Entrevista de Ricardo Riso para o
jornal “A Capital”, de Luanda, Angola, com a primeira parte publicada no
caderno Artes, de 27 de julho de 2013, pp. 32-34, e a derradeira parte no mesmo
caderno, de 17 de agosto de 2013, pp. 32-33.
Pergunta:- O ministro da Educação de
Angola, Pinda Simão, disse, no dia 10 do corrente mês, na sede da União dos
escritores Angolanos, que Angola ainda está aprofundar a reflexão sobre o
acordo ortográfico que considera positivo, mas que pensa haver aspectos dos
povos de Angola que devem ser tidos em conta e que o acordo poria de parte. O
que tem a comentar sobre este facto?
O novo
acordo ortográfico gerou enorme polêmica aqui no Brasil, muito pela sua
ineficiência e que em nada contribui
para solucionar o problema da educação no país. Trata-se de algo menor diante
de tantas carências que temos e que precisam de soluções emergenciais nas áreas
de saúde e educação. Creio que em Angola seja assim também. Isto é apenas mais
um dado que reflete o total descompasso do brancocentrismo da elite com o
restante da população, assim como a manutenção da dominação pela língua; a
língua como processo de seleção e exclusão. Além disso, há o agravante dos
gastos estratosféricos com as reedições de livros didáticos para que estejam
conforme as novas regras. Enquanto isso, escolas permanecem desaparelhadas e os
professores precisam usar a criatividade para ter condições mínimas de
trabalho.
P:- Será que podemos estar diante de uma
crise sobre a ratificação e implementação do acordo ortográfico na lusofonia?
Precisamos
sim questionar este acordo. Por que temos que falar e escrever da mesma
maneira? Por que a referência/submissão a Portugal? O que é lusofonia? Há
espaço para o negro na lusofonia? A quem interessa? Para que precisamos de um
novo acordo? Não estamos nos comunicando? Precisamos de menos ordens, normas,
obediências e afins.
P:- Como classifica as literaturas
africanas de língua portuguesa?
Toda classificação
é arbitrária e a maneira vaga como foi colocada a pergunta deixa-me em difícil
posição. Penso que podemos problematizar esse grande guarda-chuva denominado
literaturas africanas de língua portuguesa. Ser “tudólogo” em literaturas
africanas exige que escolhas sejam feitas. Sendo assim, começamos a perceber as
exclusões. As literaturas de Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe são as maiores
prejudicadas nesse processo.
Pensando na
Academia, no caso a brasileira, por que não podemos estudar a literatura
angolana, a cabo-verdiana, a moçambicana, a guineense ou a são-tomense, e a
partir daí nos aprofundarmos em cada uma delas? Outra questão: por que somente
as literaturas produzidas em língua portuguesa? Por que esse neocolonialismo
acadêmico? Já que por exigência acadêmica somos obrigados a saber inglês,
francês, espanhol, entre outras línguas europeias, seria interessante que o
pesquisador das literaturas de cada país incorporasse a literatura angolana em
quimbundo, a literatura cabo-verdiana crioula e assim em diante. No caso de
Cabo Verde há uma vasta produção em crioulo que é ignorada pela crítica
brasileira. Por que isto? Penso que é urgente rever esta posição, até como
respeito ao pluralismo linguístico desses países africanos.
P:- Acha que elas estão no mesmo nível de
concepção estético-discursiva, divulgação de livros e autores no Brasil? Se é
que existe essa divulgação na terra do rei pelé?
Dentro das
suas especificidades temporais e históricas, elas têm o seu valor no plano
estético, basta partir para o texto literário. Creio ser desnecessária a
comparação. A respeito da divulgação, muito já foi feito e a Lei 10.639/2003
(obriga o ensino de História e culturas africanas e afro-brasileira em todo a
educação básica) foi um grande estímulo e incentivador para o mercado
editorial, assim como para os professores que passaram a se interessar por
essas temáticas. Há dez anos, chegávamos às livrarias e encontrávamos os livros
de autores africanos em lugares pouco privilegiados. Hoje, temos bancadas ou estantes
sobre assuntos africanos e alguns autores luso-descendentes ocupam posições de
destaque nas vitrines. Importante frisar o trabalho crítico desenvolvido nos
cursos de pós-graduação ao longo dos anos que contribuíram para o
desenvolvimento desse processo. Porém, ainda estamos distantes do que seria uma
boa divulgação de autores africanos, muito em razão da restrição ao reconhecido
cânone luso-descendente do mercado editorial e das universidades. E no caso
angolano, isso é gritante. A pluralidade de autores está longe de ser atingida,
levando em consideração critérios como raça e gênero. Para conhecer outros
autores, é preciso que o pesquisador saia da inércia e se transfigure em um
arqueólogo. Hoje temos o Facebook, revistas como a Literatas e blogs como o de
minha autoria. Buscar outros autores que não constam no cânone estabelecido,
pode trazer surpresas agradáveis.
P: Quais os nomes que mais lhe ressalvam
nesta literatura, tanto na velha como nova gerações?
Creio que
sua pergunta esteja direcionada à literatura angolana. Bom, é importante para o
pesquisador conhecer o sistema literário em sua plenitude. Hoje vejo nos
congressos que participo poucos trabalhos a respeito dos textos fundacionais da
literatura angolana, sinto falta de Cordeiro da Mata, Castro Soromenho...
Necessário olharmos para o passado e resgatarmos nomes que foram ostracizados e
não ficarmos dependentes do cânone. Isso é um ponto essencial para o
investigador. Avançando um pouco no tempo, deparamo-nos com a pouca referência
ao nome de Viriato da Cruz, por exemplo. Lembrando que falo daqui do Brasil. A
geração dos anos 40/50 é essencial. Não falar de literaturas africanas sem
mencionar essa época, em particular, a antologia “Poesia negra de expressão
portuguesa”, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro é
um erro gravíssimo. Tenho especial carinho por esse período. Um texto que gosto
de lembrar e divulgar é o “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu. Um personagem
fascinante!
Com receio
de esquecer algum dos autores atuais, mas já como uma longa trajetória, aprecio
muito e vejo como nomes incontornáveis da poesia Trajanno Nankhova Trajanno,
Lopito Feijoó, João Tala, João Maimona, Conceição Cristóvão, José Luis
Mendonça... na prosa, os contos de Tala, Roderick Nehone, o Carmo Neto de
“Degravata”... dos mais novos, gosto particularmente de Abreu Paxe, inclusive
as análises críticas deste, Akiz Neto, Antonio Pompílio, Pombal Maria, Nok
Nogueira... mas, vejo muita pretensão em outros nomes que não atingem o conseguimento
estético almejado, tornando suas poéticas exaustivas... agora, o gênero é que
fica comprometido na literatura angolana... houve Alda Lara, agora a Paula
Tavares, a Isabel Ferreira... a pouca visibilidade da escrita feminina angolana
é algo que precisa ser tensionado, principalmente na constituição de seu cânone
e de antologias angolanas recentes. Do publicado aqui não preciso dizer, muitos
brasileiros já dizem – ou só dizem – sobre essas obras e autores.
P:- Falando das novas gerações, acredita
que as novas gerações tem pouco ou nada a oferecer a literatura angolana? Até
que ponto está afirmação serve de incentivo aos novos autores angolanos?
Toda nova
geração tem algo a oferecer e o tempo é o melhor filtro. Caso contrário,
pararemos no tempo. O que é necessário é que os jovens literatos leiam, leiam
muito dos grandes nomes espalhados pelo mundo e também conheçam os grandes
autores angolanos. Mas, uma leitura concentrada, assim como o ato da escrita...
sem pressa, estudada... vejo como o maior problema entre os jovens é a rapidez
em publicar. Talvez pela facilidade da internet, o “curtir” do Facebook,
necessidade de visibilidade, status... é um caminho perigoso. A palavra poética
precisa ser lapidada com calma e é essencial a troca com outros autores.
P:- Em Angola temos estado a assistir um
forte conflito de gerações. Até que ponto esse conflito é prejudicial e/ou
ajuda os novos autores?
A literatura
é um espaço de poder, não podemos perder isto de vista. Sendo assim, os
conflitos sempre existirão e serão múltiplos: de tendências literárias, gênero,
classe, raça, etário. Temos que estar atentos às reivindicações dos mais novos.
Há o ímpeto da juventude, que pode ser bom ou ruim, e inserido nisso podem
estar alguns problemas da máquina literária, tais como a dificuldade em
publicar, os prêmios literários viciados, invisibilidade nas tertúlias e
cadernos literários...
P:- Que responsabilidade tem os escritores
de gerações consolidadas na afirmação de
novos autores e/ou gerações?
A
responsabilidade desses autores está presente nas suas obras, nos desafios com
a linguagem e o compromisso com a palavra depurada que cada um se comprometeu;
é responsabilidade sim dos mais novos conhecerem essas obras. É claro que o contato
e o incentivo aos mais novos é sempre um fator relevante, de apoio e
fortalecimento para os mais novos. Penso que é sempre frutífero o convívio
entre os escritores de diversas gerações. Não se deve separá-los ou alimentar
inimizades.
P:- Enquanto isso, cada vez é mais visível
a promoção de autores africanos luso-descendentes. O que se passa? será que há
descriminação na promoção das nossas literaturas a nível de Portugal e Brasil?
Em 2012, eu
e a pesquisadora Geny Ferreira Guimarães (doutoranda em Geografia/UFBA) apresentamos,
na UFOP/Minas Gerais, um exaustivo levantamento de autores africanos de língua
portuguesa publicados no Brasil, intitulado: “Mercado editorial brasileiro:
seus entraves para a aplicação da lei 10.639/2003 e o permanente não reconhecimento
do negro escritor”. Nosso levantamento reuniu 115 livros das literaturas
africanas de língua portuguesa (romance, contos, poesia e infantil) lançados de
1962 a outubro de 2012. Da literatura angolana levantamos 62 livros, sendo que
48 obras são do cânone luso-descendente (Pepetela, Ruy Duarte de Carvalho, José
Eduardo Agualusa, Luandino Vieira e Ondjaki). Ou seja, 77% da literatura
angolana publicada no Brasil durante o período pesquisado resume-se a cinco
autores, quadro ainda mais agravante após 2003, ano da lei 10.639. E não há
como se estranhar este dado? Onde está o escritor negro angolano? Nos catálogos
das editoras brasileiras é que ele não se encontra. Quem racializa a questão? E
a situação só não atinge algo perto do zero porque editoras especializadas em
temáticas afro-brasileiras se preocupam com essa disparidade, casos da Mazza,
Nandyala e Pallas. Por outro lado, hoje temos editoras com forte suporte
financeiro, de divulgação e obras com qualidade gráfica invejável que se
escoram no conceito da lusofonia. Entretanto, a lusofonia nada mais é que a renovação
da discriminação ao negro escritor. Enquanto elas tentam fugir da
estigmatização de autores africanos, eliminam as representações nacionais e
continentais e incorporam um discurso diluído na lusofonia. Essas novas
editoras mantêm a discriminação de raça e de gênero, fato já denunciado
anteriormente pela Drª Laura Cavalcante Padilha (UFF) no seu brilhante artigo
“A diferença interroga o cânone” que, ao se referir à constituição do cânone
das literaturas africanas, cita as antologias “No reino de Caliban” (1975), de
Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban, diz o
seguinte: “Lembrando o fato de que o acervo crítico dessas literaturas se ter
forjado inicialmente fora da África – na Europa e nas Américas, com Portugal e
Brasil à frente –, começo a questionar até que ponto, o cânone ‘consagrado’ por
outras vozes que não as africanas, submeteu-se aos mesmos mecanismos de
dominação e poder que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretudo
se o objeto recortado são questões como de gênero e raça” (2002, p. 164).
Mudamos nesse sentido? De maneira nenhuma e só vamos fortalecendo a exclusão. E
se analisarmos teses, dissertações e comunicações nas universidades e
congressos de literaturas africanas, o que constataremos?
P:- As nossas literaturas africanas de
língua portuguesa, francófonas são estudadas nas universidades brasileiras?
Infelizmente,
desconheço a respeito das francófonas. De uma maneira geral, escritores e/ou
pensadores negros não são traduzidos pelo mercado editorial brasileiro. E
quando não são traduzidos, a circulação desses textos é excessivamente
restrita. Nesse ponto, considero importante a relação mercado
editorial/universidade como forma de práticas de biopoder, o que dificulta a
inserção de novos autores e outras bases epistemológicas nas universidades.
Quando muito, temos casos isolados como o de Chinua Achebe. Um nome reconhecido
no mundo como Wole Soyinka somente teve a sua primeira obra aqui publicada no
ano passado. A íntegra de “Cahiers d’un
retour au pays natal” de Aimé Césaire somente ano passado ganhou uma edição
brasileira. Temos uma obra de Patrick Chamoiseau, de outros negros, mas
dispersas nos catálogos das editoras... Nomes consagrados da luta antirracista
nos EUA, do Harlem Renaissance, da Negritude, afro-americanos de línguas
espanhola, inglesa ou francesa são raríssimos por aqui, assim como de outros
países africanos. Até textos de líderes africanos como Amílcar Cabral, Stevie
Biko e Samora Machel não são reeditados há anos. Ou seja, essas ausências não
são gratuitas. No caso angolano, o livro “Sagrada Esperança”, de Agostinho
Neto, foi lançado em comemoração ao primeiro decênio de Angola independente.
Desde então...
No que diz
respeito às universidades, muito já foi feito nas públicas graças aos esforços
e competência dos nossos professores consagrados que todos nós sabemos seus
nomes. Entretanto, há uma realidade entre os grandes centros universitários de
literaturas africanas de língua portuguesa e outras universidades públicas e
particulares, distantes do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte. Ainda
ocorre certa rejeição às literaturas africanas, quando muito são encaixadas em
“literaturas de expressão portuguesa”. Importante frisar que são raras as
disciplinas de literaturas africanas nas grades de graduação dos cursos de
Letras espalhados pelo país; nos cursos de pós-graduação a situação é um pouco
melhor. Ou seja, já avançamos bastante nesse sentido.
Entretanto,
há outro problema no que diz respeito à circulação da crítica literária
produzida nos países africanos de língua portuguesa. Sinto falta de maior
contato de ensaios críticos de angolanos como Luis Kandjimbo, Francisco Soares
e Abreu Paxe, dos moçambicanos Francisco Noa e Lucilio Manjate, do
cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada e das epístolas de Timóteo Tio Tiofe.
Esse estranho distanciamento reflete-se na crítica produzida no Brasil. Quais
serão os seus motivos?
P:- Quais são os autores mais
referenciados e porque?
As duas
últimas edições do Encontro Internacional de Professores de Literaturas
Africanas (UFRJ, 2007 e UFOP-PUC/MG, 2010) oferecem um bom parâmetro para
percebermos o que vem sendo estudado pelo país. O cânone luso-descendente, e
acrescento o moçambicano Mia Couto, foi predominante nas comunicações. Por
isso, insisto na relação universidades/mercado editorial. A justificativa
cômoda diz que são os autores publicados aqui. Mas, não causa estranheza as
análises críticas concentradas nos escritores luso-descendentes? Estamos
falando de literaturas africanas, e até quando o escritor luso-descendente será
o porta-voz dessas literaturas? O que essa ausência quer dizer? Como há um
desprezo das universidades brasileiras por nossa literatura negra, será que o nosso
pesquisador carrega o seu olhar brancocêntrico para as literaturas africanas e
isso o impede de investigar os textos de autores negros africanos? Com a doença
psíquica do racismo, o pesquisador branco, instruído desde os bancos escolares
a não reconhecer o negro como escritor, ao lidar com as literaturas africanas
percebe-se diante de um dilema que tem dificuldade de resolver, logo, escora-se
naqueles que lhe são fenotipicamente parecidos e ideologicamente próximos.
Talvez por isso o discurso da mestiçagem constante na obra de Mia Couto ofereça
o conforto necessário e seja ovacionado por aqui. A internet facilitou o
contato entre os pesquisadores e os escritores africanos. Podemos ser
independentes ao mercado editorial. Hoje nos relacionamos diretamente com os
autores. Minha trajetória é um exemplo disso. Entre livros e arquivos em pdf,
tenho um pouco mais de duas centenas de títulos de prosa e poesia graças a
generosidade dos escritores, que agradeço a todos. Quem presta um excelente
trabalho para o deslocamento do cânone é a revista moçambicana “Literatas”,
idealizada por jovens autores que perceberam essas restrições e decidiram
encarar a ordem vigente.
No que diz
respeito às pesquisas nas universidades, acompanho com muito interesse as
investigações da Drª Lívia Natália, Dr. Jesiel Oliveira e Dr. José Henrique
Freitas, todos da UFBA, assim como o Dr. Amarino Queiróz (UFRN) e a Drª Ana
Lucia Silva Souza (UNILAB). Esses competentíssimos pesquisadores encontram-se à
margem dos grandes centros e propõem linhas investigativas “incomuns” e
comparativos não estimulados no Sudeste como entre as literaturas africanas e a
literatura negro-brasileira. Além disso, ampliam as discussões ao apresentarem
outras bases epistemológicas, oxigenando as literaturas africanas. Também não
posso esquecer da trajetória pioneira da relação das literaturas africanas com
demais literaturas negras realizadas pela Drª Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-MG)
e Drª Florentina Silva Souza (UFBA). Vejo como a melhor maneira de
homenagearmos nossos principais pesquisadores é com a expansão e a diversidade
nas linhas investigativas, e não a cômoda reprodução do que já é/foi feito com
excelência por eles. Urge a cura do complexo de papagaio residente na maioria
dos jovens doutores e mestres de literaturas africanas no Brasil.
Importante
frisar que a questão de gênero de certa maneira é melhor resolvida. Temos
Paulina Chiziane, Paula Tavares, Isabel Ferreira, Vera Duarte, Dina Salústio,
Odete Costa Semedo, Conceição Lima, entre as contemporâneas... nomes restritos,
mas, e para não me acusarem de essencialista, destaco as ausências de Maria
Helena Sato e Carlota de Barros, duas escritoras cabo-verdianas de grande
valor. Porém, e o negro escritor?
P:- Ricardo Riso é um grande activista de
luta contra o racismo na cultura, especificamente na literatura, há racismo na
literatura brasileira e como vocês combatem esse fenómeno?
Sou apenas
mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista
como a brasileira, que conseguiu não se tornar mais um dado estatístico do
genocídio que afeta a juventude negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido
pelos olhares sociais que vêm em mim os atributos físicos e sexuais, jamais o
intelecutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o mínimo de reflexão;
ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das dificuldades dessa
condição de ser negro nos bancos escolares; ciente dos entraves de ser um
pesquisador negro com temática negra no território hostil que é a universidade
brasileira, da ousadia de deslocar-me de objeto para sujeito, a todo instante
sendo chamado atenção por ostentar um discurso militante, como se essa violenta
censura epistêmica não fosse militante; um negro atento às violências no campo
do simbólico nos meios de comunicação; e, desde sempre, temeroso com a próxima
blitz policial, já que minha cor representa a marca da suspeita. Conforme o
poema de Éle Semog, “Do Ser”: “Sou universalmente negro/ Na ponta deste lápis/
No âmago desta alma// Sou universalmente livre/ Em cada canto/ Desta raça/ Em
cada labirinto desta prisão”. Essas são algumas das questões que passam pelo
cotidiano de um negro inserido na farsa da democracia racial.
Sendo assim,
quando você me pergunta se há racismo na literatura brasileira, eu preciso
dizer que o Brasil republicano, desde sua proclamação, não preocupou-se em
inserir os negros na sociedade, mas sim em como resolver o problema dos negros,
tanto que “intelectuais” da época apostavam em diferentes formas de
embranquecimento da população: pela entrada de imigrantes europeus, pelos
cruzamentos inter-raciais em que o fenótipo do europeu prevaleceria, pela
esterilização compulsória e permanente, pelo abandono à própria sorte dos
negros e sem condições de emprego ou acesso à saúde, ou educação. Os
responsáveis atuaram em múltiplas áreas e até hoje são “nomes respeitáveis do
pensamento nacional”, dentre outros, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da
Cunha, Renato Kehl, Monteiro Lobato, Belizário Penna... A doença psíquica do
racismo é tão forte que Joaquim Batista Lacerda representou o país como
“delegado oficial do Brasil” durante o Universal Races Congress, dentre outros
presentes estavam Franz Boas e W. E. B. Du Bois, em Londres, em 1911, e teve o disparate
de dizer que em menos de um século negros e mestiços desapareceriam da
população brasileira. Bom, essa ideia é tão forte e tão presente entre a nossa
elite que basta olhar para as novelas brasileiras e veremos que esse ideal
ainda é almejado. Ou seja, a literatura brasileira, elitista como é da sua
natureza, não pode ter negros no seu cânone. E assim, embraquecem Machado de
Assis
Sendo assim,
a questão é: o que o leitor angolano conhece da literatura brasileira engloba
algum escritor negro-brasileiro? O que o leitor angolano conhece da literatura
produzida por negros brasileiros? Mudando um pouco o prisma: o pesquisador brasileiro
que estuda a literatura angolana propõe o comparativo com a literatura
negro-brasileira? Ou seja, se dependermos daquilo que é reconhecido como
literatura brasileira, o leitor angolano jamais conhecerá um autor
negro-brasileiro.
As
escritoras e os escritores negros para quebrar esse círculo ininterrupto e
fechado de exclusão atuam com meios próprios para divulgação, distribuição e
formas de atingir o seu público leitor, em sua maioria formado por negros. Sim,
existe um leitor negro que a literatura canônica sempre ignorou, pois não
percebe o negro como consumidor de literatura nem como escritor. A literatura
negro-brasileira visualiza um leitor negro, algo que o cânone jamais conseguiu,
por isso, a insistência de personagens negros subalternizados e estereotipados
nos textos nacionais, o que reflete as posições étnico-raciais no país. Os
autores negros divulgam suas obras nas redes formadas pelos movimentos sociais
negros, na internet através de blogs e redes sociais e assim “traficamos” esses
livros. Hoje temos editoras próprias, mas boa parte das obras ainda são
financiadas pelos próprios autores, as famosas edições de autor. Com o livro
pronto, o escritor vende de forma “artesanal”, ou em espaços específicos como a
“Kitabu – Livraria Negra”, de Heloísa Marconde e Drª Fernanda Felisberto, no
Rio de Janeiro. Outro dado importante para a constituição dessa rede é a
publicação coletiva, frisando que a opção pelo coletivo é oriunda da
dificuldade de aceitação pelas grandes editoras que não querem ter nos seus
catálogos títulos que demonstrem as tensões raciais no Brasil, assim como os
altos custos gráficos que são extremamente pesados para boa parte dos
escritores negros. Nesse sentido, a série “Cadernos Negros” ocupa lugar de
destaque. Desde 1978 que esta série publica negras e negros intercalando poesia
em um ano e no seguinte, contos. Cadernos Negros é um referencial obrigatório
para o escritor e o leitor negro; em Cadernos Negros deparamo-nos com a
diversidade da literatura brasileira. Contudo, apesar de atingir neste ano a
36ª edição, a série ainda enfrenta problemas com a divulgação e distribuição de
seus exemplares, contando com as diferentes redes negras do país e no
estrangeiro. Uma outra ação que merece destaque é o site “Ogum’s Toques”,
coordenado por Guellwaarr Adún e que sou colaborador. A proposta de Ogum’s
Toques é divulgar as literaturas negras no mundo, em qualquer língua.
Literatura que expõe as dificuldades da mulher negra, do homem negro na
diáspora ou em África, estará na Ogum’s Toques. Por um humanismo que contemple
as diferenças conforme proclamava Aimé Césaire, pela pluriversalidade contra as
restrições da universalidade do sul-africano Mogobe Ramose, Ogum’s Toques
representa tudo isso. De suma importância e que não poderia ficar de fora é o
portal “Literafro”, organizado pelo Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG). Neste
portal estão catalogados mais de duzentos autores negro-brasileiros com
biobibliografias, textos críticos e excertos de textos literários.
P:- Quer dizer que o Canone literário no
Brasil é escolhido com base na pigmentação da pele? Quais os grandes autores negros
brasileiros?
Você sabia
que Machado de Assis era negro? Os autores negros não são inseridos no cânone
da literatura brasileira. Os poucos que são aceitos, casos de Machado de Assis,
Cruz e Sousa e Lima Barreto, têm suas vivências de negros completamente
excluídas das análises literárias. São embranquecidos. Convivemos com absurdos
de que Machado não tocava na questão racial e olhava com desdém o processo
abolicionista. Pura mentira e injúria! O olhar atento de Machado ao problema do
negro está presente nos seus romances, contos, crônicas e poemas. O Dr. Eduardo
de Assis Duarte fez uma brilhante pesquisa que redundou no livro “Machado
afro-descendente”, de 2007. Este livro é ignorado pelas universidades
brasileiras. Nele, Duarte demonstra com perspicácia como Machado estava atento
aos problemas do negro antes e depois da abolição. Além disso, há uma
incapacidade da intelectualidade e dos meios de comunicação de admitirem o
nosso maior escritor como negro. No que diz respeito à representação de Machado,
recentemente, a Caixa Econômica Federal divulgou um comercial televiso que o
ator que representava o escritor era branco, quase um caucasiano. Óbvio que as
organizações que formam o movimento social negro protestaram e o comercial
precisou ser refeito e foi novamente ao ar com um Machado negro. Precisava
disso? O que motiva o embranquecimento do escritor? Já Cruz e Sousa sofre(u)
com a doença psíquica do racismo dos críticos literários que insistem na
brancura de sua poesia e ignoram os seus diversos poemas que denunciam o
racismo e o problema do negro. “Emparedado”, “Caveira” estão entre esses
poemas. Chega a ser desonestidade com a obra de Cruz e Sousa falar essas
verdadeiras bobagens. Enquanto Lima Barreto muitas vezes é tratado como o
louco, o bêbado que não sabia escrever. Todas as características do modernismo
brasileiro já estão presentes em sua obra, e ele é considerado um
pré-modernista. Por quê? Mas, Lima Barreto denunciou a hipocrisia da elite
carioca, e a denúncia do racismo é central em textos como “Clara dos Anjos” e
“Recordações do escrivão Isaías Caminha”. Os angolanos conhecem a obra de Lima
Barreto?
Necessário
destacar que o véu branco à frente da crítica brasileira impediu-a de analisar
a ausência do escritor negro e de como a personagem negra era representada na
nossa literatura. Somente a partir da análise de brasilianistas que essas
ausências na literatura brasileira vieram à tona, casos dos pioneiros trabalhos
de Roger Bastide (A poesia afro-brasileira, 1944), Raymond Sayers (O negro na
literatura brasileira, 1958), Gregory Rabassa (O negro na ficção brasileira,
1965) e David Brookshaw apresenta “Raça e Cor na literatura brasileira” em
1983. Por causa desse silenciamento da crítica brasileira, os escritores
negros, principalmente a partir da geração dos anos 1970, passaram a
desenvolver ensaios questionando o cânone literário e a defender a existência
de uma literatura negra no Brasil. Desde então, vários autores sentiram a
necessidade de entrar para a Academia e realizar esse debate nesse espaço de
poder. Conceição Evaristo e Cuti são exemplos de escritores negros que se
tornaram doutores em literatura, aquela na UFF, este na UNICAMP, como forma de
“legitimar” os seus discursos.
Alguns nomes
que posso destacar são os de Luiz Gama, que foi vendido como escravo por seu
pai branco, depois tornou-se poeta, advogado e abolicionista. Ele sim o
verdadeiro “Poeta dos Escravos”. Momentos pioneiros da literatura brasileira
vieram de autores negros: o primeiro romance escrito no Brasil veio de um
negro, Teixeira e Sousa, assim como a primeira mulher a escrever um romance foi
Maria Firmina dos Reis em 1858. Outros nomes marcantes no decorrer do século XX
foram Lino Guedes, Solano Trindade, Eduardo de Oliveira, Oswaldo de Camargo, o
fenômeno Carolina Maria de Jesus que vendeu cem mil exemplares da primeira
edição de “Quarto de despejo” em 1960, posteriormente traduzido para mais de
uma dezena de idiomas. Os angolanos conhecem Carolina Maria de Jesus? Porém, é
a partir dos anos 1970, durante a ditadura e lembrando que abordar o racismo
enquadrava a pessoa na Lei de Segurança Nacional, e no decorrer dos anos 1980
que coletivos negros começam a se rearticular e destacar seus escritores, caso
do Grupo Palmares (Porto Alegre/RS), Gens (Salvador/BA), Garra Suburbana e
Negrícia (Rio de Janeiro), Cadernos Negros e Quilombhoje (São Paulo/SP).
Literatura e movimento social negro atuam lado a lado e na distensão da
ditadura fortalecem organizações como CECAN, MNUCDR, IPCN, SINBA, GTAR e
jornais como Árvore da Palavra, do MNU, Tição, entre outros. Os 90 anos da
Abolição, em 1978, foi uma data marcante nesse processo. Também temos que
considerar as influências e contatos externos: as lutas pelos direitos civis
nos EUA e a descolonização dos países africanos, principalmente os de língua
portugesa, foram eventos motivadores para os negros brasileiros. Há uma aura de
solidariedade negra no Atlântico negro. Assim, nomes como José Craveirinha e
Agostinho Neto influenciaram os autores negros brasileiros e contribuíram no resgate
de África como capital simbólico para nós. Autores marcantes desse processo são
Éle Semog, José Carlos Limeira, Cuti, Jamu Minka, Oliveira Silveira, Adão
Ventura, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, Márcio Barbosa, Jônatas Conceição,
Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Arnaldo Xavier, Edimilson de
Almeida Pereira, Lia Vieira, Ronald Augusto... a partir dos anos 90
consolidam-se Conceição Evaristo, Lande Onawale, Lepê Correia, Cristiane
Sobral, Cidinha da Silva...
P:- Um dos principais produtos da relação
África- Brasil devia ser a cultura. Acha que o Brasil dá a África em igual
proporção ao que a África e países como Angola deram ao Brasil durante séculos,
culturalmente?
Dentro do
nosso processo de rejeição ao passado africano e ao negro brasileiro, tanto que
por aqui transforma-se o que é oriundo da cultura negra em mestiço e assim vira
identidade nacional, caso do samba, e assim naturaliza-se certo desprezo das
políticas culturais voltadas para os países africanos. Quando acontecem, tendem
para a valorização do exótico e das representações estereotipadas. Mas, o que
os angolanos conhecem da cultura negro-brasileira? Há interesse desse
intercâmbio por parte dos angolanos?
P:-Como a África no geral, e Angola em
particular, é vista hoje no Brasil, principalmente pelas Meios de Difusão
Massiva, depois do longo tempo de guerra civil?
A visão de
África de uma forma geral, e de Angola não foge da extrema estereotipia, da
África selvagem que aparece sempre no “Globo Repórter”. Nas escolas temos que
começar pontuando que Angola e outros países falam português, que passaram por
uma guerra de independência, depois civil... é tudo muito raso por aqui. Exceto
os pesquisadores, para a população em geral falar de África ainda é falar de
miséria, fome, guerra...
P:- Porquê que os mídias africanos têm
dificuldade de penetração no Brasil?
Creio que
pelo apontado anteriormente. Não há interesse do Brasil em aproximar-se dos
países africanos. E a maioria dos canais que buscam esse contato com os
africanos são os que lidam com a cultura negra,
P:-Na relação com as antigas colónias
portuguesas, o Brasil supera Portugal, pela influência dos mídias e produtos
culturais como a música, cinema, literatura e televisão, além do poder
económico. Acha que o Brasil tem aproveitado essa hegemonia e superioridade da
melhor forma?
Percebo
práticas neocoloniais que em nada favorecem Angola e Moçambique, por exemplo.
Para além da nefasta ideologia dos canais de televisão que levam os seus
péssimos produtos. Tenham cuidado!
P:- O mundo vive o fenómeno das
manifestações anti-governamentais. Na sua observação o que se está passar?
No caso
brasileiro, vejo sobretudo a explosão de uma profunda crise de representação
partidária e de movimentos sindicais. Após longo silenciamento, o Padrão Fifa
estimulou a população a analisar a falta desse padrão nos transportes, na
saúde, na educação, nos serviços como saneamento... percebeu o excesso de ordem
ao qual estamos submetidos e quase nada em troca. Um pouco de desordem faz bem
à saúde democrática, ainda tão fragilizada no país. Chama atenção a
heterogeneidade de reivindicações, cenário normal diante de tantos absurdos e
governança voltada para a elite. E as pautas negras estão inseridas nesse
processo, dentre tantas necessidades urgentes, temos como maior preocupação o
genocídio da juventude negra. Os índices só aumentam com o passar dos anos e
vários meninos são mortos pela Polícia Militar sem nenhum motivo aparente. A
triste realidade dos negrotérios, neologismo de Éle Semog, é algo que precisa terminar.
Porém, matar negros não causa indignação à população nem vira notícia de
televisão ou primeira capa de jornal. É algo natural.
P:-Esta é apenas uma questão de desigualdade
social. Ou uma mudança progressiva na relação social ao nível do mundo?
No Brasil é
um problema racial que a esquerda política jamais quis participar. Em relação
ao mundo, o modelo neoliberal já mostrou o seu esgotamento e a ampliação
descarada das desigualdades. Por isso, a urgência dos conflitos e
manifestações.
P:- Quando restam grandes desigualdades sociais
e desafios culturais dos países lusófonos, como caracteriza a sociedade
brasileira hoje?
Com uma
dificuldade imensa de encarar os seus problemas e em apresentar solucões. Reina
a histeria e a hipocrisia na defesa de privilégios enraizados desde o tempo
colonial. Ações afirmativas para negros, bolsas-família, novos direitos
trabalhistas para empregadas domésticas são alvos de intensa campanha contrária
e insatisfação das classes abastadas.
P:- Ricardo Riso, tanto quanto soubemos os
negros no Brasil e América tem sido descriminados e até hoje há grandes
dificuldades de inserção social. Quais as estratégias que vocês tem para
inverter a situação? Pode nos falar das ideias pan-americanistas hoje? O que a
África precisa de ouvir de vós?
W. E. B. Du
Bois no sermão “Sobre as nossas lutas espirituais”, no seu imprescindível “As
almas da gente negra”, aponta para o problema de “ser negro e americano sem ser
amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da Oportunidade
brutalmente batidas na cara”. Nós, afro-americanos, ainda avançamos para a
construção de um diálogo pan-americano. O problema do racismo é mundial, atravessa
espaços e o tempo, por isso, é pertinente quando o historiador cubano Carlos
Moore fala do protorracismo, das origens dos enfrentamentos raciais entre
melanodermos e leucodermos na antiguidade e como isso foi crescendo no decorrer
dos séculos. Não sinto-me confortável para dizer algo aos angolanos e/ou
africanos no sentido de soluções. O que precisamos é de aproximação, de
cooperação, do resgate e atualização de uma luta pan-africana antirracista.