretanto, ainda que os versos chamem atenção para a incompletude do ser negro,
isso revela a necessidade de negociar a homogeneização autoritária das
narrativas identitárias e das nações que ocultam o passado dos negros
escravizados. É o que Stuart Hall assinala como enormes esforços empreendidos
para a reconstrução das rotas fragmentárias e tornar o invisível visível. “[E]ncontrei
em ti, Libreville, o injusto património a que chamo casa”, revela a memória
fragmentada nessa arena de disputa permanente.
É com a
emergência desses novos atores sociais que a poesia de Conceição Lima contribui
para combater o esquecimento imposto pelo discurso dominante: “Eu, a peregrina
que não encontrou o caminho para Juffure/ Eu, a nómada que regressará sempre a
Juffure”. A insistência do sujeito poético mostra que a impossibilidade de
reconstruir a origem da população negra na diáspora foi fruto do descaso da
elite hegemônica branca. Não medir esforços para resgatar esses trajetos é colaborar
com esse esquecimento imposto, negando histórias plurais ainda silenciadas pela
manutenção da obscuridade das diferenças, tanto no Brasil quanto em Cabo Verde,
Argentina, Cuba, São Tomé e Príncipe...
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