O escritor e ensaísta cabo-verdiano José Luís Hopffer Almada possui uma coluna, de extremo interesse para os estudantes das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, sobre a literatura de seu país no jornal on line Liberal. Abaixo, segue o endereço:
http://www.liberal-caboverde.com/search/search.asp?idautor=154&autorName=José%20Hopffer%20Almada&SearchType=0&SearchLocal=0&SearchRange=3&IdSeccao=0
Riso
Um espaço dedicado à literatura negro-brasileira, às literaturas africanas de língua portuguesa e demais literaturas negro-diaspóricas
sexta-feira, 28 de março de 2008
quinta-feira, 27 de março de 2008
Pepetela: entrevista
http://www.portaldaliteratura.com/entrevistas.php?id=18
FOLHEANDO COM
Pepetela
26-03-2008
Nasceu em Angola, licenciou-se em Sociologia, foi guerrilheiro, político, ganhou o Prémio Camões em 1997, é actualmente professor na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. Falamos naturalmente de Pepetela a quem tivemos o prazer de entrevistar.
«E os bairros estavam vazios. Pensei, terá havido um festival de música, única razão levando toda a gente para fora dos bairros? Ou um culto monstro de uma igreja que oferece todas as curas? Nunca um fenómeno assim acontecera, bairros inteiros desertos, sem sequer um bebé, com viaturas pelos cantos, algumas de portas abertas. Devia ser outra coisa. E nada boa, disse o meu coração apertado.»
A ideia de sobrevivência a um holocausto, tema do livro, pode ser vista como uma simples ficção ou como um sério aviso para os actuais caminhos da humanidade?
Digamos que é uma ficção, e era isso que queria fazer, uma ficção onde me sentisse livre de inventar o que me desse na gana. Mas como sou um cidadão preocupado com os rumos do Mundo, é evidente que essas preocupações aparecem. Pode ser tomado também como um aviso para as consequências das brincadeiras que nos permitimos fazer com o ambiente.
«Estava mais que provado não ser possível construir uma população a partir de um par original, sem contributos de genes externos, a ciência contrariando as crenças bíblicas de um Adão e Eva serem antepassados únicos de toda a humanidade.»
Ao lermos o livro ficámos sempre com a sensação de uma clara intolerância às crenças religiosas, que de resto justifica. Porém, um dos personagens é um quimbanda (feiticeiro) por quem o narrador tem sempre uma visível tolerância, atribuindo-lhe até conhecimentos ancestrais capazes de o fazerem adivinhar uma gravidez. Não haverá alguma condescendência da sua parte em relação a estes feiticeiros?
Não acho haver intolerância em relação a crenças religiosas, que respeito. Sou intolerante em relação às intolerâncias, o que é diferente. E por que não ter alguma simpatia por práticas ancestrais em que tantos do meu povo acreditam? Não é por aí que vem grande mal ao Mundo…
«Uma civilização desenvolve-se até poder fabricar as armas capazes de a destruir, tal é o seu destino.»
Estará o ser humano irremediavelmente perdido? O que podemos fazer para contrariar este vaticínio?
Perdido não estará irremediavelmente. Mas tem de aprender a usar o enorme poder que tem entre mãos e, sobretudo, a dominar os seus apetites e arrogâncias. Alguma humildade só lhe faria bem.
O leitor vai certamente surpreender-se com a explicação para o quase fim do mundo. A sensação que se tem, quando se acaba de ler o livro, é que o escritor se vai preparar para continuar a história. Como é que a nova humanidade se vai desenvolver, de quem serão as crianças que vão nascer, como é que se compatibilizarão mentalidades tão diferentes como o da Dona Geny, o de Riek ou o de Ísis, ou o do estranho Jan Dippenaar. O Pepetela já terá certamente imaginado, ainda que superficialmente, no que poderia vir a acontecer. Há a possibilidade de retomar o tema?
De facto, já disse que esse livro podia ter outras tantas páginas. A estória pediu-me para terminar ali e eu fiz-lhe a vontade. Mas é evidente que dava para continuar. Até chegarmos a uma nova civilização que se destruísse. Mas não tenho a intenção de retomar o tema, embora nunca diga de uma forma definitiva. Quem sabe?
Que diferença há entre o Pepetela que escreve Predadores e o Pepetela que escreve O Quase Fim do Mundo?
Os livros são diferentes, como devem ser todos os livros de todos os autores. O tema é outro, até mesmo o cenário. Mas, provavelmente, haverá uma mesma preocupação de fundo, o destino das pessoas.
Quais têm sido as suas principais referências literárias? Que livro leu ultimamente que mais o tenha impressionado?
Há muito variadas. Na minha juventude foi a literatura brasileira e a norte-americana, com excursões sérias pela francesa, italiana e russa. Mais tarde fui encontrando outros. Ultimamente, um autor que me impressionou muito e de quem já li praticamente toda a obra foi Phillip Roth.
Sabemos que faz parte da União dos Escritores Angolanos. Gostaríamos que resumisse para o Portal a situação actual da literatura angolana, os valores que vão despontando e, finalmente, o que pensa do acordo linguístico recentemente assinado.
A literatura angolana ainda não se afirmou como poderia. Houve períodos em que até era difícil publicar no país e os jovens tinham poucos hábitos de leitura. Isso reflecte-se na actualidade, em que têm aparecido poucos escritores jovens que se afirmam. Um problema sério é o fraco domínio que têm da língua portuguesa, pela fraca qualidade de ensino que enfrentamos. Há talentos, há estórias, muita criatividade, mas por vezes falta a ferramenta linguística ou os apoios necessários ao começo. Mas penso que a literatura se vai desenvolvendo progressivamente.
Quanto ao acordo ortográfico, acho que se está a discutir muito sobre pouco. Ou era um acordo radical, que unificaria de facto a grafia (e só isso) ou então não valeria a pena mexer. Nunca ouvi de alguém não ter conseguido ler um livro brasileiro porque tem tremas ou certas consoantes que caíram no meio das palavras. O importante seria os governos porem-se de acordo para, de uma vez por todas, acertarem uma política comum de desenvolvimento e promoção da língua portuguesa. Isso sim, seria importante.
FOLHEANDO COM
Pepetela
26-03-2008
Nasceu em Angola, licenciou-se em Sociologia, foi guerrilheiro, político, ganhou o Prémio Camões em 1997, é actualmente professor na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. Falamos naturalmente de Pepetela a quem tivemos o prazer de entrevistar.
«E os bairros estavam vazios. Pensei, terá havido um festival de música, única razão levando toda a gente para fora dos bairros? Ou um culto monstro de uma igreja que oferece todas as curas? Nunca um fenómeno assim acontecera, bairros inteiros desertos, sem sequer um bebé, com viaturas pelos cantos, algumas de portas abertas. Devia ser outra coisa. E nada boa, disse o meu coração apertado.»
A ideia de sobrevivência a um holocausto, tema do livro, pode ser vista como uma simples ficção ou como um sério aviso para os actuais caminhos da humanidade?
Digamos que é uma ficção, e era isso que queria fazer, uma ficção onde me sentisse livre de inventar o que me desse na gana. Mas como sou um cidadão preocupado com os rumos do Mundo, é evidente que essas preocupações aparecem. Pode ser tomado também como um aviso para as consequências das brincadeiras que nos permitimos fazer com o ambiente.
«Estava mais que provado não ser possível construir uma população a partir de um par original, sem contributos de genes externos, a ciência contrariando as crenças bíblicas de um Adão e Eva serem antepassados únicos de toda a humanidade.»
Ao lermos o livro ficámos sempre com a sensação de uma clara intolerância às crenças religiosas, que de resto justifica. Porém, um dos personagens é um quimbanda (feiticeiro) por quem o narrador tem sempre uma visível tolerância, atribuindo-lhe até conhecimentos ancestrais capazes de o fazerem adivinhar uma gravidez. Não haverá alguma condescendência da sua parte em relação a estes feiticeiros?
Não acho haver intolerância em relação a crenças religiosas, que respeito. Sou intolerante em relação às intolerâncias, o que é diferente. E por que não ter alguma simpatia por práticas ancestrais em que tantos do meu povo acreditam? Não é por aí que vem grande mal ao Mundo…
«Uma civilização desenvolve-se até poder fabricar as armas capazes de a destruir, tal é o seu destino.»
Estará o ser humano irremediavelmente perdido? O que podemos fazer para contrariar este vaticínio?
Perdido não estará irremediavelmente. Mas tem de aprender a usar o enorme poder que tem entre mãos e, sobretudo, a dominar os seus apetites e arrogâncias. Alguma humildade só lhe faria bem.
O leitor vai certamente surpreender-se com a explicação para o quase fim do mundo. A sensação que se tem, quando se acaba de ler o livro, é que o escritor se vai preparar para continuar a história. Como é que a nova humanidade se vai desenvolver, de quem serão as crianças que vão nascer, como é que se compatibilizarão mentalidades tão diferentes como o da Dona Geny, o de Riek ou o de Ísis, ou o do estranho Jan Dippenaar. O Pepetela já terá certamente imaginado, ainda que superficialmente, no que poderia vir a acontecer. Há a possibilidade de retomar o tema?
De facto, já disse que esse livro podia ter outras tantas páginas. A estória pediu-me para terminar ali e eu fiz-lhe a vontade. Mas é evidente que dava para continuar. Até chegarmos a uma nova civilização que se destruísse. Mas não tenho a intenção de retomar o tema, embora nunca diga de uma forma definitiva. Quem sabe?
Que diferença há entre o Pepetela que escreve Predadores e o Pepetela que escreve O Quase Fim do Mundo?
Os livros são diferentes, como devem ser todos os livros de todos os autores. O tema é outro, até mesmo o cenário. Mas, provavelmente, haverá uma mesma preocupação de fundo, o destino das pessoas.
Quais têm sido as suas principais referências literárias? Que livro leu ultimamente que mais o tenha impressionado?
Há muito variadas. Na minha juventude foi a literatura brasileira e a norte-americana, com excursões sérias pela francesa, italiana e russa. Mais tarde fui encontrando outros. Ultimamente, um autor que me impressionou muito e de quem já li praticamente toda a obra foi Phillip Roth.
Sabemos que faz parte da União dos Escritores Angolanos. Gostaríamos que resumisse para o Portal a situação actual da literatura angolana, os valores que vão despontando e, finalmente, o que pensa do acordo linguístico recentemente assinado.
A literatura angolana ainda não se afirmou como poderia. Houve períodos em que até era difícil publicar no país e os jovens tinham poucos hábitos de leitura. Isso reflecte-se na actualidade, em que têm aparecido poucos escritores jovens que se afirmam. Um problema sério é o fraco domínio que têm da língua portuguesa, pela fraca qualidade de ensino que enfrentamos. Há talentos, há estórias, muita criatividade, mas por vezes falta a ferramenta linguística ou os apoios necessários ao começo. Mas penso que a literatura se vai desenvolvendo progressivamente.
Quanto ao acordo ortográfico, acho que se está a discutir muito sobre pouco. Ou era um acordo radical, que unificaria de facto a grafia (e só isso) ou então não valeria a pena mexer. Nunca ouvi de alguém não ter conseguido ler um livro brasileiro porque tem tremas ou certas consoantes que caíram no meio das palavras. O importante seria os governos porem-se de acordo para, de uma vez por todas, acertarem uma política comum de desenvolvimento e promoção da língua portuguesa. Isso sim, seria importante.
quarta-feira, 19 de março de 2008
Novos lançamentos
O caderno Idéias, do Jornal do Brasil, de 15 de março de 2008, em sua página I5, informa futuros lançamentos de livros de autores africanos de língua portuguesa:
Mia Couto comparece com dois inéditos por aqui: O fio das missangas e O gato e o escuro, ambos pela Companhia das Letras. A Escrituras publicará O osso côncavo & outros poemas, de Luís Carlos Patraquim. Já a Língua Geral soltará no mercado Sodoma divinizada, organizada por Zetho Cunha Gonçalves; Estação das chuvas, de José Eduardo Agualusa; Chovem amores na rua do matador, de José Eduardo Agualusa e Mia Couto; e Predadores, de Pepetela.
Aguardaremos!
Abraço,
Riso
*Agradecimento especial à Profa. Marta Faraco (UNESA) por me entregar uma cópia do jornal.
Mia Couto comparece com dois inéditos por aqui: O fio das missangas e O gato e o escuro, ambos pela Companhia das Letras. A Escrituras publicará O osso côncavo & outros poemas, de Luís Carlos Patraquim. Já a Língua Geral soltará no mercado Sodoma divinizada, organizada por Zetho Cunha Gonçalves; Estação das chuvas, de José Eduardo Agualusa; Chovem amores na rua do matador, de José Eduardo Agualusa e Mia Couto; e Predadores, de Pepetela.
Aguardaremos!
Abraço,
Riso
*Agradecimento especial à Profa. Marta Faraco (UNESA) por me entregar uma cópia do jornal.
terça-feira, 18 de março de 2008
Eduardo White: Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave
Eduardo White é poeta moçambicano. Em sua poesia veremos uma linguagem poética que será levada pelo vôo onírico em questões existenciais, filosóficas e metapoéticas, ou como lembra Mia Couto, o poeta segue a tradição de que a "poesia lírica sempre arriscou em Moçambique" (WHITE, 1992, pp. 9). Essas questões são retomadas pela literatura moçambicana a partir dos anos 1980, com o país independente, porém, arrasado pela guerra de desestabilização realizada entre a Frelimo (partido que liderou a independência do país) e a Renamo (partido apoiado pela Rodésia e África do Sul).
Diante da situação de asfixia de séculos de colonização portuguesa e a posterior libertação de Moçambique, a poesia, principalmente nas décadas de 1960-1970, era engajada, política, doutrinária, não havendo espaço para questões existenciais e metapoéticas, que só seriam retomadas no raiar dos anos 1980 com Luís Carlos Patraquim (Monção) e Mia Couto (Raiz do orvalho), e a seguir pela geração da revista Charrua (1984), da qual Eduardo White é contemporâneo.
Selecionei alguns poucos poemas de raríssima beleza do livro Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave (Lisboa: Caminho, 1992). Ao prefaciar a obra, Mia Couto aponta para a relevância da poesia de White diante de um momento delicado pelo qual passava o país, dilacerado e desgastado por tantos anos de uma fratricida guerra:
"Aqui está uma poesia fortemente embrenhada nos conflitos do seus tempo, empenhada com a alma moçambicana. Talvez a abundância da morte, a irracionalidade da tragédia moçambicana alimentem, pela negativa, os versos de Eduardo White. Porque há nestes textos fôlego de esperança que só os magos e adivinhos pressentem. Num mundo de caos e violência é preciso cuidar das palavras como se, no seu ventre, elas trouxessem o núcleo prenunciador de um outro mundo. (...)
Tudo nesta escrita quer voar. A pedra, o fogo, a casa. Porque estes versos sugerem um ritual de iniciação ao belo, uma reaprendizagem do fascínio. O poema confirma: sonhar é uma imitação do voo. Só o verso alcança a harmonia que supera os contrários - a condição de sermos terra e a aspiração do eterno etéreo. (...) O poeta vai a pedra e lhe concede a respiração. Toca no fogo e lhe empresta a febre da água. Magia de quem recusa a condição terrestre, ilusão da eternidade: as aves não envelhecem. Tradutor de uma caligrafia celestial, essa que só a pluma da asa pode redigir, Eduardo White reinventa as imensas paisagens do seu país, a geografia da ternura que só os pássaros sabem percorrer.
Eduardo não escreve sobre aves. Escreve em aves." (WHITE, 1992, pp. 9-10)
Espero que gostem.
Riso
----------------------------x----------------------------
Não faz mal.
Voar é uma dádiva da poesia.
Um verso arde na brancura aérea do papel,
toma balanço,
não resiste.
Solta-se-lhe
o animal alado.
Voa sobre as casas,
sobre as ruas,
sobre os homens que passam,
procura um pássaro
para acasalar.
Sílaba a sílaba
o verso voa.
E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca o iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado pousar, partido com ele. Estará o verso connosco? Provavelmente apenas a parte que nos coube. Aquietemo-nos. Amainemo-nos esse desejo de o prendermos.
Não é justo um pássaro
onde ele não pode voar.
(p. 22)
Vou mostrar-vos de outra maneira toda a substância desta mania. Um pássaro bebe nu na minha boca e em vão vai querer saber que álcool o comove com tanta frescura. Primeiro pia, limpa as asas robusta ainda húmidas da saliva e depois canta e ferve e sua, e num minuto já todo o corpo lhe estrebucha. Chama por mim. São muito velozes e bruscas as suas tonturas e eu face a isso pergunto-vos por que terá vindo nu um pássaro a beber à minha boca? Que esplendor ou embriaguez ele procura? Que obscuros dons, que vocação, que loucura?
Vamos, entremos agora no mistério onde o poema nos vigia, rente ao murmúrio para que a alegria não retina e podem ver ao fundo, ali, um estábulo onde as palavras se abrigam, acolá, um bebedouro onde a memória bebe, os restos de feno, dois tipos que trabalham em pleno escuro e já visível a farma, a terra em uso. Estão aqui os instrumentos, os moldes da mania de que vos falei há bocado.
Voemos.
Voar não é senão essa ilusão,
fazê-la possível. Tê-la vivendo.
Voar é estender as mãos
a esse desejo que nos dói
como um punhal insurgente.
(p. 26)
Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.
Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.
Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.
Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.
(p. 28)
Por exemplo, o fogo.
O fogo estabelece o seu trabalho,
a sua centígrada destreza para arder.
E não sei se notaste
que na digital matriz das suas febres
o fogo opõe-se,
insubmisso,
a morrer.
Arde como se definitivo
e quando assim sucede tende a crescer,
busca aquela leveza das altas labaredas,
a implícita tontura das fagulhas.
O fogo arde como se quisesse fugir do chão,
das suas cavernas metalúrgicas,
ascende ao impulso dos foguetões,
à infância astral, à casa solar.
O fogo entristece, por vezes.
Chora inflamável na sua fatalidade terrestre
a estranha e lenhosa prisão
que o prende e embrutece.
Quer voar,
quer a sua ancestral condição de estrela
mas na corrida espacial com que o fogo queima,
na perpétua evasão,
a gula intestina-o
à sua pressa.
(p. 19)
Diante da situação de asfixia de séculos de colonização portuguesa e a posterior libertação de Moçambique, a poesia, principalmente nas décadas de 1960-1970, era engajada, política, doutrinária, não havendo espaço para questões existenciais e metapoéticas, que só seriam retomadas no raiar dos anos 1980 com Luís Carlos Patraquim (Monção) e Mia Couto (Raiz do orvalho), e a seguir pela geração da revista Charrua (1984), da qual Eduardo White é contemporâneo.
Selecionei alguns poucos poemas de raríssima beleza do livro Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave (Lisboa: Caminho, 1992). Ao prefaciar a obra, Mia Couto aponta para a relevância da poesia de White diante de um momento delicado pelo qual passava o país, dilacerado e desgastado por tantos anos de uma fratricida guerra:
"Aqui está uma poesia fortemente embrenhada nos conflitos do seus tempo, empenhada com a alma moçambicana. Talvez a abundância da morte, a irracionalidade da tragédia moçambicana alimentem, pela negativa, os versos de Eduardo White. Porque há nestes textos fôlego de esperança que só os magos e adivinhos pressentem. Num mundo de caos e violência é preciso cuidar das palavras como se, no seu ventre, elas trouxessem o núcleo prenunciador de um outro mundo. (...)
Tudo nesta escrita quer voar. A pedra, o fogo, a casa. Porque estes versos sugerem um ritual de iniciação ao belo, uma reaprendizagem do fascínio. O poema confirma: sonhar é uma imitação do voo. Só o verso alcança a harmonia que supera os contrários - a condição de sermos terra e a aspiração do eterno etéreo. (...) O poeta vai a pedra e lhe concede a respiração. Toca no fogo e lhe empresta a febre da água. Magia de quem recusa a condição terrestre, ilusão da eternidade: as aves não envelhecem. Tradutor de uma caligrafia celestial, essa que só a pluma da asa pode redigir, Eduardo White reinventa as imensas paisagens do seu país, a geografia da ternura que só os pássaros sabem percorrer.
Eduardo não escreve sobre aves. Escreve em aves." (WHITE, 1992, pp. 9-10)
Espero que gostem.
Riso
----------------------------x----------------------------
Não faz mal.
Voar é uma dádiva da poesia.
Um verso arde na brancura aérea do papel,
toma balanço,
não resiste.
Solta-se-lhe
o animal alado.
Voa sobre as casas,
sobre as ruas,
sobre os homens que passam,
procura um pássaro
para acasalar.
Sílaba a sílaba
o verso voa.
E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca o iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado pousar, partido com ele. Estará o verso connosco? Provavelmente apenas a parte que nos coube. Aquietemo-nos. Amainemo-nos esse desejo de o prendermos.
Não é justo um pássaro
onde ele não pode voar.
(p. 22)
Vou mostrar-vos de outra maneira toda a substância desta mania. Um pássaro bebe nu na minha boca e em vão vai querer saber que álcool o comove com tanta frescura. Primeiro pia, limpa as asas robusta ainda húmidas da saliva e depois canta e ferve e sua, e num minuto já todo o corpo lhe estrebucha. Chama por mim. São muito velozes e bruscas as suas tonturas e eu face a isso pergunto-vos por que terá vindo nu um pássaro a beber à minha boca? Que esplendor ou embriaguez ele procura? Que obscuros dons, que vocação, que loucura?
Vamos, entremos agora no mistério onde o poema nos vigia, rente ao murmúrio para que a alegria não retina e podem ver ao fundo, ali, um estábulo onde as palavras se abrigam, acolá, um bebedouro onde a memória bebe, os restos de feno, dois tipos que trabalham em pleno escuro e já visível a farma, a terra em uso. Estão aqui os instrumentos, os moldes da mania de que vos falei há bocado.
Voemos.
Voar não é senão essa ilusão,
fazê-la possível. Tê-la vivendo.
Voar é estender as mãos
a esse desejo que nos dói
como um punhal insurgente.
(p. 26)
Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.
Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.
Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.
Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.
(p. 28)
Por exemplo, o fogo.
O fogo estabelece o seu trabalho,
a sua centígrada destreza para arder.
E não sei se notaste
que na digital matriz das suas febres
o fogo opõe-se,
insubmisso,
a morrer.
Arde como se definitivo
e quando assim sucede tende a crescer,
busca aquela leveza das altas labaredas,
a implícita tontura das fagulhas.
O fogo arde como se quisesse fugir do chão,
das suas cavernas metalúrgicas,
ascende ao impulso dos foguetões,
à infância astral, à casa solar.
O fogo entristece, por vezes.
Chora inflamável na sua fatalidade terrestre
a estranha e lenhosa prisão
que o prende e embrutece.
Quer voar,
quer a sua ancestral condição de estrela
mas na corrida espacial com que o fogo queima,
na perpétua evasão,
a gula intestina-o
à sua pressa.
(p. 19)
quinta-feira, 13 de março de 2008
Mia Couto: Três fantasmas mudos para um orador luso-afónico
O orador avisado faz uso de toda a estratégia para considerar o tema da palestra como sendo do domínio do impossível. Neste caso, sucedeu o inverso: o tema é que tornou impossível o orador. Identidade, língua, marcas culturais: são três fantasmas partilhando a mesma cama. E quando se entra no quarto, acreditando surpreendê-los em flagrante delito eis que descobrimos que não há cama, nem quarto, nem amantes.
Corremos o risco de somar aos três anunciados fantasmas um outro inesperado. Esse outro fantasma sou eu mesmo. Venho de longe, para muitos de vocês sou um escritor desconhecido. Sou moçambicano e Moçambique é do domínio das miragens. Tenho uma pronúncia que, aos ouvidos da maioria dos brasileiros, me atira para a identidade de um “português”.
O mais fácil, pensei eu, seria começar por desvanecer o meu estatuto fantasmagórico. E é isso que tentarei fazer. Irei falar não de mim, mas da língua portuguesa em Moçambique, da errante identidade de uma literatura moçambicana e de marcas culturais brasileiras em sucessivas gerações de escritores moçambicanos.
O centro da minha intervenção, porém, será a questão da identidade. Ou das identidades no plural. Escolhi falar deste tópico exactamente porque as identidades não são faláveis. Elas são esquivas, fortuitas, inventadas. As identidades não são nomes. São verbos que se enunciam sempre no futuro. Recorro a um provérbio dos macuas, um povo do norte de Moçambique. E o provérbio diz assim:
Não fales sobre Deus porque Deus é como o ovo. Se apertas muito ele quebra; se não agarras bem ele cai.
A mesma condição volátil contamina o tema da nossa conversa de hoje.
A alguns de vocês terão visto o filme de Vítor Lopes sobre a Língua Portuguesa onde aparecem João Ubaldo, José Saramago, Martinho da Vila e outros. Quando dei o depoimento para este filme eu estava na Ilha da Inhaca, onde durante anos trabalhei como biólogo na Estação de Biologia da Universidade Eduardo Mondlane. (não só escritor, também sou uma pessoa séria...) Pois nessa ilha passou-se o seguinte (fala de improviso):
Certa vez eu estava no cais de saída para a capital quando vi chegar, num outro barco, que eu conhecera em Nápoles, um apaixonado pela África que vinha pela primeira vez a Moçambique. Ele não sabia uma palavra de português e viajava por sua conta para a ilha de Inhaca, durante a minha ausência. Na despedida, ele a si mesmo se consolou: “pois nós os italianos falamos muito com as mãos, vocês aqui também usam muito gesto, eu lá me entenderei...”
O homem ficou por lá uma semana, regressou a Maputo, feliz e gratificado por ter conseguido um entendimento pleno. Mais tarde, eu lá fui para a ilha, para a Estação de Biologia onde eu trabalhava. Cruzei com um velho funcionário, perseguido pelo italiano e, logo, veio a inesperada observação: “esse homem não tem juízo completo”. O que se passara? Pois, logo numa primeira conversa um grupo de ilhéus quis saber do italiano se ele tinha filhos. A resposta afirmativa foi reforçada com gestos para assinalar os tamanhos de seus rebentos. E aqui sucedeu o mal entendido. O italiano marcou a altura dos filhos com um gesto que, ali, na ilha era quase uma obscenidade. Qualquer europeu fazia o mesmo: estenderia a mão, paralela ao chão. Mas nos códigos locais, a mão plana, bem aberta, indica um objecto inanimado, um morto sem ligação afectiva. A mão curva, fechada e virada para cima indica o tamanho de quem está crescendo, de uma criança em trânsito para ser adulto. Que raio de pai era aquele europeu que falava assim dos seus próprios filhos?
Recordei-me deste episódio porque a identidade é como o tamanho da criança: está em trânsito, não pode ser capturada em gesto, nem em palavras.
Afinal, na pequena história que evoquei todos estão com a razão. Está certo o gesto do italiano. Na lógica do meu amigo europeu, a pessoa só tem tamanho quando se converte em medida, número e risco na fita métrica. Mas a questão, para os ilhéus da Inhaca, é que um menino não é ainda uma pessoa. É um indivíduo em trânsito para a idade adulta.
Na cosmogonia dos moçambicanos ninguém nasce pessoa. Vamo-nos tornando gente à medida que somos iniciados por experiências e vivências.
É por isso que a criança pode ir mudando de nome, à medida que cresce e cumpre rituais de passagem. O menino pequeno, quando falece, é enterrado junto ao rio. Só depois de receber o seu segundo nome é que pode ser sepultado em chão firme. É esse o nosso destino: nascemos água, vamos a caminho de sermos terra.
Aqui há algo que é anterior às línguas, e que são as lógicas com que vemos o mundo e o modo como damos nome às coisas e aos seres. No mundo rural africano, a identidade é definida de forma aberta, transitável e transitória. Alguém pode ser pessoa de dia, árvore de tarde e bicho de noite. Os mortos podem usar a voz e o corpo dos vivos, a vida está disponível para ser vivida pelos mortos.
Chegamos, assim, a uma primeira constatação: as identidades são transitórias e precárias. O problema é que elas são quase sempre vividas como definitivas e eternas. Mais grave ainda é que a identidade toma-se a si mesma muito a sério. E atira-nos para a tentação de nos definirmos como essências, entidades puras, certezas inabaláveis que justificam guerras e cruzadas.
Não sou um especialista para falar do tema que escolhi. Sou sim, uma vítima predilecta dos equívocos gerados em redor da identidade. Já explico. Na nossa vida quotidiana os dados de identificação são facilmente sumarizados e constam de quase todos os formulários burocráticos. Esses dados são: o nome, o sexo, a nacionalidade, a raça, a língua, a idade, o estado civil. Seguiremos agora para cada uma dessas categorias e veremos como todas podem suscitar curiosos embaraços. Comecemos pelo nome.
O nome
Aos dois anos de idade tive a infeliz idéia de reclamar um novo nome para mim mesmo. Contra o António de nascença – eu inventei um outro nome: Mia. Rebaptizei-me com esse nome em celebração com a minha vivência com os gatos da vizinhança. Não é que eu gostava de gatos. Eu acreditava ser gato. Eu não pensava: eu era um gato.
Veremos, mais tarde, que tive que pagar por esse meu rebaptismo. O meu nome, esse que me confere a primeira identidade, tem-me causado um sem número de penosos mal-entendidos. Já li, por exemplo, uma tese argumentando que “Mia” é uma palavra africana bantu com significados mágico-religiosos.
Mais grave ainda é a forma com a tribo dos amantes de gatos me têm adoptado como membro incondicional. Certa vez, numa cidade de Portugal onde eu lançava um livro, uma simpática senhora me chamou e disse:
- Venha à minha livraria que eu quero que conheça o Gil Vicente.
Lá fui intimidado com a solenidade do encontro. Alguém que tinha o nome do célebre dramaturgo lusitano seria certamente pessoa de valor. Entrei na livraria, não havia ninguém. Foi quando a proprietária do estabelecimento se aproximou da caixa registadora e apontou para um enorme gato. E anunciou com ar formal:
- Gil Vicente, este é o escritor de que falei e que é um apaixonado por gatos.
De imediato, já ela apontava uma câmara fotográfica para eternizar em imagem o nosso encontro. Sugeriu para que me chegasse mais perto do bicho e, no momento em que tentei fazer-lhe uma carícia, o gato deu-me uma vigorosa dentada. Foi assim que surgi na fotografia, exibindo um esgar de dor e espanto perante os dentes felinos que se cravavam no meu braço.
Até hoje, guardo a cicatriz desta dentada. A dona do estabelecimento tornou-se uma amiga. E ganhei o orgulho de poder dizer que fui mordido por Gil Vicente.
O sexo
Não é que eu possua, devo dizer à partida, dúvidas de identidade neste capítulo. O problema são os mal-entendidos que decorrem do nome “Mia” que se acredita ser um nome feminino. Há tempos, na Argentina, o protocolo do Ministério da Educação que me tinha convidado, pediu para que esperasse na recepção do hotel pois tinham que mudar algo na acomodação prevista. Soube, depois, que me haviam reservado o chamado “quarto-cor-de-rosa”.
Numa visita como jornalista a Cuba, nos anos oitenta, recebi uma prenda do Presidente Fidel. Era um pequeno baú de madeira, que seguiu no porão. Estávamos em guerra, não tínhamos nada em Moçambique. A curiosidade perseguiu-me durante toda a viagem de regresso: o que se escondia no caixote? Chegado a casa não podia ser maior a minha desilusão: o baú continha eram vestidos, brincos, colares. O protocolo cubano tinha sido ludibriado pelo tom feminino do meu nome. Guardo a certeza de ter sido o único homem a quem Fidel Castro ofereceu uma saia.
A raça e a etnia
Nos lugares chamados de “civilizados” ninguém pergunta a que grupo étnico pertencemos. Mas quando se fala sobre África já se acredita que é importante discriminar a pertença étnica. África para uma certa facilidade televisiva explica-se facilmente pelas tribos e etnias.
A este propósito quero lembrar a história do missionário Henri Junod que nos finais do século 19 saiu da Suíça Francesa para vir pregar em Moçambique. Ao contrário das grandes potências europeias, a Suíça não tinha colónias em África. A Igreja Livre de Lausane a que pertencia Junod só podia sobreviver se encontrasse nos territórios africanos uma espécie de terra de ninguém. Junod chegou a Moçambique e deparou com um conjunto de clãs dispersos que se nomeavam a si mesmos em função da família dominante: havia os Kossas, os Bilas, os Maluleques, os Matsolo, etc. O que Junod fez foi propor uma espécie de língua franca a partir de variantes dialectais destes grupos. Fixou a língua, codificou-a, organizou uma gramática e publicou um dicionário. Deu a essa língua o nome de Tsonga. Depois sugeriu que os povos do Sul de Moçambique fossem igualmente denominados por Tsongas. Encontrou uma generalizada resistência. Tsonga era o nome que os invasores sul-africanos zulus davam aos moçambicanos escravizados. Era um termo depreciativo. Mas o termo ficou e foi abraçado por elites locais que estavam em conflito com a administração colonial portuguesa. Ocorreu assim uma espécie de negociação entre as chefaturas negras e os missionários suíços. Os religiosos suíços outorgavam uma identidade etno-linguística e recebiam em troca, a legitimidade para a sua presença em África. Eles faziam da língua aquilo que outros fizeram da terra.
Ainda hoje, mais de cem anos passados, uma grande parte dos moçambicanos oficialmente designados como tsongas não se reconhecem nesse nome. Mas a verdade é que cada vez há mais gente que não apenas se aceita como tsonga mas acredita que essa identidade sempre existiu e que a sua etnia é tão antiga quanto a Humanidade.
Este é um exemplo claro e recente de como se fabricam identidades. Eu vivi esta revisitação histórica na companhia de um amigo meu, que está na Suíça fazendo o seu doutoramento em filosofia.
Historio de Severino Nguenha. Ele me dizia em Genebra: quando parti eu sabia que era Moçambicano. Aqui na Europa eu aprendi que era africano. E como africano ele sentia que devia escolher um tema africano para a sua tese. Mas ele não sabia o que escolher. Foi então que lhe sugeriram que visitasse um missionário de noventa anos, de nome Clerg, que era dos poucos discípulos de Henri Junod que ainda sobreviva. Nguenha nessa tarde mesmo foi a casa do velho suíço, bateu à porta e escutou a voz cansada perguntando num francês rouco:
- Quem é?
- Sou um estudante que veio de Moçambique.
Então, Severino Nguenha escutou passos arrastando-se pelo corredor e se arrepiou quando ouviu a pergunta:
- I wena mani? (quem é ?)
Clerk perguntava quem era, falando em tsanva. E o moçambicano respondeu:
- Mina ni Nguonha. (Sou o Nguenha)
Então, retorquiu o suíço, então és um dos nossos, entra que esta é casa dos tsongas.
Severino Nguenha, um moçambicano negro de quarenta anos de idade aprendeu naquele dia que era um tsonga, da mesma tribo de um suíço branco com mais de noventa anos.
A nacionalidade
No tempo da infância, sempre que regressava das brincadeiras no manguezal, quem me recebia em casa era o baiano Dorival Caymmi. As canções do mar se repetiam infinitamente no velho toca-discos e eu escutava inebriado como era doce morrer no mar. E para mim já era claro: o que era doce não era morrer mas o modo de dizer essa morte. Esse sotaque adocicado de uma língua que era minha e que eu desconhecia me revelou um novo litoral na minha alma. Severino Nguenha viu abrir as portas de identidade tsonga pela mão de um suíço. A porta para uma outra condição de nação foi-me aberta pela canção de Caymmi. Esse deslumbramento cresceu quando, mais tarde, se voltou a acender com os poetas e os cantores brasileiros. Eu não apenas amava essa outra pátria sem contornos. Eu me tinha convertido num brasileiro. E sempre que visito o Brasil renovo essa cidadania de uma nação que inventei.
Amin Malouf escreveu um livro sobre aquilo que chamou de “identidades assassinas”. Em resposta, necessitamos nós de assassinar a identidade singular e redutora a que nos querem obrigar. Necessitamos assumir a nossa condição errante, de eternos contrabandistas de culturas. Há que ter raiz, sim. Mas quem tem demasiada raiz não chega nunca a ganhar asas.
Lembro um episódio que me aconteceu nos anos oitenta numa pequena cidade chamada Malmo, no Sul da Suécia. Eu trabalhava na adaptação teatral de textos meus quando uma das actrizes suecas organizou um jantar para que eu conhecesse o seu professor de lambada, um brasileiro acabado de chegar à Escandinávia. Esse natural do Rio de Janeiro abrira uma pequena escola de danças brasileiras. A actriz estava encantada com o charme do professor carioca e queria saber se ele poderia participar na peça teatral. Quando o brasileiro entrou na sala e se apresentou, verifiquei com espanto que falava comigo em italiano. Pensei, primeiro, que ele não soubesse o que era Moçambique e que língua seria a minha. Mas não. O dito dançarino era italiano, nunca tinha visitado o Brasil e não sabia uma palavra de português. Fazia-se passar por brasileiro por razões de marketing de imagem. Entendemo-nos, à custa do meu pobre italiano, perante o olhar encantado da actriz sueca que nos imaginava falando em português. Embaraçado, o falso professor desculpou-se:
- Por favor, me entenda, não tenho outro emprego.
O que podia eu fazer senão entender? Já o italiano se despedia quando regressou atrás e me segredou:
- E eu posso garantir-lhe uma coisa, quando danço lambada eu deixo mesmo de ser italiano.
Quando mais tarde a actriz sueca me perguntou se havia gostado do seu brasileiro, eu
respondi:
- Não há lugar neste mundo em que não se encontre um pedaço do Brasil.
Como podem ver, não apenas vou sendo abusivamente brasileiro como até já conferi a nacionalidade brasileira a europeus em estado de aflição. Espero que nenhum agente da polícia de migração esteja presente nesta sala.
No capítulo da nacionalidade e de como a nação define identidades farei ainda referência a alguém que todos vocês conhecem. Todos descobrimos os nossos mestres na arte de pular fronteiras identitárias. Para mim o maior mestre foi um brasileiro chamado João Guimarães Rosa.
A identidade da escrita
Sou moçambicano, filho de portugueses, vivi o sistema colonial, combati pela Independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao capitalismo, da revolução a uma guerra civil que demorou 16 anos e fez um milhão de mortos. Nasci num tempo de charneira, entre um mundo que nascia e outro que morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que ainda está nascendo. A minha condição sempre foi a de criatura de fronteira. As duas partes de mim exigiam um medium, um tradutor. A poesia veio em meu socorro para criar essa ponte entre mundos aparentemente distantes. O que creio que todos carecemos é de um passaporte (ou se quisermos esse password) para emigrarmos de nós, saltarmos a fronteira daquilo que alguém chamou de identidade pessoal.
Quando li pela primeira vez Guimarães Rosa experimentei uma sensação que já tinha sentido quando escutava os contadores de histórias da minha infância. Perante o texto eu não simplesmente lia: eu ouvia vozes antigas. Os livros de Rosa me atiravam para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num analfabeto selectivo. Para entrar naqueles textos eu devia fazer uso de um outro acto que não é “ler” mas que pede um verbo que ainda não tem nome.
Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo, que me fazia inexistir. Aquela era uma linguagem em estado de transe, que se deixava possuir como os mediuns das cerimónias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exactamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele prepara a possessão pelos espíritos. O dançarino só dança para criar o momento divino em que ele emigra do seu próprio corpo. O italiano da lambada também sabia disto.
Os contadores de histórias do meu país têm que proceder a um ritual quando terminam a narração. Tem que “fechar” a história. “Fechar” a história é um ritual em que o narrador fala com a própria história. Pensa-se que os relatos históricos são retirados de uma caixa que nos foi deixada por Guambe e Dzavane, o primeiro homem e a primeira mulher. No final da cerimónia, o narrador volta-se para a história — como se a história fosse um personagem e diz-lhe: “Volta para casa de Guambe e Dzavane”. É assim que a história volta a ser encerrada nesse baú primordial.
O que acontece quando não se “fecha” a história? A multidão que assiste fica doente, contaminada por uma enfermidade que se chama a doença de sonhar. João Guimarães Rosa é um contador que não fechou a história. Ficamos doentes, nós que o escutamos. E nos apaixonamos por essa doença, esse encantamento, essa aptidão para a fantasia.
Volto à categoria da identidade. E vou falar na questão do idioma.
A língua
Na categoria do idioma gostaria de me demorar um pouco mais. Afinal, a língua é um dos temas de cartaz deste Fórum. E a pergunta que seria preciso fazer não tem a ver comigo mas com o meu país, esse que confere identidade colectiva a 17 milhões de habitantes. E a pergunta é esta: será que Moçambique é um país de língua portuguesa?
E aqui gostaria de fazer um grande parêntesis. Nas zonas rurais onde trabalho existe uma curiosa maneira de responder ás perguntas formuladas por um estranho. Sobretudo se essas questões solicitam a cruel dicotomia do “sim” e do “não”. Resolve-se da seguinte maneira: responde-se sempre sim. O “não” simplesmente não se diz.
Esta forma de retórica (ou melhor esta ausência de retórica) traduz a nossa condição geográfica: Moçambique já é Oriente. Não negar é uma educação. Mas esta elegância de trato cria, por vezes, problemas aos que necessitam de respostas claras e concisas. É o meu caso quando chego a uma zona litoral e necessito organizar o meu trabalho. À minha pergunta:
- A maré está a subir?
A resposta já aconteceu assim:
- Está a subir, sim senhor, mas já começou a descer há mais de duas horas.
Uma outra vez, tendo por missão identificar a fauna numa floresta, perguntei a um velho que me acompanhava:
- Isto que está cantar é um pássaro?
- É, sim.
- E como se chama este pássaro ?, quis eu saber.
- Bom este pássaro, nós aqui em Niassa não chamamos bem-bem pássaro. Chamamos de sapo.
Num balanço da aplicação do lema de governação “por um futuro melhor” a Televisão de Moçambique fez um inquérito popular. A pergunta era: “sente que a sua vida está a melhorar?” Um cidadão respondeu assim:
- “Está melhorar, sim senhor. Mas está a melhorar muito mal’
Evoco estes episódios para regressar à questão inicial que é: Moçambique é um país lusófono? Tomando a lógica rural eu responderia, pronto e ligeiro: é, sim senhor. Mas sei que há outras lógicas que mandariam que eu dissesse: não, Moçambique não é um país lusófono.
Explico: fala-se hoje mais português em Moçambique que se falava na altura da Independência. O governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa que os 500 anos de colonização. Em 1975, ano da Independência Nacional, mais de 60 por cento dos moçambicanos não falavam português. Trinta anos depois existem ainda 40 por cento de moçambicanos que não falam português. Mesmos os que tem essa competência fazem-no como segunda língua. Hoje cerca de 7 por cento dos moçambicanos tem o português como língua materna. Nas cidades, porém, este número já é de quase 20 por cento.
O meu país é, assim, um território de muitas nações e muitas línguas (mais de vinte diferentes idiomas). O idioma português é a língua de uma dessas nações — um território cultural inventado por negros urbanos, mestiços, indianos e brancos. Sendo minoritário e circunscrito às cidades, esse grupo ocupa lugares chaves nos destinos políticos e na definição daquilo que se entende por moçambicanidade. A língua portuguesa não é a ainda língua de Moçambique. Está-se exercendo, sim, como a língua da moçambicanidade.
Comecei a minha intervenção com alguns dados da minha meninice. O que tem a questão da língua a ver com estas lembranças? Para manter residência na infância necessito de uma língua em estado de infância. Essa é a minha aposta quando escrevo. Tenho a meu favor o facto de Moçambique ser ele próprio um lugar em infância, uma nação em flagrante invenção de si mesma e da sua língua de identidade. Estranha coincidência: a minha pátria é-me contemporânea. Fui nascendo com ela, ela está nascendo comigo. Eu e a minha terra somos da mesma geração.
A minha língua portuguesa, repito a minha língua portuguesa, é a pátria que estou inventando para mim. Essa língua nómada é viagem viajada, namoradeira de outras vozes e outros tempos. O importante não é tanto a língua, nem sequer o quanto ela nos é materna. Mais importante é essa outra língua que falamos mesmo antes de nascermos. Nesse registo está a porta e o passaporte em que todos nos fazemos humanos, fabricadores da palavra e, com igual mestria, criadores de infinitas identidades.
Conclusão — identidades fugidias
Tenho ao que parece a raça errada, o nome errado, o sexo errado, e aqui no Brasil tenho a pronúncia errada. A verdade é que, para mim, a escrita me ajudou a dissolver esses erros. Foi a aceitação da poesia como uma lógica para entender o mundo que me deu a solução. E me fez criar um modo de ser outro e outros, e me deu uma forma de desembarcar em novas entidades. Quando escrevo sobre uma mulher eu me converto em mulher, quando escrevo sobre uma criança eu sou uma criança. Essa liberdade contraria a ideia comum que nascemos para ter uma única e singular identidade. Alguns insistem que a identidade pede pureza e essência. A única maneira de sermos puros, porém, é sermos híbridos. A verdade é que só seremos um se formos muitos. E só seremos felizes se abraçarmos identidades plurais, capazes de reinventarem e se misturarem em imprevisíveis simbioses e combinações.
Ensinaram-nos a ter medo da indefinição e da imprevisão. Mas nós brasileiros e moçambicanos construímos sociedades em que a previsão não passa de uma falível contingência. A força do oculto e do não nomeável é muito forte. Devemos tirar partido disso: inventemos para nós a identidade que nos apetecer. E façamo-lo não porque seja politicamente correcto mas porque nos dá prazer sermos o que somos, mesmo que não saibamos exactamente o que isso é. Só poderemos sentir prazer se criarmos um universo de diferença num mundo em que o futuro se está já a escrever apenas em inglês.
Aquilo que nos torna próximos — a nós falantes do português no Brasil, em Portugal e em África — não é apenas a língua mas componentes culturais e, sobretudo, religiosos. Fomos moldados e moldamos percepções do mundo que resultaram de migrações e transculturações antigas. Os nossos santos são os mesmos. Os nossos santos protectores — mesmo que neles não acreditemos — poderiam sentar-se nesta sala, no Rio, com o mesmo à vontade que manteriam em Lisboa, Maputo ou Luanda.
O que estaremos discutindo nestes dias não são questões académicas. O que está em debate é a possibilidade de sermos construtores de identidades que, tal como a criança da ilha, não podem ser medidas, nem reduzidas a um nome ou a um gesto. Estaremos falando, muito simplesmente, de identidades, línguas e marcas culturais que nos tornem mais felizes, mais humanos e mais solidários.
Esta é a derradeira história e, de novo, relembro algo ocorrido na EB da Inhaca. Numa noite escura, eu e os meus colegas acabávamos de jantar na varanda da Estação quando escutamos tambores e sinais de que haveria, algures, uma festa. Decidimos ver o que se passava. Quando chegamos deparamos não exactamente com uma festa mas com uma cerimónia de agradecimento pela chegada das chuvas. Ao redor de uma fogueira havia só mulheres de uma certa idade. Receberam-nos com a maior das simpatias, foram buscar cadeiras (os homens não se sentam no chão) e serviram-nos de ngovo, uma bebida fermentada. Considerei que seria de bom tom usar da palavra para agradecer a hospitalidade. Eu era o único branco entre os meus colegas e era o que menos falava o xironga, a língua local. Quando nos dirigimos ao centro do pátio, as mulheres fizeram silêncio e esperaram que começássemos a falar. O meu colega porém, foi mandado calar logo nas primeiras palavras: Eh, Eh, se é para dizerem quem são não queremos que falem, queremos que dancem. Vocês vão dizer quem são e de onde vieram através da dança.
Entrei em pânico. Eu não danço coisa nenhuma e essa inaptidão é tão funda que eu já imaginei que eu apenas escrevo porque não sei dançar. Mas o problema é que os meus colegas dançavam qualquer coisa irreconhecível, uma mistura de Michael Jackson e Zeca Pagodinho. As mulheres, ante o patético espectáculo, levantaram os braços e clamaram: podem parar que nós não sabemos que país será esse onde se dança assim.
Esse país onde se inventa uma identidade dançada é o mesmo onde o italiano continua ensinando lambada, a mesma nação onde Guimarães Rosa vai tornando as palavras dançáveis. E como diz o provérbio moçambicano: quem dança não é o que levanta poeira; quem dança é aquele que inventa o seu próprio chão.
E muito obrigado.
VALENTE, André (ORG.). Língua portuguesa e identidade. Rio de Janeiro: Caetés, 2008. pp. 11-22.
Corremos o risco de somar aos três anunciados fantasmas um outro inesperado. Esse outro fantasma sou eu mesmo. Venho de longe, para muitos de vocês sou um escritor desconhecido. Sou moçambicano e Moçambique é do domínio das miragens. Tenho uma pronúncia que, aos ouvidos da maioria dos brasileiros, me atira para a identidade de um “português”.
O mais fácil, pensei eu, seria começar por desvanecer o meu estatuto fantasmagórico. E é isso que tentarei fazer. Irei falar não de mim, mas da língua portuguesa em Moçambique, da errante identidade de uma literatura moçambicana e de marcas culturais brasileiras em sucessivas gerações de escritores moçambicanos.
O centro da minha intervenção, porém, será a questão da identidade. Ou das identidades no plural. Escolhi falar deste tópico exactamente porque as identidades não são faláveis. Elas são esquivas, fortuitas, inventadas. As identidades não são nomes. São verbos que se enunciam sempre no futuro. Recorro a um provérbio dos macuas, um povo do norte de Moçambique. E o provérbio diz assim:
Não fales sobre Deus porque Deus é como o ovo. Se apertas muito ele quebra; se não agarras bem ele cai.
A mesma condição volátil contamina o tema da nossa conversa de hoje.
A alguns de vocês terão visto o filme de Vítor Lopes sobre a Língua Portuguesa onde aparecem João Ubaldo, José Saramago, Martinho da Vila e outros. Quando dei o depoimento para este filme eu estava na Ilha da Inhaca, onde durante anos trabalhei como biólogo na Estação de Biologia da Universidade Eduardo Mondlane. (não só escritor, também sou uma pessoa séria...) Pois nessa ilha passou-se o seguinte (fala de improviso):
Certa vez eu estava no cais de saída para a capital quando vi chegar, num outro barco, que eu conhecera em Nápoles, um apaixonado pela África que vinha pela primeira vez a Moçambique. Ele não sabia uma palavra de português e viajava por sua conta para a ilha de Inhaca, durante a minha ausência. Na despedida, ele a si mesmo se consolou: “pois nós os italianos falamos muito com as mãos, vocês aqui também usam muito gesto, eu lá me entenderei...”
O homem ficou por lá uma semana, regressou a Maputo, feliz e gratificado por ter conseguido um entendimento pleno. Mais tarde, eu lá fui para a ilha, para a Estação de Biologia onde eu trabalhava. Cruzei com um velho funcionário, perseguido pelo italiano e, logo, veio a inesperada observação: “esse homem não tem juízo completo”. O que se passara? Pois, logo numa primeira conversa um grupo de ilhéus quis saber do italiano se ele tinha filhos. A resposta afirmativa foi reforçada com gestos para assinalar os tamanhos de seus rebentos. E aqui sucedeu o mal entendido. O italiano marcou a altura dos filhos com um gesto que, ali, na ilha era quase uma obscenidade. Qualquer europeu fazia o mesmo: estenderia a mão, paralela ao chão. Mas nos códigos locais, a mão plana, bem aberta, indica um objecto inanimado, um morto sem ligação afectiva. A mão curva, fechada e virada para cima indica o tamanho de quem está crescendo, de uma criança em trânsito para ser adulto. Que raio de pai era aquele europeu que falava assim dos seus próprios filhos?
Recordei-me deste episódio porque a identidade é como o tamanho da criança: está em trânsito, não pode ser capturada em gesto, nem em palavras.
Afinal, na pequena história que evoquei todos estão com a razão. Está certo o gesto do italiano. Na lógica do meu amigo europeu, a pessoa só tem tamanho quando se converte em medida, número e risco na fita métrica. Mas a questão, para os ilhéus da Inhaca, é que um menino não é ainda uma pessoa. É um indivíduo em trânsito para a idade adulta.
Na cosmogonia dos moçambicanos ninguém nasce pessoa. Vamo-nos tornando gente à medida que somos iniciados por experiências e vivências.
É por isso que a criança pode ir mudando de nome, à medida que cresce e cumpre rituais de passagem. O menino pequeno, quando falece, é enterrado junto ao rio. Só depois de receber o seu segundo nome é que pode ser sepultado em chão firme. É esse o nosso destino: nascemos água, vamos a caminho de sermos terra.
Aqui há algo que é anterior às línguas, e que são as lógicas com que vemos o mundo e o modo como damos nome às coisas e aos seres. No mundo rural africano, a identidade é definida de forma aberta, transitável e transitória. Alguém pode ser pessoa de dia, árvore de tarde e bicho de noite. Os mortos podem usar a voz e o corpo dos vivos, a vida está disponível para ser vivida pelos mortos.
Chegamos, assim, a uma primeira constatação: as identidades são transitórias e precárias. O problema é que elas são quase sempre vividas como definitivas e eternas. Mais grave ainda é que a identidade toma-se a si mesma muito a sério. E atira-nos para a tentação de nos definirmos como essências, entidades puras, certezas inabaláveis que justificam guerras e cruzadas.
Não sou um especialista para falar do tema que escolhi. Sou sim, uma vítima predilecta dos equívocos gerados em redor da identidade. Já explico. Na nossa vida quotidiana os dados de identificação são facilmente sumarizados e constam de quase todos os formulários burocráticos. Esses dados são: o nome, o sexo, a nacionalidade, a raça, a língua, a idade, o estado civil. Seguiremos agora para cada uma dessas categorias e veremos como todas podem suscitar curiosos embaraços. Comecemos pelo nome.
O nome
Aos dois anos de idade tive a infeliz idéia de reclamar um novo nome para mim mesmo. Contra o António de nascença – eu inventei um outro nome: Mia. Rebaptizei-me com esse nome em celebração com a minha vivência com os gatos da vizinhança. Não é que eu gostava de gatos. Eu acreditava ser gato. Eu não pensava: eu era um gato.
Veremos, mais tarde, que tive que pagar por esse meu rebaptismo. O meu nome, esse que me confere a primeira identidade, tem-me causado um sem número de penosos mal-entendidos. Já li, por exemplo, uma tese argumentando que “Mia” é uma palavra africana bantu com significados mágico-religiosos.
Mais grave ainda é a forma com a tribo dos amantes de gatos me têm adoptado como membro incondicional. Certa vez, numa cidade de Portugal onde eu lançava um livro, uma simpática senhora me chamou e disse:
- Venha à minha livraria que eu quero que conheça o Gil Vicente.
Lá fui intimidado com a solenidade do encontro. Alguém que tinha o nome do célebre dramaturgo lusitano seria certamente pessoa de valor. Entrei na livraria, não havia ninguém. Foi quando a proprietária do estabelecimento se aproximou da caixa registadora e apontou para um enorme gato. E anunciou com ar formal:
- Gil Vicente, este é o escritor de que falei e que é um apaixonado por gatos.
De imediato, já ela apontava uma câmara fotográfica para eternizar em imagem o nosso encontro. Sugeriu para que me chegasse mais perto do bicho e, no momento em que tentei fazer-lhe uma carícia, o gato deu-me uma vigorosa dentada. Foi assim que surgi na fotografia, exibindo um esgar de dor e espanto perante os dentes felinos que se cravavam no meu braço.
Até hoje, guardo a cicatriz desta dentada. A dona do estabelecimento tornou-se uma amiga. E ganhei o orgulho de poder dizer que fui mordido por Gil Vicente.
O sexo
Não é que eu possua, devo dizer à partida, dúvidas de identidade neste capítulo. O problema são os mal-entendidos que decorrem do nome “Mia” que se acredita ser um nome feminino. Há tempos, na Argentina, o protocolo do Ministério da Educação que me tinha convidado, pediu para que esperasse na recepção do hotel pois tinham que mudar algo na acomodação prevista. Soube, depois, que me haviam reservado o chamado “quarto-cor-de-rosa”.
Numa visita como jornalista a Cuba, nos anos oitenta, recebi uma prenda do Presidente Fidel. Era um pequeno baú de madeira, que seguiu no porão. Estávamos em guerra, não tínhamos nada em Moçambique. A curiosidade perseguiu-me durante toda a viagem de regresso: o que se escondia no caixote? Chegado a casa não podia ser maior a minha desilusão: o baú continha eram vestidos, brincos, colares. O protocolo cubano tinha sido ludibriado pelo tom feminino do meu nome. Guardo a certeza de ter sido o único homem a quem Fidel Castro ofereceu uma saia.
A raça e a etnia
Nos lugares chamados de “civilizados” ninguém pergunta a que grupo étnico pertencemos. Mas quando se fala sobre África já se acredita que é importante discriminar a pertença étnica. África para uma certa facilidade televisiva explica-se facilmente pelas tribos e etnias.
A este propósito quero lembrar a história do missionário Henri Junod que nos finais do século 19 saiu da Suíça Francesa para vir pregar em Moçambique. Ao contrário das grandes potências europeias, a Suíça não tinha colónias em África. A Igreja Livre de Lausane a que pertencia Junod só podia sobreviver se encontrasse nos territórios africanos uma espécie de terra de ninguém. Junod chegou a Moçambique e deparou com um conjunto de clãs dispersos que se nomeavam a si mesmos em função da família dominante: havia os Kossas, os Bilas, os Maluleques, os Matsolo, etc. O que Junod fez foi propor uma espécie de língua franca a partir de variantes dialectais destes grupos. Fixou a língua, codificou-a, organizou uma gramática e publicou um dicionário. Deu a essa língua o nome de Tsonga. Depois sugeriu que os povos do Sul de Moçambique fossem igualmente denominados por Tsongas. Encontrou uma generalizada resistência. Tsonga era o nome que os invasores sul-africanos zulus davam aos moçambicanos escravizados. Era um termo depreciativo. Mas o termo ficou e foi abraçado por elites locais que estavam em conflito com a administração colonial portuguesa. Ocorreu assim uma espécie de negociação entre as chefaturas negras e os missionários suíços. Os religiosos suíços outorgavam uma identidade etno-linguística e recebiam em troca, a legitimidade para a sua presença em África. Eles faziam da língua aquilo que outros fizeram da terra.
Ainda hoje, mais de cem anos passados, uma grande parte dos moçambicanos oficialmente designados como tsongas não se reconhecem nesse nome. Mas a verdade é que cada vez há mais gente que não apenas se aceita como tsonga mas acredita que essa identidade sempre existiu e que a sua etnia é tão antiga quanto a Humanidade.
Este é um exemplo claro e recente de como se fabricam identidades. Eu vivi esta revisitação histórica na companhia de um amigo meu, que está na Suíça fazendo o seu doutoramento em filosofia.
Historio de Severino Nguenha. Ele me dizia em Genebra: quando parti eu sabia que era Moçambicano. Aqui na Europa eu aprendi que era africano. E como africano ele sentia que devia escolher um tema africano para a sua tese. Mas ele não sabia o que escolher. Foi então que lhe sugeriram que visitasse um missionário de noventa anos, de nome Clerg, que era dos poucos discípulos de Henri Junod que ainda sobreviva. Nguenha nessa tarde mesmo foi a casa do velho suíço, bateu à porta e escutou a voz cansada perguntando num francês rouco:
- Quem é?
- Sou um estudante que veio de Moçambique.
Então, Severino Nguenha escutou passos arrastando-se pelo corredor e se arrepiou quando ouviu a pergunta:
- I wena mani? (quem é ?)
Clerk perguntava quem era, falando em tsanva. E o moçambicano respondeu:
- Mina ni Nguonha. (Sou o Nguenha)
Então, retorquiu o suíço, então és um dos nossos, entra que esta é casa dos tsongas.
Severino Nguenha, um moçambicano negro de quarenta anos de idade aprendeu naquele dia que era um tsonga, da mesma tribo de um suíço branco com mais de noventa anos.
A nacionalidade
No tempo da infância, sempre que regressava das brincadeiras no manguezal, quem me recebia em casa era o baiano Dorival Caymmi. As canções do mar se repetiam infinitamente no velho toca-discos e eu escutava inebriado como era doce morrer no mar. E para mim já era claro: o que era doce não era morrer mas o modo de dizer essa morte. Esse sotaque adocicado de uma língua que era minha e que eu desconhecia me revelou um novo litoral na minha alma. Severino Nguenha viu abrir as portas de identidade tsonga pela mão de um suíço. A porta para uma outra condição de nação foi-me aberta pela canção de Caymmi. Esse deslumbramento cresceu quando, mais tarde, se voltou a acender com os poetas e os cantores brasileiros. Eu não apenas amava essa outra pátria sem contornos. Eu me tinha convertido num brasileiro. E sempre que visito o Brasil renovo essa cidadania de uma nação que inventei.
Amin Malouf escreveu um livro sobre aquilo que chamou de “identidades assassinas”. Em resposta, necessitamos nós de assassinar a identidade singular e redutora a que nos querem obrigar. Necessitamos assumir a nossa condição errante, de eternos contrabandistas de culturas. Há que ter raiz, sim. Mas quem tem demasiada raiz não chega nunca a ganhar asas.
Lembro um episódio que me aconteceu nos anos oitenta numa pequena cidade chamada Malmo, no Sul da Suécia. Eu trabalhava na adaptação teatral de textos meus quando uma das actrizes suecas organizou um jantar para que eu conhecesse o seu professor de lambada, um brasileiro acabado de chegar à Escandinávia. Esse natural do Rio de Janeiro abrira uma pequena escola de danças brasileiras. A actriz estava encantada com o charme do professor carioca e queria saber se ele poderia participar na peça teatral. Quando o brasileiro entrou na sala e se apresentou, verifiquei com espanto que falava comigo em italiano. Pensei, primeiro, que ele não soubesse o que era Moçambique e que língua seria a minha. Mas não. O dito dançarino era italiano, nunca tinha visitado o Brasil e não sabia uma palavra de português. Fazia-se passar por brasileiro por razões de marketing de imagem. Entendemo-nos, à custa do meu pobre italiano, perante o olhar encantado da actriz sueca que nos imaginava falando em português. Embaraçado, o falso professor desculpou-se:
- Por favor, me entenda, não tenho outro emprego.
O que podia eu fazer senão entender? Já o italiano se despedia quando regressou atrás e me segredou:
- E eu posso garantir-lhe uma coisa, quando danço lambada eu deixo mesmo de ser italiano.
Quando mais tarde a actriz sueca me perguntou se havia gostado do seu brasileiro, eu
respondi:
- Não há lugar neste mundo em que não se encontre um pedaço do Brasil.
Como podem ver, não apenas vou sendo abusivamente brasileiro como até já conferi a nacionalidade brasileira a europeus em estado de aflição. Espero que nenhum agente da polícia de migração esteja presente nesta sala.
No capítulo da nacionalidade e de como a nação define identidades farei ainda referência a alguém que todos vocês conhecem. Todos descobrimos os nossos mestres na arte de pular fronteiras identitárias. Para mim o maior mestre foi um brasileiro chamado João Guimarães Rosa.
A identidade da escrita
Sou moçambicano, filho de portugueses, vivi o sistema colonial, combati pela Independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao capitalismo, da revolução a uma guerra civil que demorou 16 anos e fez um milhão de mortos. Nasci num tempo de charneira, entre um mundo que nascia e outro que morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que ainda está nascendo. A minha condição sempre foi a de criatura de fronteira. As duas partes de mim exigiam um medium, um tradutor. A poesia veio em meu socorro para criar essa ponte entre mundos aparentemente distantes. O que creio que todos carecemos é de um passaporte (ou se quisermos esse password) para emigrarmos de nós, saltarmos a fronteira daquilo que alguém chamou de identidade pessoal.
Quando li pela primeira vez Guimarães Rosa experimentei uma sensação que já tinha sentido quando escutava os contadores de histórias da minha infância. Perante o texto eu não simplesmente lia: eu ouvia vozes antigas. Os livros de Rosa me atiravam para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num analfabeto selectivo. Para entrar naqueles textos eu devia fazer uso de um outro acto que não é “ler” mas que pede um verbo que ainda não tem nome.
Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo, que me fazia inexistir. Aquela era uma linguagem em estado de transe, que se deixava possuir como os mediuns das cerimónias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exactamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele prepara a possessão pelos espíritos. O dançarino só dança para criar o momento divino em que ele emigra do seu próprio corpo. O italiano da lambada também sabia disto.
Os contadores de histórias do meu país têm que proceder a um ritual quando terminam a narração. Tem que “fechar” a história. “Fechar” a história é um ritual em que o narrador fala com a própria história. Pensa-se que os relatos históricos são retirados de uma caixa que nos foi deixada por Guambe e Dzavane, o primeiro homem e a primeira mulher. No final da cerimónia, o narrador volta-se para a história — como se a história fosse um personagem e diz-lhe: “Volta para casa de Guambe e Dzavane”. É assim que a história volta a ser encerrada nesse baú primordial.
O que acontece quando não se “fecha” a história? A multidão que assiste fica doente, contaminada por uma enfermidade que se chama a doença de sonhar. João Guimarães Rosa é um contador que não fechou a história. Ficamos doentes, nós que o escutamos. E nos apaixonamos por essa doença, esse encantamento, essa aptidão para a fantasia.
Volto à categoria da identidade. E vou falar na questão do idioma.
A língua
Na categoria do idioma gostaria de me demorar um pouco mais. Afinal, a língua é um dos temas de cartaz deste Fórum. E a pergunta que seria preciso fazer não tem a ver comigo mas com o meu país, esse que confere identidade colectiva a 17 milhões de habitantes. E a pergunta é esta: será que Moçambique é um país de língua portuguesa?
E aqui gostaria de fazer um grande parêntesis. Nas zonas rurais onde trabalho existe uma curiosa maneira de responder ás perguntas formuladas por um estranho. Sobretudo se essas questões solicitam a cruel dicotomia do “sim” e do “não”. Resolve-se da seguinte maneira: responde-se sempre sim. O “não” simplesmente não se diz.
Esta forma de retórica (ou melhor esta ausência de retórica) traduz a nossa condição geográfica: Moçambique já é Oriente. Não negar é uma educação. Mas esta elegância de trato cria, por vezes, problemas aos que necessitam de respostas claras e concisas. É o meu caso quando chego a uma zona litoral e necessito organizar o meu trabalho. À minha pergunta:
- A maré está a subir?
A resposta já aconteceu assim:
- Está a subir, sim senhor, mas já começou a descer há mais de duas horas.
Uma outra vez, tendo por missão identificar a fauna numa floresta, perguntei a um velho que me acompanhava:
- Isto que está cantar é um pássaro?
- É, sim.
- E como se chama este pássaro ?, quis eu saber.
- Bom este pássaro, nós aqui em Niassa não chamamos bem-bem pássaro. Chamamos de sapo.
Num balanço da aplicação do lema de governação “por um futuro melhor” a Televisão de Moçambique fez um inquérito popular. A pergunta era: “sente que a sua vida está a melhorar?” Um cidadão respondeu assim:
- “Está melhorar, sim senhor. Mas está a melhorar muito mal’
Evoco estes episódios para regressar à questão inicial que é: Moçambique é um país lusófono? Tomando a lógica rural eu responderia, pronto e ligeiro: é, sim senhor. Mas sei que há outras lógicas que mandariam que eu dissesse: não, Moçambique não é um país lusófono.
Explico: fala-se hoje mais português em Moçambique que se falava na altura da Independência. O governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa que os 500 anos de colonização. Em 1975, ano da Independência Nacional, mais de 60 por cento dos moçambicanos não falavam português. Trinta anos depois existem ainda 40 por cento de moçambicanos que não falam português. Mesmos os que tem essa competência fazem-no como segunda língua. Hoje cerca de 7 por cento dos moçambicanos tem o português como língua materna. Nas cidades, porém, este número já é de quase 20 por cento.
O meu país é, assim, um território de muitas nações e muitas línguas (mais de vinte diferentes idiomas). O idioma português é a língua de uma dessas nações — um território cultural inventado por negros urbanos, mestiços, indianos e brancos. Sendo minoritário e circunscrito às cidades, esse grupo ocupa lugares chaves nos destinos políticos e na definição daquilo que se entende por moçambicanidade. A língua portuguesa não é a ainda língua de Moçambique. Está-se exercendo, sim, como a língua da moçambicanidade.
Comecei a minha intervenção com alguns dados da minha meninice. O que tem a questão da língua a ver com estas lembranças? Para manter residência na infância necessito de uma língua em estado de infância. Essa é a minha aposta quando escrevo. Tenho a meu favor o facto de Moçambique ser ele próprio um lugar em infância, uma nação em flagrante invenção de si mesma e da sua língua de identidade. Estranha coincidência: a minha pátria é-me contemporânea. Fui nascendo com ela, ela está nascendo comigo. Eu e a minha terra somos da mesma geração.
A minha língua portuguesa, repito a minha língua portuguesa, é a pátria que estou inventando para mim. Essa língua nómada é viagem viajada, namoradeira de outras vozes e outros tempos. O importante não é tanto a língua, nem sequer o quanto ela nos é materna. Mais importante é essa outra língua que falamos mesmo antes de nascermos. Nesse registo está a porta e o passaporte em que todos nos fazemos humanos, fabricadores da palavra e, com igual mestria, criadores de infinitas identidades.
Conclusão — identidades fugidias
Tenho ao que parece a raça errada, o nome errado, o sexo errado, e aqui no Brasil tenho a pronúncia errada. A verdade é que, para mim, a escrita me ajudou a dissolver esses erros. Foi a aceitação da poesia como uma lógica para entender o mundo que me deu a solução. E me fez criar um modo de ser outro e outros, e me deu uma forma de desembarcar em novas entidades. Quando escrevo sobre uma mulher eu me converto em mulher, quando escrevo sobre uma criança eu sou uma criança. Essa liberdade contraria a ideia comum que nascemos para ter uma única e singular identidade. Alguns insistem que a identidade pede pureza e essência. A única maneira de sermos puros, porém, é sermos híbridos. A verdade é que só seremos um se formos muitos. E só seremos felizes se abraçarmos identidades plurais, capazes de reinventarem e se misturarem em imprevisíveis simbioses e combinações.
Ensinaram-nos a ter medo da indefinição e da imprevisão. Mas nós brasileiros e moçambicanos construímos sociedades em que a previsão não passa de uma falível contingência. A força do oculto e do não nomeável é muito forte. Devemos tirar partido disso: inventemos para nós a identidade que nos apetecer. E façamo-lo não porque seja politicamente correcto mas porque nos dá prazer sermos o que somos, mesmo que não saibamos exactamente o que isso é. Só poderemos sentir prazer se criarmos um universo de diferença num mundo em que o futuro se está já a escrever apenas em inglês.
Aquilo que nos torna próximos — a nós falantes do português no Brasil, em Portugal e em África — não é apenas a língua mas componentes culturais e, sobretudo, religiosos. Fomos moldados e moldamos percepções do mundo que resultaram de migrações e transculturações antigas. Os nossos santos são os mesmos. Os nossos santos protectores — mesmo que neles não acreditemos — poderiam sentar-se nesta sala, no Rio, com o mesmo à vontade que manteriam em Lisboa, Maputo ou Luanda.
O que estaremos discutindo nestes dias não são questões académicas. O que está em debate é a possibilidade de sermos construtores de identidades que, tal como a criança da ilha, não podem ser medidas, nem reduzidas a um nome ou a um gesto. Estaremos falando, muito simplesmente, de identidades, línguas e marcas culturais que nos tornem mais felizes, mais humanos e mais solidários.
Esta é a derradeira história e, de novo, relembro algo ocorrido na EB da Inhaca. Numa noite escura, eu e os meus colegas acabávamos de jantar na varanda da Estação quando escutamos tambores e sinais de que haveria, algures, uma festa. Decidimos ver o que se passava. Quando chegamos deparamos não exactamente com uma festa mas com uma cerimónia de agradecimento pela chegada das chuvas. Ao redor de uma fogueira havia só mulheres de uma certa idade. Receberam-nos com a maior das simpatias, foram buscar cadeiras (os homens não se sentam no chão) e serviram-nos de ngovo, uma bebida fermentada. Considerei que seria de bom tom usar da palavra para agradecer a hospitalidade. Eu era o único branco entre os meus colegas e era o que menos falava o xironga, a língua local. Quando nos dirigimos ao centro do pátio, as mulheres fizeram silêncio e esperaram que começássemos a falar. O meu colega porém, foi mandado calar logo nas primeiras palavras: Eh, Eh, se é para dizerem quem são não queremos que falem, queremos que dancem. Vocês vão dizer quem são e de onde vieram através da dança.
Entrei em pânico. Eu não danço coisa nenhuma e essa inaptidão é tão funda que eu já imaginei que eu apenas escrevo porque não sei dançar. Mas o problema é que os meus colegas dançavam qualquer coisa irreconhecível, uma mistura de Michael Jackson e Zeca Pagodinho. As mulheres, ante o patético espectáculo, levantaram os braços e clamaram: podem parar que nós não sabemos que país será esse onde se dança assim.
Esse país onde se inventa uma identidade dançada é o mesmo onde o italiano continua ensinando lambada, a mesma nação onde Guimarães Rosa vai tornando as palavras dançáveis. E como diz o provérbio moçambicano: quem dança não é o que levanta poeira; quem dança é aquele que inventa o seu próprio chão.
E muito obrigado.
VALENTE, André (ORG.). Língua portuguesa e identidade. Rio de Janeiro: Caetés, 2008. pp. 11-22.
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