Uma singela e valiosa colaboração do Prof. Ms. Rui Guilherme Gabriel (Universidade de Coimbra/Portugal) para este blog. Seguem dois poemas de Arménio Vieira, o vate maior da literatura de Cabo Verde, que foram publicados no jornal cabo-verdiano Voz di Povo em 1975, mas que não vieram a ser incluídos em seus livros.
Meu sincero agradecimento e um abraço fraterno ao Prof. Rui Guilherme.
Ricardo Riso
EVOCAÇÃO DA MINHA INFÂNCIA
Até mim
rumores…
farrapos dispersos da minha infância
minha infância
morta-sepultada-adormecida
em ataúde branco
com cadeado de ouro.
Farrapos da minha infância
nos seios-duros
da preta Xila despida no banho:
Menino-ladrão-de-prazer
Luxúria-a-estremecer espreitando
as coxas nuas da preta Xila.
Farrapos da minha infância…
Menino-sufocado-de-riso
bailando…
bailando perdido
nos berros histéricos de Nha Maninha-Doida.
Farrapos da minha infância
no lume-vermelho de cigarro furtado
na chaminé-revelação
do meu nariz em fumo.
Farrapos da minha infância
nos pardais
sangrados à pedra
na indescritível emoção
das pernas
tiros
e cenas de pancadaria
vendidos no cinema.
Farrapos da minha infância
desenrolando-se
nas selvagens fugas diárias
– com doidos-por-Mim-assobiados
– com cães-por-Mim-açulados
– com polícias-por-Mim-apupados
com o mundo no meu encalço.
Farrapos da minha infância
nas mágicas pedrinhas
atiradas ao pote
no contemplar-espantado no cais
de músculos inchados
levantando fardos.
Farrapos…
rumores da minha infância
no chocalhar de vidraças partidas
no clandestino buzinar de carros parados
nos berros de Nha Maninha-Doida…
Farrapos da minha infância
nas poderosas musculaturas
dos carregadores de cais
da minha infância…
morta-sepultura-adormecida
nas coxas interditas
da preta Xila.
(Um dos “três poemas in Mákua, 1. Sá da Bandeira, 1962 [na lombada: «1963»]”, segundo Ferreira e Moser. Também em Voz di Povo, n.º 103, Praia, 23 de Julho de 1977, p. 8) e em Resistência Africana, Serafim Ferreira (org.), Lisboa: Diabril, 1975, p. 57-58).
O CONDENADO
Sentou-se em cima do parapeito e por breves instantes olhou para o mar. A duzentos metros, se tanto, as ondas assemelhavam-se a pachorrentas vacas ruminando feno ao meio da tarde. O mar fora sempre uma das poucas alegrias da sua vida. Banhista solitário, ele relaxava-se tanto quanto era possível a um bom nadador, e com delícia entregava-se aos afagos do mar. Longe do mar era como se a vida, sem horizontes nem sonhos, o comprimisse entre duas sombrias paredes, cada vez mais estreitas com a passagem do tempo. O mar! E uma onda de nostalgia reprimiu-lhe o impulso, prolongando a sentença há muito ditada pelos seus demónios. Uma sentença implacável, inadiável, para ser cumprida, rigorosamente, naquele dia e naquele lugar. Um dos «espíritos», que o seguia de perto, a fim de zelar pela execução da sentença, sussurrou-lhe ao pé do ouvido, num tom martelado, imperativo: – Salta! O condenado voltou a contemplar as ondas, num derradeiro adeus. Tirou a camisa e os sapatos, pensando: um homem deve morrer nu, tal como nasceu. No entanto, reservas de pudor obrigaram-no a conservar as calças. Lançou um breve e comovente olhar ao único ser vivo ali presente: uma velhota pregada ao solo, indecisa e ofegante ante o insólito. O condenado benzeu-se, evitando olhar de novo para o mar, e atirou-se. A velhota levou a mão à frente e persignou-se.
Recolheram-no seminu do fundo do abismo, precisamente no sítio onde uma vala começava a ser aberta. Não tentaram reanimá-lo. Via-se bem: estava morto. Mais tarde, no hospital, constatou-se que o seu corpo, magrinho e cheio de escoriações provenientes da queda, apresentava várias fracturas. Da sua face, porém, desaparecera esse aspecto de tronco contorcido e rugoso que adquirira nesses anos todos de vaivém entre a taberna e os demónios. Suas feições, finalmente, valiam bem as de um santo que acabasse de transpor os umbrais do paraíso.
(in Voz di Povo, n.º 86, Praia, 26 de Março de 1977, p. 9).