Nas literaturas africanas de língua portuguesa a participação da mulher como voz criadora é discreta se compararmos à produção realizada pelos homens. Embora a mulher, especificamente a negra, tenha sido cantada e exaltada desde as primeiras manifestações literárias com Cordeiro da Mata e Caetano da Costa Alegre, por exemplo, a voz feminina propriamente dita somente viria a surgir já em meados do século XX com a são-tomense Alda Espírito Santo e a moçambicana Noémia de Sousa. Estas duas poetisas demonstraram em seus poemas as adversidades vivenciadas pelas mulheres dos seus países, as agressões do sistema colonial, o drama dos maridos contratados, a miséria e a dor encaradas com os ‘olhos secos’, prova de resistência a um quadro desigual.
A partir do pós-independência desses países as mulheres foram gradativamente conquistando seu espaço, aumentando a sua participação, diversificando e enriquecendo o corpo das referidas literaturas. Hoje, temos nomes respeitados como Paulina Chiziane e Livia Momplé em Moçambique, Ana Paula Tavares em Angola, Dina Salústio e Vera Duarte em Cabo Verde, e Odete Semedo em Guiné-Bissau. Esta última a motivadora deste texto.
Contudo, antes de comentarmos a poesia de Odete Semedo, vemos a necessidade em tecer breves considerações para compreendermos melhor a discreta atividade literária de Guiné-Bissau.
A literatura guineense surge tardiamente e em pouca quantidade em relação às outras colônias portuguesas – Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe – mas, como afirma Inocência Mata, há razões históricas e culturais para tal ausência, pois Guiné não recebia apoio financeiro da metrópole portuguesa, além da resistência ao colonialismo ter ocorrido até a segunda década do século XX, o que dificultou a instalação de uma elite colonial. Diante da dificuldade em estabilizar seus valores, o sistema educacional português foi implantado tardiamente.
Como era administrado por Cabo Verde, parte da elite em Guiné era formada por representantes do arquipélago, que era incentivada a se instalar no novo país para promover a miscigenação entre portugueses e guineenses. Em Guiné, assim como em Cabo Verde, o idioma oficial é o português, mas a língua falada no cotidiano é o
kriol (crioulo). Língua esta que viria a ser fundamental na luta colonial a partir de 1963, como afirma Amílcar Cabral, fundador do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde):
"O português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua é senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros... A língua é um instrumento que o homem criou através do trabalho, da luta para comunicar com os outros (...) a nossa língua tem que ser o português. E isso é uma honra. É a única coisa que podemos agradecer ao tuga." (CUNHA, 1977, pp. 80-81)
Apesar de Inocência Mata apontar para as décadas de 20 e 30 como precursoras da literatura guineense, partiremos para as manifestações poéticas de Vasco Cabral e Amílcar Cabral a partir dos anos 50 e, com maior intensidade, após o início da guerra colonial, com a poesia de combate, que o corpus literário guineense começa timidamente a criar forma. No período supracitado, os temas giram em torno das desigualdades sociais, da valorização da terra e do cidadão local, numa poesia que apresentava termos em
kriol e ritmo inspirado na tradição oral. Nesse quadro, são publicadas as primeiras antologias, motivadas pelos escassos recursos financeiros dos escritores, e poucos livros individuais, onde despontam nomes como Hélder Proença, Antonio Baticã Ferreira entre outros. As antologias configurar-se-ão importante espaço para a divulgação dos poetas já com o país independente, como
Mantenhas para quem luta!, fundamental historicamente por registrar o primeiro momento literário de um novo país, sem nenhuma tradição nas letras. Desde então, a opção por poemas feitos em
kriol afirma-se com mais intensidade.
Em seu primeiro livro de poesia,
Entre o ser e o amar, Odete Costa Semedo explora o bilingüismo do seu país ao publicar os poemas em português e
kriol, “de modo a proporcionar aos leitores um espaço de lazer, reflexão, crítica e encontro consigo mesmo”, segundo a poetisa. Todavia, ressalta, “nem todos os poemas são apresentados em duas versões, dado que uns foram escritos originalmente em
kriol e outros em português. E a tradução fá-los-ia perder a autenticidade” (SEMEDO, 1996, p. 7).
Segundo a própria Semedo em artigo intitulado
‘Língua esvoaçada’, “existe uma língua franca falada por cerca de 70 por cento da população de todo o país, o crioulo de base portuguesa, e uma língua oficial utilizada na administração e no ensino, o português, dominado por cerca de 12 por cento da população guineense”. O relato da poetisa vai ao encontro do que Celso Cunha afirmou nos anos 1970 de que "o máximo a que pode aspirar a língua portuguesa em África, especialmente em Cabo Verde e Guiné Bissau: a de ser oficialmente o que ela sempre foi: não a língua transmitida, maternal, mas a língua adquirida, a segunda língua, veicular da administração, aprendida na escola e elo de ligação da elite cultural com um mundo maior." (CUNHA, 1977, p. 80) Essa situação imposta pelo colonizador é geradora de grandes transtornos, pois, segundo Albert Memmi, “munido apenas de sua língua o colonizado é um estrangeiro dentro do seu próprio país” (MEMMI, 1977, p. 97), que está obrigado a dominá-la para ter acesso ao poder.
Sabemos que toda a língua pode ser e é usada como instrumento de poder, ou pode ser fascista como afirma Roland Barthes: “a língua, como desempenho de toda a linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (BARTHES, 1977, p. 14). Para solucionar tal impasse, Barthes propõe que a língua seja trapaceada através da arte, pois somente esta conseguirá quebrar o fascismo da língua:
Só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (...) porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é teatro. Posso portanto dizer, indiferentemente: literatura, escritura ou texto. As forças de liberdade não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, (...) mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua. (BARTHES, 2004, pp. 16-17)
A questão da língua é tratada e pensada com rigor por Odete Semedo, que assume o caráter híbrido de sua formação cultural. Não é à toa que a primeira parte do livro se chama "Oscilações", um conjunto de poemas que tratam de indefinições, da “incerteza dos sonhos”, de quem, como versa, “Oscilo tristemente / Entre a sombra e a penumbra” (SEMEDO, 1996, p. 15). E o problema da língua é apresentado logo no primeiro poema do livro:
Em que língua escrever
As declarações de amor?
Em que língua cantar
As histórias que ouvi contar?
Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?
Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Falarei em crioulo!
Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?
Ou terei que falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem
Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
No caminho da vida
Os netos e herdeiros
Saberão quem fomos (SEMEDO, 1996, p. 11)
A opção do crioulo, ou
kriol, como resistência e manifestação dos costumes do povo guineense é escancarada pela poetisa, além da preocupação em manter viva as tradições para as gerações futuras. A inquietação do ser começa na escolha da língua, que, ao mesmo tempo, une e segrega. Aceita a língua portuguesa, porém não desmerece a cultura da sua terra, as histórias e os homens do seu chão.
Poesia que trata das irrealizações do pós-independência, a distopia por causa dos ideais não atingidos, das incertezas dos caminhos trilhados por um país em formação:
“(...) Entre sonhos e utopias
Oscilo na miragem do macaréu
Que balança e engoda
O meu tormento
Entre o constante querer
E a incerteza dos sonhos
Da natureza morna... oscilo (...)” (Ibidem, p. 15)
São incertezas, inquietações próprias da existência que empurram o eu-lírico para a metalinguagem:
“Queria ser poeta
Ser humilde
Ser...
Tocar-me
Sentir-me envolta
Num manto de desassossego
E assim entender o ser (...)” (Ibidem, p. 17)
O poema reforça o vínculo do eu-lírico com a terra a que pertence, de uma identidade fraturada por séculos de ação repressora oriunda do sistema colonial, que sofre com as adversidades do tempo presente:
“Sou parte desta natureza
Tão gasta
Desta face da terra
Tão frágil e vasta
Sou o rio que corre
Tropeçando em pedras e vales
Para chegar ao seu destino
Não sou mulher nem homem
Sou apenas mais uma desta geração
Não sou homem nem mulher
Apenas um pedaço deste chão” (Ibidem, p. 31)
A instabilidade política guineense é sentida nos versos, situação que teria suas conseqüências no conflito armado de 1998/1999. A violência, a miséria e a dor de um povo que passa a possuir “olhos-que-já-não-acreditam”. O surrealismo da situação guineense inverte o ditado de São Thomé, o “ver para crer”:
“Meus olhos
Ilhas sem nome
Maré alta a transbordar no oceano
Ondas salgadas
Que insuportam o acordar
Vazias de vida
Meus olhos
Olhos sem nome
Precipitam e atentam
Contra o impávido
Meus olhos, nossos olhos
Ilhas sem nome
Aprisionados pelas mãos, pelos dedos
Soltam raios
Reconhecem outros olhos
E inacreditam esqueletos ousados
Abandonados pela carne
Espreitando
Meus olhos
Nossos olhos, todos os olhos
Ilhas sem nome
Ganharam um nome
Passaram a ser
Olhos-que-já-não-acreditam” (Ibidem, p. 63)
As contradições da vida são mostradas no vazio da distopia “da incerteza de um sonho indefinido”. Tristes são os versos, tristes são os olhos a buscar os sonhos esgarçados de uma existência dilacerada:
“Teus olhos...
Tristes e perdidos
Quase inocentes
Olhos tristes
Olhar longínquo
Não da dor do amor perdido
Mas da incerteza
De um sonho indefinido
Teus olhos
Perdidos no horizonte
Espelham a dor
De um sonho incerto
Teus olhos... tristes
Quase inocentes
Buscam a razão
Do incerto” (Ibidem, p. 75)
Entretanto, a poesia de Odete Costa Semedo não restringe-se apenas às dores da vida e às reflexões metafísicas, o desejo de ser mulher, a voz feminina do eu-lírico canta para o ser amado a vontade de protagonizar seus sentimentos:
“Quero ser a heroína
Do conto que inventares
Que firme segue o seu destino
Quero ser uma mortal
Guiada pelo teu poder
E pela tua voz
(...)
Quero ser a deusa lua no teu conto
Acompanhar as crianças
Nas suas fantasias
E no sonho seguir os seus desígnios
Quero ser a heroína do teu conto
Ou apenas um verso do teu canto” (Ibidem, p. 45)
“No desassossego do ser”, metapoeticamente, Odete Semedo tece versos que procuram a ruptura com um passado de sofrimento e angústia em uma “vida sem gosto”, e evoca a criança despersonalizada, ou o próprio eu-lírico, a caminhar na “aventura de palavras” em busca da esperança na “magia da poesia”. E, assim, redescobrir valores como amor, solidariedade e bondade:
“Vem comigo
Criança sem rosto
Segue-se nesta cantiga
E esquece a vida sem gosto
Vem criança
Amiga de ninguém
Dá-me a tua mão
E descobre comigo
A voz da esperança
Dá-me a tua mão, menino
Criança sem rosto
E caminha comigo
Nesta aventura de palavras
E vamos descobrir
Juntos
O enredo do pão
O encanto do amor
A suavidade do carinho
E as peripécias da paixão
Vem criança sem rosto
E sem rumo
Viajar comigo
Na magia da poesia
E vamos juntos
Descobrir um rosto
E a mão amiga” (Ibidem, p. 49)
Constatamos que é cantando a esperança, apresentando as inquietações de sua geração e denunciando a insensibilidade de um mundo de injustiças sociais que Odete Costa Semedo contribuiu e contribui com valores humanistas para a construção de uma literatura e identidade guineenses, consolidando-se como uma das destacadas vozes femininas dos países africanos de língua portuguesa.
“Flor sem nome
Em chão árido e seco
No deserto envolvente
Um fundo verde
De esperança longínqua...
Eu sou essa flor (...)” (Ibidem, p. 33)
Riso
OUTRAS POESIAS
SILHUETA DA DESVENTURA
Sou a sombra dum corpo que não existe
Sou o choro desesperado
Sou o eco de um grito articulado
Numa garganta sem forças
Sou um ponto no infinito
Silhueta da desventura
Perdida neste espaço
Vagueando... finjo existir
Insistem chamar-me criança
E eu insisto ser
A esperança do incerto
O meu tantã é de outros tempos
A melodia que oiço
É o crepitar de chamas
Confundindo-se com o roncar da fome
E o chão onde piso
É uma ilha de fogo
A minha nuvem é a fumaça
Da bala disparada
Gotas salgadas orvalham
O meu pequeno rosto
Enquanto choro
Na esperança do incerto (Ibidem, p. 27)
EU E A POESIA
Eu e a poesia
A confissão
O prazer
O gosto de dizer
Sem reprimir
O prazer de dar
O que se quer
A viagem segura
Num mundo incerto
A magia do som
Da música, do ritmo
O prazer da viagem
A visão da natureza
Pura ou não
A Providência sempre
Ou nunca presente
Poesia amor
Construção
Fuga e reencontro (Ibidem, p. 53)
VOZ
Olhos que falam por mim
Com voz de benjamim
Mãos de gestos seguros
Perturbando a insegurança
Da mente
Do espírito
E da alma desventurada
Pés que caminham
A passos largos
Desafiando o tempo
Caminhando...
A passos largos e firmes
Olhos
Mãos
Pés
Olhos meus
Sonhos teus
Que firmes
Descompassam
E fogem à desventura
Olhos, pés, mãos
Mãos e olhos
Num conjunto seguro
Insurgem
No desassossego do ser (Ibidem, p. 77)
ÑA ROSTU
Ña rostu bida lagua
Iagu di mare mansu
Na buska kamiñu di bom turpesa
Salus terbesan garganti
Ña pitu intchi dur
Fala ka pudi tustumuña pa mi
Iagu di mare mansu ku bida makare
Spidju di kasabi
Tustumuñu di ña flema
Tadja pa mi
Dja ku ña fala falsian (Ibidem, p. 100)
DJON GAGU
Sintidu ramangam
Korson n djutim
N pirdi susego
Ña sonu bua na bentu
Es i ke nubdadi?
N karga djon gago
Di dufuntu ku n ka n terá
N na iari iari
Sol fitcha pa mi
Ña blaña bida
Lala di ñara sikidu
Nin pa mermeri
Boka ka ten (Ibidem, p. 102)
NÃO DISSE NADA
Falei da língua
Da míngua
Da letra
(So)letrei a minha nostalgia
Lendo pasmado
Nos olhos desmesurados
O infinito (Ibidem, p. 107)
Bibliografia:
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 12ª edição, 2004.
CUNHA, Celso. Língua, nação, alienação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
MATA, Inocência. A literatura de Guiné-Bissau. In: LARANJEIRA, Pires. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.
MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
SEMEDO, Odete Costa. Entre o ser e o amar. Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.SEMEDO, Odete Costa. Língua esvoaçante. Acessado em 22/10/2007 In: http://djambadon.blogspot.com/2006_03_01_archive.html