domingo, 30 de junho de 2013

António Pedro (1909-1966) (A Nação)

António Pedro (1909-1966)

Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 302.
António Pedro da Costa nasceu na cidade da Praia, Ilha de Santiago, a 9/12/1909, e ainda na tenra idade foi para Portugal. Filho de pai português e mãe inglesa, estudou na Faculdade de Letras de Lisboa e na Sorbonne. Foi locutor da BBC. Atuou como poeta, artista plástico e teatro. No meio literário português ficou conhecido pela forte influência do surrealismo em suas obras, assim como entre os surrealistas ingleses. Veio a falecer na cidade do Minho (Portugal) em 17/8/1966.
António Pedro foi fundamental para a historiografia literária cabo-verdiana de língua portuguesa em razão de livro único de poesia, lançado no arquipélago em 1929, intitulado “Diário”. Prestes a completar vinte anos de idade, o poeta retornou a sua terra naquele ano e relacionou-se com pessoas como Jorge Barbosa. Essa convivência fecunda estimulou Barbosa a alçar outros voos literários para além dos anteriormente praticados nas ilhas, casos dos antecessores António Januário Leite, Pedro Cardoso e José Lopes.
A poética constante em “Diário” revelou um autor vinculado às tendências modernistas em voga na Europa. A versificação livre e o seu olhar distanciado para o cotidiano das ilhas foi carregado de ironia, comum a um jovem branco de formação europeia, que procurou se envolver com o meio novo ao qual era (re)apresentado. Destacada sua irreverência quando o sujeito lírico deparou-se com os ritmos locais: “Vi um batuque/ baque,/ bacanal!/ E fiquei de olhos cansados/ – pobres selvagens –/ a ver horas e horas/ rolar a mesma dança/ doida...”, ou quando referiu-se à morna: “E a morna/ morna,/ bole/ mole,/ já velha, sem ser antiga,/ num compasso de cantiga/ sexual.// Reminiscência dum fado/ que, dançado/ num maxixe,/ tem a tristeza postiça/ dum cansaço.” Com esse olhar diante do novo que António Pedro transformou esteticamente suas impressões, sem medos ou fingimentos.
Seu olhar de estrangeiro, porém, não ficou imune ao drama da seca: “Ai árvores ali/ e duras!,... ai!:/ e aqui/ terra queimada/ só.// Bé!,/ o pó/ da ventania/ sufoca!/... Lá na baía/ ou doca/ ou que é,/ lá do vapor/ parecia/ melhor,/ embora fosse careca/ a terra seca,/ e o sol queimasse/ e adormentasse/ já.// Cá/ há mais do que calor,/ há dor/do sol!”. Também atento às mudanças da paisagem com a chegada da chuva: “Chuva!,/ chuva que bonda!,/ chuva que tomba/ - bumba!...// Cheiro a chuva que embriaga.../ Chuva que alaga,/ e estraga o mal do sol.// Esverdinharam-se os montes/ - um poema! -/ ... foi em dois dias/ um poema...// Eram castanhos os montes/ e as árvores esgalhadas/ e atormentadas,/ e nuas...// Esverdinharam-se as árvores/ e as bordaduras/ das ruas”. Assim como a observação irônica das relações raciais no arquipélago: “Os brancos daqui/ são mais modestos que os pretos:/ os pretos chamam-se pretos,/ os brancos chamam-lhes gente daqui,/ e aqui.../ há brancos e pretos...”.
O livro “Diário”, de António Pedro, consagrou-o como precursor do modernismo na literatura cabo-verdiana, a percepção, ainda que distanciada para os aspectos sociais e culturais do arquipélago, trouxe uma nova guinada e serviu como motivação para os jovens escritores que buscavam romper com as formas ainda submissas e vinculadas ao colonizador português, fato que se confirmaria com a revista “Claridade” e poetas como Jorge Barbosa e Osvaldo Alcântara. Por isso, destacamos a relevância de António Pedro para o desenvolvimento da mais que secular literatura cabo-verdiana de língua portuguesa.
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Destacamos a forte presença de Cabo Verde no “VII Semana da África - Identidades africanas na produção audiovisual em África e na sua diáspora”, ocorrido em Salvador (Bahia/Brasil) de 20 a 25 de maio. A literatura fez-se presente com os escritores Filinto Elísio e Joaquim Arena, também estavam os colaboradores do “A Nação”, Márcia Souto (Uni-CV) e Ricardo Riso. Souto e Elísio lançaram seus livros “Fenestra” e “Me_xendo no baú”, respectivamente, durante o evento. Além da presença do Dr. Amarino Queiroz (UFRN), do Dr. Claudio Alves Furtado (Uni-CV), de António Tavares (coreógrafo) e dos cineastas Leão Lopes, Pedro Marcelino e César Schofield.

Aimé Césaire e a Negritude (A Nação)


Aimé Césaire e a Negritude
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 300, de 30 de maio de 2013, p. A28.
A Negritude surge como movimento político e cultural a partir da reunião de intelectuais negros africanos e da diáspora em Paris, França, nos anos 1930. Esse contato entre negros de diferentes localidades mostra pontos comuns nas condições adversas que encontram tanto na Europa quanto nos seus países, muitos ainda sob o colonialismo, o que rapidamente transforma-se na tomada de consciência racial.
No seu momento inicial, os partícipes da Negritude inspiram-se nos ideais políticos do marxismo e na estética inovadora do surrealismo a favor da denúncia da opressão sofrida pelos negros no mundo. Várias publicações sedimentam e revelam a efervescência da época, tais como Légitime Défense em 1932; o jornal L’Etudiant Noir com a participação de Aimé Césaire (Martinica), Léon G. Damas (Guiana), Leopold S. Senghor (Senegal) são os principais nomes da Negritude; e da Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française (1948), organizada por Senghor.
A Negritude escora-se na afirmação identitária negra, atenção para a situação desigual do negro na diáspora e luta contra o colonialismo, e o ataque de maneira frontal ao humanismo ocidental.
Aimé Césaire (1913-2008) utiliza a expressão negritude pela primeira vez, produz uma série de obras literárias, atua na política e torna-se voz explícita contra o colonialismo em África, apesar de não ter a mesma postura em relação ao seu país, a Martinica, talvez a maior contradição de seu pensamento. Para ele, a Negritude é o simples reconhecimento de ser negro, a aceitação de seu destino, de sua história, de sua cultura, que depois definiria em identidade (assumir plenamente a condição de negro), fidelidade (a ligação com a terra-mãe) e solidariedade (sentimento que liga todos os negros do mundo, a ajudá-los e a preservar uma identidade comum).
Césaire marca época quando menciona as contradições do marxismo e dos defensores da luta de classes. Tal fato evidencia-se na sua ruptura com o Partido Comunista Francês, na célebre Carta a Maurice Thorez, de 1956, em que afirma:
Não é a vontade de lutar a sós ou de desdenhar qualquer aliança. É a vontade de não confundir aliança com subordinação. Solidariedade com renúncia. (...) O que eu quero é que o marxismo e o comunismo sejam colocados ao serviço dos povos negros, e não os povos negros ao serviço do marxismo e do comunismo.
No ano anterior, Césaire escandaliza o Ocidente com o seu virulento Discurso sobre o Colonialismo com críticas vorazes à civilização europeia:
que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os ‘coolies’ da Índia e os negros de África estavam subordinados.
Em 1987, Miami/EUA, após longo silêncio, Césaire reafirma o caráter humanista da Negritude e o seu compromisso de revelar as rasuras da história, a validade de seus ideais:
Nós somos daqueles que se recusam a esquecer.
Nós somos daqueles que recusam a amnésia mesmo que seja como uma saída.

Ao longo de sua vida, Césaire demonstra a necessidade de um humanismo que englobe as diferenças, não os expostos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, mas que mantém o colonialismo ao redor do mundo.
Na sua vertente literária, vários de seus ideais estão explicitados no livro de poesia Cahier d’um retour au pays natal, publicado em 1939 e com versão definitiva em 1956. Neste enorme poema de forte presença surrealista, Césaire propõe um movimento de exaltação da raça negra, o orgulho apresenta-se a partir da subversão das conquistas celebradas pelos modelos brancocêntricos:
Mas que estranho orgulho de repente me ilumina?/ (...)Os que não inventaram nem a pólvora nem a bússola/ os que nunca souberam domar o vapor nem a eletricidade/ os que não exploraram nem os mares nem o céu/ mas aqueles sem os quais a terra seria a terra/ (...) a terra/ silo onde se preserva e amadurece o que a terra tem de mais terra/ minha negritude não é uma pedra, sua surdez lançada contra o clamor do dia/ minha negritude não é uma mancha de água morta sobre o olho morto da terra/ minha negritude não é uma torre nem uma catedral

Com Aimé Césaire a Negritude ganha a sua expressão mais politizada e radical, a defesa dos negros e de outro humanismo para todos os povos. Ideologia revolucionária, a Negritude passa a ser um referencial para os povos oprimidos do mundo, influenciando, inclusive, os escritores africanos de língua portuguesa que moram em Portugal e lançam a antologia Poesia negra de expressão portuguesa (1953), organizada por Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade.

Langston Hughes e o Harlem Renaissance (A Nação)


Langston Hughes e o Harlem Renaissance
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 297, de 9 de maio de 2013, p. A40.
Movimento de enorme alcance entre os negros norte-americanos na década de 1920, o Harlem Renaissance – ou New Negro, ou Black Renaissance – é motivado pelo deslocamento maciço de negros do sul dos Estados Unidos para as cidades de Chicago e Nova Iorque, fugindo do racismo explícito e violento do sul do país, ainda inconformado com o fim da escravidão. No Harlem, bairro nova-iorquino, os negros deparam-se com um ambiente de menor discriminação racial, favorável para a valorização e celebração das manifestações culturais e políticas negras, têm acesso a empregos e tornam a cidade de Nova Iorque a de maior comunidade negra dos EUA. Esse movimento multicultural busca no “renascimento” do negro a vontade exacerbada de renovar as artes negras a partir de uma herança afro-americana. Artes plásticas, teatro, dança, literatura e música encontram o seu momento de efervescência e da união de talentos como Bessie Smith, Louis Armstrong e Claude McKay.
Vários são os livros na década de 1920 que marcam uma nova representação do negro na literatura e contribuem para combater o preconceito racial. James Mercer Langston Hughes (1902-1967) é o poeta de maior expressividade do período. Filho de pai branco e mãe negra é logo reconhecido pela qualidade poética assim que seus textos passam a ser publicados. Hughes inova ao trazer para a poesia a oralidade do negro norte-americano, inspira-se nas sonoridades do blues e do jazz como manifestações genuínas do seu povo e imbui-se da tarefa de ser a voz capaz de interpretar e revelar o cotidiano dos seus pares.
O contato com África e Europa a bordo de um navio como camareiro nos primeiros anos da década de 1920, quando trabalha em subempregos na França, na Itália e nos Estados Unidos, aumenta sua percepção para os dramas dos negros em contato com os brancos. Toda essa vivência molda sua poesia com a experiência de ser negro no mundo. Dessa forma, os poemas percorrem o trajeto da experiência individual para a coletiva, passam a ser incisivos na defesa de sua etnia e na denúncia dos problemas enfrentados pelos negros. Para isso, sua poética desenvolve-se simples como a fala das pessoas dos lugares que convive, dialoga com os ritmos do blues e do jazz em ascensão na época. O poema “Eu também canto a América” é representativo dessa nova guinada:
Eu também canto a América.// Eu sou o irmão mais escuro./ Eles me mandam comer na cozinha/ Quando chega visita,/ Mas eu rio,/ E como bem,/ E vou crescendo.// Amanhã,/ Eu me sentarei à mesa,/ Quando houver visita./ Ninguém se atreverá/ A me dizer.// “Vai comer na cozinha”,/ Desta vez.// Além disso,/ Eles verão como sou belo/ E ficarão envergonhados./ Eu, também, sou América.
Neste poema a blackness reivindica o seu espaço de plena cidadania americana. O sujeito lírico identifica-se como “o irmão mais escuro” da América e quer igual tratamento ao enfrentar a segregação assumida. Poema de devir, o uso do gerúndio – “crescendo” – confirma o desenvolvimento da afirmação identitária; o tempo futuro demarcado pela aceitação do sujeito, pela ocupação do mesmo espaço. Agora, ele sabe da sua importância para a construção da América e a necessidade urgente para uma mudança de postura e de autoafirmação ao se reconhecer como “belo”, ofensa maior para uma sociedade racista. Com essa identificação, Hughes atenta a coletividade negra da América e das Américas para o orgulho negro, para a incontestável participação nas sociedades onde habitam.

O Harlem Renaissance perdura com menor intensidade nas duas décadas posteriores com destaque para os nomes de Richard Wright e Billie Holiday. Porém, o esplendor dos anos 1920 marca a cultura norte-americana e a dos negros, em especial. Lugar de redefinição da identidade negra, as trocas do Harlem Renaissance influenciam gerações de artistas – como as escritoras Alice Walker e Toni Morisson – e encontram na atuação poética e intelectual de Langston Hughes um dos seus momentos mais brilhantes.

ODETE COSTA SEMEDO – NO FUNDO DO CANTO (A Nação)

ODETE COSTA SEMEDO – NO FUNDO DO CANTO
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 295, de 25 de abril de 2013, p. A40.

A Guiné-Bissau é um país de parca produção literária e Odete Costa Semedo traz uma excelente contribuição para a poesia guineense com o seu livro “No fundo do canto”, de 2003.
Após o trauma do sangrento conflito armado entre 07/06/1998 e 07/05/1999, Semedo utilizou a experiência vivenciada como matéria poética para o canto-poema de seu livro: é “o desabafo escancarado de uma situação” (SEMEDO, 2007, p. 13) em que o país havia mergulhado por causa dos vários descaminhos políticos após a independência, em 1974.
“No fundo do canto” trata da história recente do país e do horror da guerra, e, a partir daí, afirmar a identidade nacional, buscando desconstruir a nação para reconstruí-la poeticamente. Para isso, Semedo nos introduz na multifacetada cultura das etnias guineenses, valendo-se do retorno às tradições, do culto aos antepassados e ao uso constante de vocábulos da língua crioulo que se misturam ao português.

Em poemas curtos ou longos; ora épicos, ora líricos; o sujeito lírico narra em primeira pessoa a guerra ou em terceira pessoa descreve fatos e determina vaticínios. Logo, apreendemos a crescente tensão política do país em quatro partes que se completam no decorrer da leitura, a saber: “No fundo... no fundo”, “A história dos trezentos e trinta e três dias”, “Consílio dos irans” e “Os embrulhos”.

Na primeira parte somos convocados pelo tcholonadur, o mensageiro, que se autoafirma o intermediário que narrará os acontecimentos: “Não te afastes / aproxima-te de mim / (...) pede-me que te mostre / o caminho do desassossego / o canto do sofrimento / porque sou eu o teu mensageiro / (...) vem... / senta-te que a história não é curta”.

O afastamento da cultura tradicional para que o país se enquadrasse na política internacional, exigia a modernização da nação em detrimento das promessas da revolução: “Veio a tecnologia / espreitou / mas não entrou / tropeçou num buraco / estava escuro / não deu com a entrada / e continuou na rua ao pé da casa / à espera de luz “.

“A história dos trezentos e trinta e três dias” denuncia a agonia dos guineenses com o cruel conflito. O caos estabelecido pela violência dos militares nacionais e estrangeiros acompanha o horror da poetisa: “venceram a ganância / a violência / e o desespero / E nós? / não acredito / no que os meus olhos vêem”. O vaticínio se cumpriu; os ideais da libertação, minados: “Um mundo de promessas / foi deixado para trás”. Surge a distopia: “Bissau não quis acreditar / que estava sendo violada / violentada / adulterada (...) / nua deitou-se de bruços / para receber chicotadas / para receber açoite”.

No “Consílio dos Irans”, a convocação das entidades de todas as etnias e subetnias, seus irans e totens em rituais, mostra a pluralidade cultural guineense. As linhagens anunciam-se, é feita a kontrada (grande reunião) com irans (divindades protetoras) de todas as djorsons (linhagens), porque “há culpados... / Que não fiquem mudos / nem impunes”. Semedo recorre à religiosidade tradicional para reconstruir a fragmentada identidade nacional através da identidade coletiva e procura salvar a nação da guerra.

Entretanto, o rompimento com a exploração se dá quando todas as etnias se unem, ou seja, o país se recompõe pela reconciliação de seus filhos, sem apoio estrangeiro. A força dos antepassados e das entidades emerge a nação: “Os irans das djorsons sentiram / Guiné e Bissau uma só / erguendo-se com vigor / reafirmando sua força (...) / invocaram todas as energias / do alto às profundezas do mar / e o chão foi abençoado”.


Depreendemos após a leitura de “No fundo do canto”, que, Odete Semedo, testemunha do conflito de 1998/1999, denuncia o horror da guerra, usa a ironia para desmascarar o discurso da classe dominante e o mal que o neoliberalismo encoberta. Em seu texto, propõe, através de alegorias e da desconstrução da realidade do país, a revalorização da multifacetada cultura guineense em favor da identidade e soberania nacionais. 

Eulalia Bernard (Costa Rica) (A Nação)

Eulalia Bernard (Costa Rica)
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 293, de 11 de abril de 2013, p. E21.
As histórias das nações do continente americano são marcadas pelo silenciamento da participação dos negros na construção desses países. Retirados à força da África, a presença negra é mencionada durante o absurdo da violenta escravidão, depois com os processos de abolição, porém mantém-se silêncio sepulcral à revolução dos negros escravizados no Haiti (1804) e posterior expulsão dos colonizadores franceses. Uma humilhação para europeus e elites coloniais temerosos que uma onda revolucionária negra expandisse pelas Américas, que legou ao ostracismo para o restante do mundo a digna revolta antiescravagista liderada por Toussaint Louverture.
O cânone das literaturas americanas participa desse processo de ocultar os negros tanto nas personagens como na autoria. Em razão disso, uma das funções do texto literário produzido por negros é o seu caráter testemunhal, revisitando as rasuras da história, rompendo com os estereótipos impostos pelo preconceito racial, exigindo o reconhecimento da dignidade dos negros e da sua contribuição na formação de seus países.
Na Costa Rica, pequeno país da América Central, não poderia ser diferente e Eulalia Bernard (1935) é um nome que se impõe ao romper com essa perspectiva. Nascida em Limón, filha de jamaicanos, professora de literatura, criadora da cátedra de estudos afro-americanos na Universidade da Costa Rica em 1981.
“Ritmohéroe” (Editorial Costa Rica, 1982), livro de estreia desta poetisa negra, a primeira a ter publicação individual no seu país, procura retratar a peculiar presença dos negros na Costa Rica e os embates para construir uma identidade costa-riquenha. O prefácio de Quince Duncan revela que a diáspora negra na Costa Rica começa com a chegada de negros antilhanos – maioria jamaicanos – para construção de ferrovias ao final do século XIX. Depois, os negros passam a trabalhar no cultivo da banana. Essa primeira geração concentra-se na cidade de Limón, comunica-se em inglês e objetiva juntar economias para retornar à Jamaica. A partir de 1930, o país atravessa grave crise econômica, o regime fascista impõe o uso do idioma espanhol e força a assimilação cultural dos negros. A segunda geração relaciona-se com a Jamaica como um Éden, Limón como sua cidade e que guarda certos valores da cultura negra. Em 1960, a geração seguinte reage a esse processo, busca suas raízes e a contribuição dos negros para o país. Desde então esse processo vem sendo fortalecido pela quarta geração já nos anos 1980, tendo na inserção às universidades a marca para a disputa de novas epistemologias para pensar a população negra na Costa Rica.
Na sua poesia a fé católica surge não como resignação, mas como forma de questionamento diante das injustiças sociais: “Y el negro rezó/ pero Jesús no lo oyó/ y el negro rezó/ pero La Virgen no lo vio/ rezó el negro/ el negro rezó/ (...) el negro no más rezó/ el negro el fusil tomó/ el negro habló y habló/ Jesús lo oyó/ la Virgen lo vio/ con su voz de fusil/ y su estómago de reloj”. A urgência de mudanças apresenta-se na brevidade dos versos a partir da não manifestação de apoio das figuras bíblicas de Jesus e da Virgem Maria, que podem ser transpassadas para a indiferença de uma sociedade calcada na exclusão. Resta à população negra a voz insurgente para a emergência de seu tempo.
Dentre as marcas culturais dos negros na Costa Rica, a festa do carnaval é celebrada em alguns poemas como o momento de liberdade e gozo para os negros: “El Carnaval,/ vamos, veamos los negros brincar,/ que trabajo no les vamos a dar.// El Carnaval,/ siéntete rey o reina del mar,/ negro!, es tu única oportunidad”. Realidade comum lá e cá.
O amadurecimento identitário, o pertencimento à nação e o mito do paraíso perdido se dá em “Requiem a mi primo jamaiquino”: “Soy negro del campo,/ del Valle La Estrella./ Soy uma estrella negra/ em el flamante Blanco, azul y rojo/ de nuestra bandera”. A ruptura com o motivo edênico da Jamaica para a primeira geração de negros na Costa Rica surge com a identificação ao novo lugar, ao Valle La Estrela, e com o símbolo nacional da bandeira. Com isso, na zona de tensão caracterizada o entrecruzamento cultural aparece no uso da língua para a comunidade de Limón, ora espanhol, ora inglês, ou no uso do ‘spainenglish’: “Sí Seño;/ soy costarricense,/ aunque apellidado este/ con ‘insky’, ‘man’, o ‘Le’”.
É na transgressão da ordem estabelecida que a poesia de Eulalia Bernard desvela a participação dos negros na formação identitária costa-riquenha, tendo na ancestralidade do tambor a subversão da palavra escrita, da religião, da língua. A força da poesia ao ritmo do tambor, signo marcante da poética negra presente tanto no brasileiro Carlos de Assumpção quanto no martinicano Aimé Césaire, ou ainda no moçambicano José Craveirinha: “Mi poesía es um tamborileo. (A veces fuerte) con ritmos multiplicados por el fervor fuerte./ (...)En mi poesía el tambor es lira y el ritmo es el soneto. Yo soy la mambo del culto ancestro// Sé decir sí, sé decir ‘yes’. Sé decir lo que quiero en las lenguas que prefiero, con el habla del tambor./ En mi poesía, cada palabra es un dios. Cada dios es un ritmo, cada ritmo cópula, cada cópula un canto./ Mi poesía es. Hazte tambor y amarás mi canto”.

Estes são rápidos momentos da poética de Eulália Bernard, integrante dessa poética negro-diaspórica que incomoda com seus deslocamentos estéticos, semânticos, sintáticos, os cânones literários.

Cruz e Sousa – o negro branco (A Nação)

Cruz e Sousa – o negro branco


Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 289, de 14 de março de 2013, p. E18

Embora João da Cruz e Sousa seja o maior nome do Simbolismo brasileiro, a nossa historiografia literária dedicou-lhe uma equivocada atenção ao considerar seus poemas acríticos a sua condição de negro em um período efervescente da história brasileira, com o fim da escravidão (1888) e a proclamação da República (1889). Contra essa história das ausências que uma considerável fortuna crítica, com destaque para “A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e Lima Barreto”, tese de doutorado de Cuti, vem sendo desenvolvida à margem do cânone para anular o embranquecimento imposto. Frisa-se que fato parecido ocorre(u) com a obra de Machado de Assis e o silenciamento da Academia diante do livro “Machado afrodescendente”, de Eduardo de Assis Duarte.
A biografia “Cruz e Sousa – o negro branco” (São Paulo: Brasiliense, 2003), feita pelo também consagrado poeta Paulo Leminski (1944-1989), contribui para a dificuldade do cânone em exaltar a genialidade de um negro e que essa vivência apareça em sua obra. Logo, estranha-se o fato de seu poema “Emparedado”, em que explicita o ser negro, apenas mais dentre tantos outros poemas, seja ignorado pela crítica especializada. Afinal, não somos racistas, escreveu alguém muito importante.
Cruz e Sousa nasceu escravo em 24/11/1861, em Nossa Senhora do Desterro, estado de Santa Catarina, e morreu* no Rio de Janeiro em 1898. Foi adotado pelos proprietários de seus pais que lhe deram educação e todos os direitos proibidos aos negros. O poeta aproveitou-os e destacou-se pela inteligência incomum, sendo a prova do absurdo das teses racistas do período. A vida de negro no mundo dos brancos aguçou a consciência dupla escancarada para além das conversões simbolistas, sua tormenta oriunda do meio em que viveu transformou-se esteticamente, trazendo para a poesia os conflitos do homem negro emparedado, castrado no mundo dos brancos, mas sem jamais submeter-se. Seu simbolismo tem a alvura de Rimbaud e outros, mas é carregado da subversão consciente dos impedimentos. Ele enegreceu o Simbolismo e forçou os críticos a atentar para a livre expansão dos signos em imagens viscerais, o que Leminski identificou como expressionista. Interessante a ousadia de deslocar o cânone para o Poeta do Desterro, já que o “Expressionismo não existe na história das formas literárias, no Brasil”.
Com isso, célebre o poema “Caveira” no qual a relação das três estrofes com a gradação do vocábulo caveira e da pontuação exclamativa demonstra as diferenças fenotípicas – olhos azuis, nariz de linha, boca de curva leve – são anuladas pela morte. Para Leminski, tem poetas cuja vida é, por si só, um signo, e elege “a figura de retórica mais adequada para a vida de Cruz e Sousa é o oxímoro, a figura de ironia, que diz uma coisa dizendo outra”, já presente no provocante título da obra.
Gratificantes as considerações de Leminski acerca da rejeição dos literatos brasileiros ao Simbolismo destacando o momento de auge do Parnasianismo de Olavo Bilac e outros da Casa Grande – o Rio de Janeiro – com seu egocentrismo e de sentidos corretos, enquanto o Simbolismo desenvolveu-se em cidades periféricas, e o negro Cruz e Sousa com sua poesia sinestésico-visceral de destruição e ampliação dos sentidos causava estranheza. Assinala-se a relevância das múltiplas citações às culturas negras diaspóricas, à religiosidade negra brasileira, à música negro-poética de Gilberto Gil e Bob Marley e a referências literárias. Leminski construiu uma biografia alinear, concisa, de exaltação ao Simbolismo, essa expressão máxima da palavra poética, apresentou exemplos do uso do aspecto visual e expansão dos signos foram importantes para o movimento e, sobretudo, a admiração a Cruz e Sousa.
Para concluir, a maneira envolvente como Leminski acrescentou elementos autobiográficos ao biografado flexionou o conceito de biografia, para além das diversas referências culturais engrandecendo o texto. O filho de pai polonês e mãe negra brasileira, esse polaco negro buscou completar-se nesse outro atormentado – tormentas terríveis vivenciou Leminski – pelo trânsito em dois mundos, assumindo-se como o outro. E assim encerra:
“Perfeição só existe na integração / dissolução do sujeito no objeto.
Na tradução do eu no outro.
É por isso que você gostou tanto deste livro.
Você, agora, sabe.

Você, eu sou Cruz e Sousa.”

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É errônea a informação do local de morte de Cruz e Sousa na biografia feita por Paulo Leminski. O poeta faleceu na cidade de Sítio, estado de Minas Gerais, a 19 de março de 1898.

Arménio Vieira - Metaliteratura em “No Inferno” (A Nação)

Metaliteratura em “No Inferno”
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 287, de 28 de fevereiro de 2013, p. E18
Um escritor é convidado por um mecenas para escrever um romance. Para tal empreitada é enclausurado em uma casa que possui uma vastíssima biblioteca, mas para ter sua liberdade de volta, tem um ano para fazê-lo e necessita que esse romance seja considerado excelente por um júri. Caso este o avalie como uma obra prima, imediata a libertação. Como alternativa a essas exigências, o escritor pode decifrar incontáveis códigos de vários cacifos, porém é logo desencorajado em razão do tempo que pode levar para atingir sua meta.
As condições inquestionáveis transformam-se no inferno ao qual se encontra o personagem-narrador-autor deste (não)romance realizado por Arménio Vieira: “No Inferno” (Praia, Mindelo: Centro Cultural Português, 1999). A obra de Arménio caracteriza-se pelo esgarçamento das fronteiras literárias comuns ao sistema literário cabo-verdiano, afastando-se, quando muitas vezes, subvertendo o legado claridoso, ou melhor, um anticlaridoso como bem apontou José Luis Hopffer C. Almada. De sua lavra, dentre outros, “Poemas”, “O eleito do Sol” e “MITOgrafias”, além da participação em jornais e revistas desde os anos 1960. Galardoado com Prêmio Camões em 2009.
Em “No Inferno”, Vieira vai ao extremo da metalinguagem ao realizar um “romance” no qual a maior homenageada é a Literatura, principalmente a ocidental, com incontáveis referências aos cânones – Homero, Dante, Shakespeare, Rimbaud – e personagens consagrados ao longo dos anos – Fausto, Godot, Robinson Crusoé, Romeu, Ulisses –, em uma enorme colcha de retalhos, fragmentos que se fundem, refundem numa história assaz criativa acerca da condição desesperada de um escritor, originalmente poeta, para cumprir a sua tarefa.
Assinaláveis as ocorrências de natureza autobiográfica ao longo do texto, a ausência de memória identitária do narrador-personagem e a maneira habilidosa e envolvente como o autor conduz o leitor a esse jogo. Por outro lado, da imensa biblioteca à disposição do personagem surge a surpresa com a lembrança de livros inteiros, transcrevendo-os. É a ironia, figura de retórica tão característica na obra de Vieira. A partir daí, a frustração com o que escrever, uma vez que o gênero romance se esgotou.
Delírios desordenados aparecem em diálogos absurdos aos quais Robinson – que transmuta-se em Leopold, Romeu, Safo, seja lá quem for – quando desanda a escrever não cria romances, mas contos, pequenas histórias. A narrativa avança nas intertextualidades, mas, questiona-se: e o romance, quando começa a escrevê-lo? Cada vez mais rápida e inusitada segue a narrativa e o leitor à espera de algo que não acontece. O que, de maneira nenhuma, gera frustração a quem lê, mas sim satisfação com a inventividade de “(u)m escritor talvez inconcebível fora de uma literatura-metalinguagem”, em feliz assertiva da prefaciadora Clara Seabra.
Arménio Vieira vai ao extremo do que a literatura pode oferecer como revelação do mundo e de transformar cada um de nós a partir de dentro, como bem afirma Tzvetan Todorov em “A literatura em perigo” (2010). A literatura pode muito, Vieira sabe e faz isso muito bem a partir de um imenso – por vezes dá impressão de inesgotável – repertório, construindo intertextualidades que cairiam fáceis na pura vaidade e suposta complexidade oca da maioria dos autores contemporâneos. Entretanto, Arménio não é um escritor narcisista e submete o fazer literário à vanglória. Sendo assim, consegue estremecer o leitor com uma inesgotável capacidade de surpreendê-lo a partir de referências díspares, de Walt Disney a Dante, passando por Goethe, James Dean, Safo e Michael Jackson, e assim alcança uma metaliteratura com a construção desse envolvente (não)romance “No Inferno”.

Da metáfora da clausura na ilha à clausura do escritor para escrever, do esgotamento do romance ou não, Arménio Vieira, como o próprio sinaliza em Nota Prévia, cultiva o seu jardim, assim como Hemingway, Camus, García-Márquez e Saramago; e conforme estes, saiu-se muito bem. 

Lêdo Ivo (A Nação)

Lêdo Ivo
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 285, de 14 de fevereiro de 2013, p. E14
No dia 23/12/2012 encantou-se um dos maiores representantes da literatura brasileira: o escritor Lêdo Ivo. Nascido a 18/2/1924, em Maceió, Alagoas, estado do nordeste brasileiro, ficcionista, ensaísta, memorialista, porém consagrou-se como poeta, Lêdo Ivo integrou a chamada “Geração de 45”. Contudo, tal definição serviu apenas para demarcar as propostas opositoras dos novos escritores ao movimento modernista de 1922, com seu coloquialismo, versificação livre, concentrada temática nacionalista etc., Ainda assim, Lêdo Ivo apresentou-se indomável desde suas letras seminais, constatada em “Poesia Completa 1940-2004” (Top Books/Braskem).
A geração de Ivo viu-se diante de enorme desafio, pois a década anterior havia revelado poetas do porte de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Jorge de Lima. Logo, para Ivo e todos os outros a busca por uma identidade poética era árdua. Com isso, fortaleceu-se nesses escritores o retorno a um rigor métrico e formal exigente com o valor estético e a depuração da linguagem, tendo na poesia de João Cabral de Melo Neto o seu exemplo maior. Lêdo Ivo correspondeu a esses pressupostos, entretanto, transgressor por natureza, passeou ora pelo soneto, ora pela versificação desmedida como no poema “Justificação do Poeta”, do seu livro de estreia, “As imaginações” (1944): “Pai, meus pensamentos não cabem na tua sala com piano tranquilo a um lado e escuras cadeiras vazias perto da janela/ meus inquietos pensamentos não cabem na saleta com flores morrendo nos jarros e paisagens sorrindo nas molduras/ deixa que eles atinjam além das cortinas azuis e caminhem para muito além das janelas abertas”. A metáfora da paisagem fixa da casa burguesa e do enfrentamento da figura paterna anunciou uma polifonia que vasculharia os riscos ilimitados da palavra poética.
Com o passar dos anos, a temática da poesia de Lêdo Ivo concentrou-se em questões ontológicas e metafísicas, mas jamais abandonado o caráter memorialista e regionalista, característicos de outros escritores nordestinos, tais como José Lins do Rêgo e Graciliano Ramos. A transitoriedade da vida passou a ser uma preocupação constante do poeta, “Felicito-me a mim mesmo por ser transitório./ Sempre tive medo da eternidade” (p. 262). Navegou do efêmero ao eterno com furor criativo de quem não tinha temor da folha em branco de papel: “Vejo o mundo com os olhos feridos pelas estrelas/ e os pulsos queimados pelas estações” (p. 262). Da sua pena, sem medo, o inefável era o alvo a ser atingido: “Não quero achar o que os outros perderam (...)/ Ao que ninguém viu, aspiro; (...)/ Quero, sonho e admiro o inédito (...)/ Não me comove o irretornável, nem o tempo caído./ Em jogo descoberto, crio minha emoção/ e à janela contemplo a noite formal/ e eu mesmo sou ogiva aberta aos grandes astros. (...)/ E sempre adiante busco/ minha paisagem impor-se nas paliçadas alheias” (p. 266).
Também caminhou por uma poesia mais engajada comum na década de 1960, na qual teve no seu contemporâneo Ferreira Gullar um dos seus cultores e os textos inspirados na literatura de cordel quando estava envolvido com o CPC da (UNE). Ivo com o livro “Estação central” de 1964, ano do início da ditadura militar no Brasil, mostrou-se sensível aos problemas sociais e ao clima de reivindicação da época. O poema “Primeira Lição” é um exemplo: “Um dia num muro/ Ivo soletrou/ a liçã da plebe.// E aprendeu a ver./ Ivo viu a ave?/ Ivo viu o ovo?// Na nova cartilha/ Ivo viu a greve/ Ivo viu o povo” (p. 437).

Já no livro “Plenilúnio” (2004), Ivo subverteu Bernardo Soares: “Minha pátria não é a língua portuguesa./ Nenhuma língua é a pátria. (...)// Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria muda,/ minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário, minha pátria sem língua e sem palavras” (pp. 1027-8). Ou seja, do alto dos 80 anos de idade Lêdo Ivo não perdeu o vigor de surpreender e de inquietar retinas e mentes inertes.

Conceição Lima - Canto obscuro da memória (A Nação)


Canto obscuro da memória
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 283, de 31 de janeiro de 2013, p. E14
Os agentes das literaturas africanas de língua portuguesa revisitam fatos, reconstroem acontecimentos, desvelam personagens rasurados pelos anos de colonização e de uma história escrita por um discurso hegemônico alheio aos interesses dos colonizados. Com o advento das independências em meados dos anos 1970, essas literaturas passaram a desenvolver releituras até então silenciadas nos tempos de antanho. O direito a significar mencionado por Homi Bhabha passa a ser exercido e o texto literário transforma-se no espaço para tensionar os apagamentos do passado, oferecendo a possibilidade do direito à memória àquelas vozes que deveriam sair da subalternidade.
Evidente que em uma “nova” ordem a disputa de poder permanece e outras negociações são realizadas. O ensaísta uruguaio Hugo Achugar destaca que o ato de narrar não é só para quem quer, mas de quem sabe e possui o direito ao relato, de escolher e decidir na tensão entre o esquecimento e a memória. Nesse sentido, quando as instâncias de poder são controladas por homens a voz feminina permanece excluída. Por isso, que ressaltamos o enorme interesse nas literaturas produzidas por mulheres, principalmente negras, pois são as vozes que sofrem maior silenciamento.
A obra poética da são-tomense Conceição Lima (1961) remexe incômodos do passado, estremece a inércia do presente, inquieta e pressiona para possibilidades de leituras diversificadas para o futuro por meio de sua linguagem contradiscursiva. Substanciada na condição feminina, os poemas de São Lima – como é carinhosamente conhecida – abordam diversos aspectos que angustiam seus conterrâneos e todos que se indignam com as injustiças impostas aos negros entre outras minorias. Seu livro “A dolorosa raiz do Micondó” (2011, 2ª ed.), o 2º de três obras, revela o quanto a poesia feita com esmero pode surpreender e agraciar aos sentidos indiferentes. Para isso, destaco o longo poema “Canto obscuro às raízes”.
Neste poema, o sujeito poético trata com habilidade um drama para os negros da diáspora: a origem de seus antepassados africanos. Assim, inspira-se na obra do escritor afro-americano Alex Haley, autor de “Raízes”, que narra a obsessiva recolha para reconstruir o caminho feito por seu antepassado forçosamente retirado da África no século XVII e escravizado nos EUA, “que ao olvido dos arquivos/ e à memória dos griots Mandinga/ resgatou o caminho para Juffure,/ a aldeia de Kunta Kinte –/ seu último avô africano/ primeiro na América”.
Porém, como percorrer esse caminho de retorno? Apesar de impor o seu direito à voz, “eu, a que agora fala”, o sujeito poético transparece a agonia diante da impossibilidade de reconstruir o percurso de seus antepassados, “não encontrei em Libreville o caminho para Juffure.// Perdi-me na linearidade das fronteiras”. Entretanto, ainda que os versos chamem atenção para a incompletude do ser negro, isso revela a necessidade de negociar a homogeneização autoritária das narrativas identitárias e das nações que ocultam o passado dos negros escravizados. É o que Stuart Hall assinala como enormes esforços empreendidos para a reconstrução das rotas fragmentárias e tornar o invisível visível. “[E]ncontrei em ti, Libreville, o injusto património a que chamo casa”, revela a memória fragmentada nessa arena de disputa permanente.

É com a emergência desses novos atores sociais que a poesia de Conceição Lima contribui para combater o esquecimento imposto pelo discurso dominante: “Eu, a peregrina que não encontrou o caminho para Juffure/ Eu, a nómada que regressará sempre a Juffure”. A insistência do sujeito poético mostra que a impossibilidade de reconstruir a origem da população negra na diáspora foi fruto do descaso da elite hegemônica branca. Não medir esforços para resgatar esses trajetos é colaborar com esse esquecimento imposto, negando histórias plurais ainda silenciadas pela manutenção da obscuridade das diferenças, tanto no Brasil quanto em Cabo Verde, Argentina, Cuba, São Tomé e Príncipe...

40 anos sem Amílcar Cabral (A Nação)

40 anos sem Amílcar Cabral
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 281, de 17 de janeiro de 2013, p. A26
Amílcar Cabral, o líder maior do PAIGC e da luta pela independência das nações irmãs Cabo Verde e Guiné-Bissau, completará quarenta anos de sua morte no próximo dia 20 de janeiro. Cabral foi um dos nomes relevantes para libertação do continente africano, escrutinando ao longo de sua curta vida político-intelectual uma teoria crítica para a independência plena dos países africanos. A sua defesa pela unidade africana com um novo viés inserido no contexto das lutas anticoloniais perpassava pela união Cabo Verde-Guiné-Bissau, pois “esses territórios por diversas vezes estiveram sob uma mesma administração, conformando uma única província” (ANJOS, p. 163) e retomando de forma subversiva a união formulada pela colônia portuguesa “ao mesmo tempo que representaria uma contribuição original à unidade africana” (CABRAL, p. 45).
Cabral era um líder cônscio dos problemas de seu tempo expostos por fragilidades de diversas ordens, tais como os parcos recursos econômicos substanciados na agricultura e pesca principalmente, as dissidências políticas e as desestabilizações promovidas em meio a uma Guerra Fria bipolarizadora do mundo, passando pelo neocolonialismo motivado pelas autonomias negociadas com as antigas colônias e o empobrecimento de quadros competentes nas futuras nações e os desvios éticos de seus líderes, como afirmava a seguir: “[ele] opõe-se à exploração de sentimentos identitários por indivíduos ou grupos no momento da sua articulação no domínio sociopolítico (...). Os ‘sentimentos étnicos’ não constituem problemas em si próprios. Só existe perigo quando esses sentimentos são exacerbados por dirigentes oportunistas e ambiciosos à procura da sua promoção pessoal” (WICKS, p. 86).
Dentre outros aspectos teóricos, talvez os mais interessantes para a tentativa de criação de uma unidade e efetiva participação dos cabo-verdianos na luta contra o colonialismo tenha sido as provocações de “retorno às origens e reafricanização dos espíritos”, uma vez que esse viés à África foi contrário à valorização da mestiçagem proposta pelos intelectuais da revista “Claridade” e sua aproximação ao continente europeu. Era este o pensamento predominante e também apoiado pelo colonialismo. Para o sociólogo cabo-verdiano Gabriel Fernandes: “é fundamentalmente a partir da recusa dos traços culturais africanos e da plena assunção dos lusitanos que a nova elite intenta afastar-se dos colonizados e aproximar-se do colonizador. Nessa operação, instaura-se uma espécie de dinâmica automutiladora, na qual, sob os influxos teórico-epistemológicos resgatados ao Brasil, idealizou-se ‘um mundo que o português criou’ e em que o africano não entrou ou está prestes a sair” (FERNANDES, p. 17).
Entretanto, para a urgência do momento histórico por que a “estratégia por trás da formulação da identidade mestiça não busca romper, mas situar-se mais confortavelmente no jogo” (ANJOS, p. 156), caso dos intelectuais claridosos e referente ao que Fernandes mencionou como “mínimo cultural compartilhado”, que os mantinha como cidadãos de segunda classe, porém, continua o ensaísta, a emergência das formulações de Cabral do “retorno às origens também favoreceu uma autoconfrontação dos artífices identitários com o anverso e o não-ponderável da sua produção, pondo a descoberto todos os vieses de uma identidade que se afirmou autonegando-se” (FERNANDES, p. 20).
O originário pensamento de Cabral gerou críticas e oposições de diferentes prismas, sendo combatido internamente inclusive. Como suas ideias eram contrárias ao neocolonialismo e de difícil aceitação pelos dissidentes internos, motivaram o seu assassinato. Fato comum aos grandes líderes pan-africanistas da época. Para a literatura, Cabral foi enfático ao defender a transcendência da mensagem da geração claridoso, “o sonho tem que ser outro” e estimulou autores incisivos como Onésimo da Silveira e Mário Fonseca, e encontra na obra poética de José Luis Hopffer Almada a revisitação de seu passado.

BIBLIOGRAFIA:
ANJOS, José Carlos dos. Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde: lutas de definição da identidade nacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS; Cabo Verde: Instituto de Investigação Promoção e Património Culturais – INIPC, 2004.
FERNANDES, Gabriel. A diluição da África: uma interpretação da saga identitária cabo-verdiana no panorama político (pós)colonial. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2002.

WICK, Alexis. A nação no pensamento de Amílcar Cabral. In: LOPES, Carlos (Org.). Desafios contemporâneos da África – o legado de Amílcar Cabral. São Paulo: Editora da UNESP, 2012. p. 69-106.

Luís Romano - Clima (A Nação)

Luis Romano - Clima
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 268, de 18 de outubro de 2012, p. E15
Luís Romano de Madeira Melo nasceu a 10 de junho de 1922 na Vila da Ponta do Sol, ilha de Santo Antão, e faleceu a 22 de janeiro de 2010 na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, onde radicou-se e publicou boa parte de sua vasta e diversificada obra que inclui romances, poesia, contos, ensaios e crônicas, “que, na diáspora, perseverou no cultivo do amor à sua terra de origem, concebendo-a sempre como elo entre terras e culturas”, segundo a Dra. Simone Caputo Gomes na homenagem póstuma “Luís Romano: patrimônio intelectual caboverdianobrasileiro (Um depoimento)”.
Com destaque para “Famintos” (1962), “Negrume/Lzimparin, contos cabo-verdeanos” (1973) e “Cem anos de literatura caboverdiana” (1985), Romano organizou com Maria Helena Sato a antologia “António Januário Leite – o poeta além-vale” (2005). Também poliglota, foi defensor da língua materna como língua oficial do arquipélago chegando à conclusão “de que a língua cabo-verdeana procede dialetalmente de um antigo português quinhentista, então praticado nas ilhas durante as Navegações, e, como língua nacional, enquadra-se na categoria das neo-latinas, como testemunho inegável” (ROMANO; SATO, 2005, p. 204).
Aqui trataremos do livro “Clima” (1963, Recife) que reúne uma grande quantidade de poemas distribuídos nos sete cadernos das suas 308 páginas, o que prejudica de certa maneira a qualidade do livro, pois alguns poemas são dispensáveis para a estampa do livro, no nosso entendimento. Entretanto, tamanho fôlego corresponde à postura desse incansável art’vista demonstrada pela versatilidade linguística em poemas na língua portuguesa, língua materna cabo-verdeana e francês, estes reunidos no caderno “Climat”, assim como a inclusão de um caderno com poemas em prosa.
A versificação livre do neorrealismo é a característica predominante em seus poemas. A virulência a qual denuncia as mazelas sociais assemelha-se aos poemas de Mário Fonseca e Onésimo da Silveira. Inquestionável sua postura na defesa dos cidadãos desfavorecidos, o sujeito lírico de Romano angustia-se com o Humanismo – “esse sonho inexistente” (p. 137), para o qual as ideologias da época – “a farsa do socialismo” (p. 136) – não conseguem contemplar. Por isso, a contundência exposta com a mancha gráfica ao afirmar a sua postura contra as injustiças no emblemático “O que sou”: “Não é preciso que me indiquem a classe a que DEVO PERTENCER,/ (...) SOU DA CLASSE HUMANA: eis tudo” (p. 209).
Humanismo que não o deixa insensível aos problemas raciais e à discriminação sofrida pelos negros, “porque na verdade/ ser negro é tam natural/ quanto é/ a origem da espécie humana” (p. 234). Fato que nem sempre é lembrado, por isso chama o “Irmão Branco” para rever seus conceitos: “escuta-me um momento/ ainda é tempo/ porque te falo de irmão para irmão/ – No mistério daquilo que nos formou/ – considera-me –/ Só isso nos basta/ Só isso/ e estende-me tua mão” (p. 236). O poeta também aborda a violência sexual das relações etnicorraciais durante a colonização, fato nem sempre lembrado quando se exalta a mestiçagem: “A negra que varre o escritório/ teve um filho pardo do patrão branco./ (...) O patrão arranjou outras negras para ter filhos/ como quem muda de cigarros/ ou de camisas” (p. 141).
“Clima” é sobretudo um livro caboverdeano no qual a insularidade reforçou o olhar corrosivo à realidade do arquipélago, de compromisso com o seu tempo, de crença na função social da literatura, de amor: “Cabo Verde, Meu Drama, Meu Espanto,/ Meu Berço de Fôlhas,/ ansiedade e pranto,/ esfumando-se ante meus olhos/ como toada triste de morna distante/ para eu dormir sonhando tranquilamente,/ sonhando eternamente Contigo” (p. 181).
*

A resenha aqui presente somente foi possível graças à oferta generosa do livro “Clima” pelo amigo Eidson Miguel, pesquisador atento da obra de Luís Romano desde a graduação e que vem dando continuidade na pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), estado no qual Romano viveu.

Rasuras da História desveladas na Poesia (A Nação)


Rasuras da História desveladas na Poesia
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 263, de 13 de setembro de 2012, p. E18
As diversas revoltas contra o sistema escravocrata ocorridas no século XIX aparecem de forma tímida na literatura cabo-verdiana, principalmente se levarmos em conta que “raramente aqueles escritores (‘da geração claridosa’) se debruçam sobre as grandes revoltas camponesas da ilha de Santiago. Mas descrevem repetidamente as revoltas urbanas do Mindelo ao qual se sentem associados”, de acordo com José Carlos Gomes dos Anjos em “Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde” (2006, p. 139), como exemplo o mitificado Ambrósio, versado por Gabriel Mariano.
Uma vertente bastante marcante da obra poética de José Luis Hopffer Almada é o resgate de cenários, protagonistas e revoltas antiescravocratas do passado, principalmente da ilha de Santiago, buscando a valorização da afro-crioulidade identitária conforme o próprio poeta esclarece a este jornal na sua edição 92: “A memória é um lugar onde se podem resguardar muitos milagres. Lugar de refúgio e de ancoragem, pode por outro lado ser constantemente reencenado nos termos propostos pela imaginação e pelo engenho do criador que se propõe revisitá-la. Para além dessa pressão incontornável, creio importante empreender algum labor de resgate do passado histórico de Cabo Verde e, especialmente, de Santiago, ilha particularmente vituperada durante grande parte do período colonial e do período pós-Independência. Tem-se por vezes a impressão de que alguns se especializaram na ocultação da história da ilha, das suas populações, das suas elites, das suas manifestações culturais mais características... Contra a amnésia (deliberada e induzida) há que contrapor a memória e as suas revisitações. (...) A interpretação do passado mediante o discurso científico não substitui todavia o que ao poeta, ao escritor e ao artista da palavra compete: criar emoções e comoções presentes com o olhar debruçado sobre as circunstâncias e os afectos dos nossos antepassados, reencenados no palco imaginário da nossa memória e da nossa genealogia.”
Contra a amnésia induzida que estranhamente ignora um contexto histórico de contestação à ordem estabelecida no século XIX presente nas revoltas dos Engenhos (1822), Monte Agarro (1835) e Achada Falcão (1842), dentre outros fatores, as invasões napoleônicas, a fuga da Família Real, a independência do Brasil às lutas liberais em Portugal (VIEIRA,1993;1999), valemo-nos do que Jacques Derrida menciona como “suplementar” para preencher as rasuras que se apresentam na literatura a partir de um contradiscurso inclusivo, pois para o ensaísta o “signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais como suplemento (...), suprir uma falta do lado do significado” (DERRIDA, 1971, p. 245).
Com esta perspectiva que Hopffer Almada procura desvelar o passado colonial cabo-verdiano nos poemas de seu heterônimo NZé dy Sant’Y’Águ, tal como aparece no poema “Monte-Agarro”, incluído no livro Praianas (2009, p. 95-96). Este poema retrata a malograda insurreição antiescravocrata protagonizada por Gervásio, Narciso e Domingos em 1835, que pretendia extinguir o sistema escravista, matar os senhores brancos e tomar a ilha de Santiago, tornando-a um Haiti cabo-verdiano (ALMADA, 2007). Entretanto, com o insucesso “era esse o destino/ de monte-agarro fonteana/ julangue serra-malagueta/ e dos cavalos da sua noite exausta/ resfolegando contra os próceres/ do morgadio e do pelourinho...” (2009, p. 96).
Encerra-se o poema recordando outras revoltas malogradas, mas permanece a dimensão humanística da obra de José Luis Hopffer Almada conotada à evocação da filosofia ubuntu dos direitos humanos proferida pelo filósofo Mogobe Ramose no artigo “Globalização e Ubuntu”, que resgata o aforismo “Motho ke motho ka batho”, que “afirma ser humano é afirmar a humanidade própria através do reconhecimento da humanidade dos outros e, sobre tal embasamento, estabelecer relações humanas entre eles” (2010, p. 212).

50 anos de Seló (A Nação)

50 anos de Seló
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 261, de 30 de agosto de 2012, p. E14
No dia 25 de maio de 1962, incorporada ao jornal Notícias de Cabo Verde, nº 321, surgia o primeiro exemplar de Seló – Página dos Novíssimos, organizada por Rolando Vera-Cruz Martins, Jorge Miranda Alfama e Osvaldo Osório, com modestíssimas duas páginas contendo contos e poemas dos nomes supracitados mais a participação de Mário Fonseca. Três meses depois, em 28 de agosto, sairia o segundo e derradeiro número de Seló, o mesmo número de páginas, os integrantes da edição inicial acrescidos do vate Arménio Vieira e da ilustre presença feminina de Maria Margarida Mascarenhas, sendo um conto a sua contribuição.
Celebrar este primeiro cinquentenário vejo como um dever com a história da literatura cabo-verdiana. Seló surge em um contexto histórico de enorme efervescência com as lutas contra o colonialismo espalhadas por todo o continente africano, os países tornavam-se independentes, ainda que poucos com líderes pan-africanistas e propostas progressivas, casos de Gana, sob liderança de Kwame Nkrumah, e Guiné, com Sekou Touré. Amílcar Cabral liderava o PAIGC e inflamava a mente dos jovens nesse tempo de utopia. Apesar de toda essa avalanche que percorria a África, Portugal mantinha-se irredutível ao negar a ruína do império ultramarino, restando apenas a opção pela guerra colonial. Legítima, por sinal.
No meio desse processo, a repressão nas colônias portuguesas aumenta consideravelmente, os jornais passam a ter maior vigilância, os jovens escritores não encontram espaços generosos para mostrar seus trabalhos, basta recordar as duas experiências ao final dos anos 1950, Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes e Suplemento Cultural. Porém, o recrudescimento da repressão imposta pela PIDE não inibe a coragem desses neófitos escritores, que não abandonam a palavra insurreta e fazem do texto literário o veículo de conscientização de seus pares. Como uma espécie de nota introdutória do suplemento, Osvaldo Osório revela no texto “Reflexões” as propostas incisivas dentro de um discurso contra-hegemônico que orientam esse pequeno grupo de escritores: “e a Seló, (...) continuará a aflorar problemas e vivências do espírito ‘aqui’ e no tempo a que este se concerne – quase condicionada, na sua expressão, pelos problemas cíclicos do homem caboverdeano”.
Bom exemplo disso é a veemência de alguns poemas de Mário Fonseca, tal como “Fome” no qual o poeta escancara a miséria que assola o arquipélago com um expressionismo enfurecido: “Gargalhadas de escárneo/ Rasgando/ Até as comissuras dos lábios/ Máscaras irônicas/ Mascarando dores/ Sorrisos de hipocrisia/ Desfazendo em blocos/ Caras mulatas/ Escondendo a fome (...) E a fome a desfazer-se/ Em sorrisos de hipocrisia/ E a fome a desfazer-se/ Em irônicas gargalhadas”; ou ainda na habilidade do sujeito lírico posicionar-se tanto de forma distante quanto de se incluir no drama com a mudança pronominal no primeiro verso de “Os Estrangeiros”: “Lá vão eles! Vedê-os! Vedê-nos!”. A ênfase exclamativa chama atenção para uma realidade que não pode mais passar despercebida e o poeta assume o seu comprometimento ao lado dos desfavorecidos: “Eles caminham cambaleantes/ E eu vou com eles/ Pelos caminhos/ Do desespero e da angústia/ Rumo à noite mais profunda do nada”.
Tais como “crianças rejuvenescidas/ que já não temem o lobisomem/ que vinha à meia-noite chupar-lhes o sangue”, em versos de “No fim da jornada”, poema de Jorge Miranda Alfama, esses escritores fortalecem-se na concretização do sonho da pátria livre, renovam a esperança, denunciam sem medo os problemas de seu tempo. Partem para a reconfiguração dos sentimentos, necessários e urgentes como pede o momento, e assim versa Arménio Vieira: “Mar!/ do não-repartido/ do sonho afrontado// Mar!/ Quem sentiu mar?”

Coragem, ousadia e determinação para tornarem-se agentes da história, esses escritores assumiram a missão de seu tempo e todas as homenagens são poucas para este primeiro cinquentenário de Seló – Página dos Novíssimos.

Wanasema e Fliafro (A Nação)

Wanasema e Fliafro
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 249, de 7 de junho de 2012, p. E5
A virada de maio para junho deste ano rendeu boas discussões a respeito das relações literatura negro-brasileira e literaturas africanas de língua portuguesa no Rio de Janeiro, durante o evento 1º Wanasema – Festival Internacional de Diálogos Artístico-Interculturais – encontro da literatura negro-brasileira com a literatura moçambicana, e em Belo Horizonte com a FLIAFRO 2012 – Festa Literária de Expressões Indígenas, Africanas e Afro-brasileiras, com o tema Leitura, Diversidade e Sustentabilidade Social.

O Wanasema é um evento com idealização minha e da Drª Fernanda Felisberto (Kitabu Livraria Negra) e tem como principal objetivo estabelecer a aproximação das manifestações artísticas da cultura negro-brasileira com os países africanos e demais países da diáspora africana, tendo a literatura como o principal interlocutor dessas relações. Com a fundamental parceria do Renascença Clube, com o pronto atendimento de seu presidente, Sr. José Evangelista de Oliveira, o empenho da Srª Edilea Sylvério e da Srª Nanci Rosa, VP do Departamento Cultural e Artístico do clube, e patrocínio do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro-COMDEDINE, o Wanasema aconteceu no dia 23 de maio.

Pela primeira vez em comitiva para um evento literário, a nova geração de escritores moçambicanos foi representada por Aurélio Furdela, Lucílio Manjate e Sangare Okapi; enquanto do Brasil marcaram presença os escritores Éle Semog e Helena Theodoro, e o Dr. Henrique Freitas (UFBA) e a Drª Iris Amâncio (UFF/RJ e da Nandyala – Livraria e Editora). Com duas mesas, uma sobre prosa e outra, poesia, as mediações ficaram a cargo da Drª Fernanda Felisberto e deste que aqui escreve, respectivamente. As restrições do mercado editorial hegemônico, a cansativa repetição de autores afro-lusos publicados e alternativas para inserir escritores negros africanos no mercado brasileiro, além do papel da lei 10.639/2003, que obriga o ensino da cultura, história e literaturas africanas e afro-brasileiro em toda a educação básica brasileira, e as relações entre Brasil e Moçambique foram alguns dos pontos abordados pelos palestrantes obtendo excelente retorno do público participante, que lotou a quadra do clube.

A FLIAFRO 2012 é uma festa organizada pela Nandyala Livraria e Editora, e teve mais de 70 palestrantes entre brasileiros e estrangeiros. Nesta edição, os escritores Pedro Matos e Vera Duarte representaram Cabo Verde, sendo que ambos constam no catálogo da editora, Matos com o livro de poesia “Midju de Fogo”, e Duarte lançou durante a festa o premiado romance “A Candidata”, a sua estreia no mercado brasileiro. Os dois integraram a mesa “Literatura Afro-Brasileira e Literaturas Africanas: diálogos e desafios” ao lado dos escritores Waldemar Euzébio, Aldrei Anunciação, Lia Vieira, Miriam Alves, Conceição Evaristo e Cacique Kaun Poty. O bate-papo foi coordenado pelo são-tomense Abdelasay de Sousa (Rádio UFMG) e participei como debatedor.

Devido ao espaço restrito, mencionarei somente a participação dos cabo-verdianos. Vera Duarte abordou a relação Brasil-Cabo Verde em três momentos assim determinados por ela: 1º a dor, os escravos vindos de Cabo Verde para o Brasil; 2º a assimilação, o modernismo brasileiro revolucionando a literatura cabo-verdiana; e 3º o amor, a relação mútua de aproximação cultural Brasil-Cabo Verde na contemporaneidade. Ao final de sua explanação, a autora recebeu aplausos calorosos do público. Já Pedro Matos, também bastante aplaudido, falou do desafio de escrever de uma forma simples e com cuidado estético para o público infanto-juvenil brasileiro a partir de aspectos culturais de Cabo Verde até então desconhecidos, e a preocupação de resgatar as memórias já dispersas da vida rural da Ilha do Fogo.


Imensa é a satisfação de acompanhar os laços culturais cada vez mais fortes entre Brasil, Cabo Verde e países africanos. Na terça, 5 de junho, tem mais: o lançamento de “A Candidata”, de Vera Duarte, na Kitabu Livraria Negra, no Rio de Janeiro.