Paulo Colina: pequenas considerações descompromissadas
sobre este negro poeta-ensaísta instigante
Ricardo Riso
“Se a Literatura
não tem cor, por onde andam as negras e os negros escritores nas literaturas
brasileira e africanas de língua portuguesa?” Este será o tema para minha
participação em uma mesa de escritores durante o Griots 2014, na UFRN. Elaborando
o material para essa ocasião, releio o prefácio de Paulo Colina (1950-1999) para
“O Negro Escrito – apontamentos sobre a presença do negro na literatura
brasileira”, organizado por Oswaldo de Camargo. Paulo Colina é um nome
incontornável da literatura negro-brasileira por esgarçar as experiências
estético-formais, investir com ousadia na linguagem sem deixar de evidenciar a
marca de um sujeito lírico/narrador negro. Sua transnegressão (citando Ronald
Augusto a partir de feliz expressão poética de Arnaldo Xavier) prima muitas
vezes pela concisão, fugindo do excesso contemplando o sublime poético pelo
apreço à síntese, talvez originária do seu gosto pelo tanka, estilo poético
japonês. Como exemplo “Primeira regra de vôo”:
Quando sonhamos
com o horizonte
a precisão é
fundamental. (COLINA, 1984, p. 33)
Para além da produção
poética e ficcional, Colina organizou “Axé – antologia contemporânea de poesia
negra brasileira”, pela Global Editora em 1982, reunindo alguns dos principais
agentes da geração literária negra surgida ao final dos anos 1970. Procurando evidenciar
a expressividade nacional da nova poesia negro-brasileira, a publicação agrupa poetas
negrxs “fora do grande eixo São Paulo-Rio (como poderão constatar aqui)
escritores negros espalhados e ilhados de vários estados deste continente que
chamamos Brasil” (COLINA, 1982, p. 8-9). Importante mencionar a relação dos
literatxs com o movimento negro rearticulando-se naquele período de
abrandamento da ditadura, o que serviu como forma de iniciar esse intercâmbio e
propiciar ações coletivas e de alcance nacional (fato destacado por Miriam
Alves, Éle Semog e tantos outros), eliminando o isolamento característico de negrxs
escritores do passado. E “Axé” acabou sendo eleita a melhor publicação de
poesia do ano, prêmio oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte –
APCA.
Colina também foi
um dos fundadores do Quilombhoje, coletivo responsável pela série “Cadernos
Negros”. Com Oswaldo de Camargo e Abelardo Rodrigues, formou o que ficou
conhecido como “Triunvirato” após a saída do coletivo Quilombhoje por não
concordarem com os rumos deste, e lançaram o manifesto “O escritor negro no
Brasil, quem é ele?”. Negro ensaísta dos necessários, seguem duas amostras do
seu comprometimento literário e identitário. A primeira, o prefácio de Paulo
Colina para “O Negro Escrito – apontamentos sobre a presença do negro na literatura
brasileira”:
“Entendo que a função do escritor é dar testemunho
fiel de seu tempo, ser o observador ativo de sua sociedade; é colocar-se,
enquanto ser humano (homem/mulher), em confronto com o mundo. Seu instrumento,
não menos que a arte.
Por experiência, sei que toda vez que o “negro
escrito” aparece em um debate, uma conferência, uma palestra, surgem, de
pronto, as perguntas de rotina: “Mas por que literatura negra? Existe? A literatura
tem cor?” E sou obrigado a retroceder às análises que tenho feito desde que me
confronto com o mundo. Para chegar à conclusão de que à sociedade pátria
interessa o “negro mudo”.
Tudo uma questão de voz. Quer ver, leitor? Quando se
questiona a existência de uma literatura negra ou afro-brasileira – quero dizer,
o “negro escrito”, o escritor negro se expressando perante e enquanto mundo –,
existe aí uma tentativa de negação. Negação dos valores que o negro despe em
seu que-fazer literário. Bom adiantar não ser tema fundamental ao negro a
defesa da ecologia, nem a bolsa de valores ou o privê da moda. Frisar que a
sociedade brasileira se diz democraticamente racial. Essa grife. Que não
resiste à nudez.”
A segunda
encontra-se em “Reflexões pela noite viva”, comunicação apresentada no 40º
congresso anual da SBPC, em 1988:
“A literatura é universal, sim. Mas para nós tem
cor. Negra. Não no sentido que Gilberto Freyre quis dar a ela em seu prefácio a
“Poemas Negros”, de Jorge de Lima; tampouco no sentido contemplatório, na
terceira pessoa do singular, como nos entrega Raul Bopp. Quando cantamos “eu”,
este “eu” é coletivo. Seguramente, literatura para nós tem cor. E quando a chamamos de negra, mais que uma definição,
é uma arma de ponta com a qual combatemos todas as armadilhas que procuram nos
caçar o Ser, no sentido lato que este verbo exige, e que no último censo,
realizado em 1980, provou que não é conjugado nesta terra de acordo; que democracia
racial aqui é falácia, apenas. E, pela poesia, recuperamos nossas verdades,
nossas raízes. Quer falando de amor, quer questionando o racismo, fazendo a reversão
de valores ou revisando nossa história (e/ou). Recuperando nossa identidade,
sempre. (grifos nossos).”
A palavra
apunhalada de Paulo Colina destaca a necessária autodenominação para essa
vertente literária, rasurando o cânone, negando aqueles que foram eleitos como
representantes de uma literatura negra brasileira, demonstrando a hipocrisia
das nossas relações e a urgência de romper o véu branco que impede a realização
e a afirmação da pluralidade racial brasileira. Literatura negro-brasileira
necessária para despertar de consciências, para denunciar o racismo sistêmico
que estamos submetidos; literatura negro-brasileira para mostrar que algo vai
mal, muito mal entre nós, e que isso passa pelas ininterruptas tentativas de
branqueamento deste país.