sexta-feira, 30 de abril de 2010

Homenagem a Pepetela realizada pelo Senhor Magnífico Reitor da Universidade de Cabo Verde

Pepetela, escritor angolano, recebeu na quarta-feira - dia 28/04 - o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Algarve - Portugal.
Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos é natural de Benguela, cidade do litoral sul de Angola, onde nasceu em 1941. Licenciado em Sociologia, Pepetela participou activamente do movimento de libertação de Angola, nas fileiras do MPLA.
O seu primeiro romance, Mayombe, retrata as vidas e os pensamentos de um grupo de guerrilheiros em Cabinda, durante a luta de libertação. Da sua bibliografia fazem parte títulos como Yaka, A Geração da Utopia, A Gloriosa Família, Lueji, Jaime Bunda, Predadores, O Quase Fim do Mundo e O Planalto e a Estepe.
Além de escritor, galardoado com diversos prémios internacionais, entre eles o Prémio Camões, Pepetela é docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade Agostinho Neto, em Luanda.
A seguir o discurso de Homenagem a Pepetela proferido pelo Magnífico Reitor da Universidade de Cabo Verde, Antonio Correia e Silva, gentilmente enviado pelo escritor cabo-verdiano Filinto Elísio. 
 
Ricardo Riso (os parágrafos 2o., 3o. e 4o. foram extraídos da revista África 21)
 
Homenagem a Pepetela realizada pelo Senhor Magnífico Reitor da Universidade de Cabo Verde,

Elogio de Pepetela na Cerimónia de Honoris Causa

Senhor Magnífico Reitor da Universidade do Algarve,
Senhor Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior,
Senhor Embaixador da República Popular de Angola,
Senhores Membros dos Órgãos de Governo da Universidade,
Senhor Homenageado, caro afilhado,
Minhas senhoras e meus senhores,

Consintam que as minhas primeiras palavras sejam para expressar, para lá do exercício de mera retórica de circunstância, o quão honrado me sinto em participar nesta cerimónia, mormente na posição de padrinho de um escritor que faz parte integrante das minhas referências literárias, políticas e até afectivas. Em gerações diferentes – e não posso dizer que a minha geração não tenha também as suas utopias e as distopias – ambos sofremos, lutámos e sonhámos com a África. Honrado também, Magnífico Reitor, caro amigo, Prof. João Guerreiro, por estar aqui, na Universidade do Algarve, que é prova provada de que a condição periférica nunca representou a impossibilidade de se construir a excelência científica e pedagógica das Academias. Assumindo eu a condição de Reitor de uma jovem universidade, de um país igualmente jovem e periférico, olho para a universidade que V. Excia preside como um caso inspirador e gerador de esperança.

Por estas razões, e por outras mais, que são de foro íntimo, peço-vos que relevem a emoção que me embarga a voz. Peço-vos, igualmente, que relevem a minha falta de erudição, ou mesmo o meu despreparo, para fazer um elogio à altura dos méritos do meu afiliado que, como sabeis, são muitos, mas mais do que isso, estão sempre a surpreender-nos, livro a livro, numa produtividade notável. Despreparo de que falo não é, como ocorre amiúde em circunstâncias semelhantes, um acto de retórica, uma humildade, digamos assim, vaidosa, própria de académicos, que visa, acima de tudo, agradar ainda mais o ouvinte. Não sendo eu um académico versado em estudos literários (afinal de contas sou um simples sociólogo apaixonado pela História), a literatura para mim tem uma taxonomia simples. Taxonomia que, desconfio, não colher uma grande aprovação dos estudiosos, pois ela divide toda a literatura mundial em apenas duas categorias: a) a que eu gosto; b) a que não gosto. Suspeito, por isso, que eu esteja um pouco desarmado perante uma obra literária complexa que fala do Negro e do Branco, da Paz e da Guerra, da Realidade e da Utopia, do Passado e do Presente, da África e da Europa, do Planalto e da Estepe. Que posso eu então dizer diante de uma literatura que se recusou a encerrar-se em si própria e tem a permanente ambição de reflectir os tempos e, (porque não?), de os reescrever? Com a vossa licença e complacência, queria tecer apenas palavras breves, quiçá, breves de mais acerca da obra do autor, que fui conhecendo sem qualquer pretensão académica ou outra, apenas pelo prazer da leitura, pelo deslumbramento da descoberta e pelo reconhecimento das afinidades existentes entre a realidade que ele narra e a minha história de africano, de ex-colonizado, de falante do português, para só falar destas afinidades. Então, sou a dizer-vos o seguinte:

A despeito de uma ideia que hoje faz escola, entendo que não há como desligar a escrita de Pepetela de um projecto político mais amplo, nascido na periferia do império colonial português – periferia onde eu também nasci, embora num colonialismo já tardio e agonizante, – um projecto político, dizia, que visou justamente transformar as periferias em centros, as subalternidades em protagonistas, os povos a civilizar e a assimilar em nações, os homens que eram então objecto de uma escrita que os deformava, porque produto de uma perspectiva exógena, por isso cultora de exotismos, em actores da História e também autores da escrita sobre si próprios. Como se quem quisesse ser actor da sua própria história tivesse, antes, que começar por ser autor. É que a ruptura, a primeira, consiste precisamente em passar do estatuto de povos sobre quais se escreve ao de povos que escrevem. Eis a subversão instaurada por homens como este que, aqui e agora, a morena Universidade do Algarve homenageia com a atribuição do título de Doutor Honoris Causa. Ele faz parte da subversão histórica que representou “coloniais” a escrever sobre a sua própria realidade e a partir de suas próprias vivências. Realço este criar de uma relação consigo próprio, este acto reflexivo, pois se situa nele o ponto de viragem. Não que antes dos anos 40, 50 e 60 do século XX, os coloniais não escreviam literatura de ficção com base em suas experiências pessoais e sensoriais. Estaria a faltar com a verdade e a induzir em erro se sustentasse tal tese. Fizeram-no, é verdade, contudo maioritariamente vendo a sua própria realidade com lunetas metropolitanas. A assunção da condição de escritor da periferia, a começar da periferia colonial, instaurou a subversão da relação sujeito/objecto da escrita, facto que traz embutido imediatamente outras subversões: de linguagem, de temáticas, de recepção e de públicos.

Como historiador e africano, reputo que não há como escapar deste marco zero, desta espécie de pecado ou virtude política original, já que a história, toda a história, tem pelo menos dois lados. Por mais que agora, e com isso não pretendo polemizar e nem contestar os advogados da autonomia do campo literário ou estético face à dinâmica política, se venha a dizer que literatura é literatura e política é política. Gostaria tão-somente de sublinhar, num esforço de entender devida e completamente a obra do homenageado, a intencionalidade política da sua escrita, a sua voluntária, consciente e desejada inscrição num movimento histórico. Sem isso, nada é compreensível. Mas ao dizer isso, devo igualmente realçar que a maneira como o autor se inscreve neste movimento, a relação entre a sua escrita e a intenção da desconstrução do colonialismo e da construção da nação nova não é mecânica, linear e panfletária, o que, a ser assim, comprometeria eventualmente a qualidade literária do seu texto.

Para mim, o grande potencial libertador, ou, antes disso, subversivo dos melhores escritores cabo-verdianos, angolanos, moçambicanos da Geração da Casa dos Estudantes do Império, e mesmo posteriores, não reside apenas e nem maioritariamente, como poderia parecer, no acto de denúncia das situações de opressão colonial e de desencontro do pós-independência. Mas no simples facto de terem resgatado e iluminado o que antes era periférico geográfica e literariamente, ou seja, a vida do musseque, do mocambo, das ilhas remotas, das cidades desordenadas, com as suas grandezas e misérias, a vida que antes ficava fora da moldura da escrita prestigiada, e era literal e literariamente obscena. É isso que marca a ruptura. A mudança da relação entre o que é incluído e o excluído, entre o que é digno da palavra literária e o que não o é.

Pepetela faz parte do grupo de escritores que trouxe a periferia para a literatura, mas também para a História. Aliás, um dos pressupostos do colonialismo, tornando-o viável enquanto Projecto Político é justamente a negação da História dos colonizados. É talvez por isso que a sua literatura é essencialmente histórica e, por consequência, anti-colonial. Isso em vários sentidos desta expressão. Como historiador, permitam que me debruce um pouco mais sobre este ponto de vista. O autor mergulha sucessivamente na História profunda de Angola, recriando-a literariamente. É o caso do seu livro A Revolta da Casa dos Ídolos, inspirado, segundo o próprio, numa referência fugaz existente eventualmente no Cavazzi, uma das grandes fontes da história de Angola. Mas talvez a ligação entre a literatura e história atinja maior complexidade num outro livro intitulado, Yaka. Este mergulho na História profunda, inclusive, de uma Angola pré-colonial reflecte eventualmente duas intencionalidades. Uma, consciente e buscada explicitamente, e outra, quiçá, menos consciente.

A primeira tem tudo a ver com a negação da ideia de que a história dos colonizados, a existir, só poderia ser das duas, uma: ou a narrativa dos colonizadores, isto é, dos governadores, dos traficantes de escravos, dos cobradores de impostos metropolitanos levada a cabo fora do seu território de origem, numa versão em que os africanos seriam cifras de escravos vendidos, almas a resgatar da barbárie pela acção missionária, pessoas refractárias à acção civilizadora, ou então o vazio, a repetição, a impossibilidade do movimento hegeliano. O autor mostra a África, neste caso, a Angola – ou o embrião histórico dela –, como portadora de uma história endógena. Própria. Anterior, por um lado, e simultânea, por outro, à aparição dos portugueses, portugueses que chegam, não para iniciar a história, mas sim, para serem mais um elemento a integrar-se nela. Uma história, de resto, marcada sempre, na visão do autor, pelo encontro, quando não mesmo pelo encontrão, das identidades. Todo o encontro não encobre desencontros? Esta dúvida corrosiva assalta-nos permanentemente quando percorremos os livros de Pepetela. Na luta de libertação, em Luanda pós-independência percorrida por um cão, na Geração Utopia a construção do amanhã está eivado de contradições, de horizontes nebulosos? Aliás, este é um dos traços sociológicos da sua literatura. Mas voltemos. A outra intencionalidade inscrita na busca da História, repito, quiçá inconsciente, é a procura do enraizamento, a tentativa de exorcizar a origem exógena dele próprio, numa Angola, apesar da existência de um projecto político postulador da aceitação pacífica da ideia de uma sociedade multi-racial, é traumaticamente dividida pelas fronteiras de cor, de região e de língua. Pior: numa Angola sob a ameaça espectral destas fronteiras, assentes que se encontram sobre falhas de profundidade quase tectónica. O património histórico é, por conseguinte, estratégico às intenções do escritor, pois ele une povos, criando uma genealogia comum para a Nação a construir.

Outra constante dos livros do escritor homenageado é a presença da infância como um tempo de harmonia, de confraternização inter-racial e inter-classista, tempo esse que embora desapareça com a idade, permanece contudo como referência subversiva e crítica da ordem social. O passado, individual ou colectivo, é sempre interpelador do presente.

Talvez na obra de Pepetela tudo seja História. Longínqua ou recente. Mesmo as estórias são história. As Aventuras de Ngunga e o Mayombe, este último sem dúvida o grande romance de referência sobre a Luta de Libertação Nacional, abordam um tema que tem produzido escassa produção literária nos países africanos de expressão portuguesa. Curioso, ou talvez não, contrariamente ao que se esperaria de um antigo guerrilheiro e um posterior ministro de uma Angola independente, Mayombe não é um romance épico, exaltador e apoteótico. O movimento de libertação é um campo de encontro de gente que aspira ao fim da opressão colonial, mas igualmente espaço de desencontros de personalidades, de identidades étnicas, de concepções políticas, por isso, um campo sempre minado de contradições. Com minas que, tais como as outras, são a seu modo profundamente amputantes. O inimigo, passe a expressão, não é apenas exterior, mas também interno à luta. E a luta é múltipla, multidireccional, muldimensional. Neste particular, lembro-me, li Mayombe nos meus 20/21anos e de quando o ter lido, ter-me lembrado das reflexões de Amilcar Cabral, que encarava a luta de libertação como acto de cultura, um processo de desconstrução de antigas divisões étnicas e regionais em favor de novas sociabilidades, um processo de confrontação com práticas e valores menos positivos das nossas tradições, que não boas pelo simples facto de serem populares, africanas e nossas, enfim, que encarava a Luta de Libertação como um processo de auto-crítica e de mudança cultural. A luta de libertação, se pensada deste modo, prolonga-se para lá dos actos de proclamação da independência. Além de 1975, ano do nosso contentamento, mesmo quando as dores de parto foram quase mortais. Há um pós-colonialismo que é uma espécie de encontro de águas oceânicas.

Nesta esteira, é para mim, como sociólogo, amante do fenómeno urbano, simplesmente sublime o livro “O Cão e os Caluandas”; pela sua escrita episódica, caleidoscópica, jornalística, analisando, escalpelizando a Cidade em carne viva. O livro constitui, sem dúvida, um momento alto da sua imensa obra. Permitam-me também salientar aquilo que Gabriel Garcia Marques chamaria de carpintaria. A obra possui uma carpintaria engenhosa, por isso, genialmente simples. De ossatura à mostra, pois, a narrativa é construída de modo aberto, lembrando Orson Wells em Cidadão Kane. O cão e o jornalista no seu encalço devassam a Cidade em tramas e dramas. Mas devo realçar o supremo humor que perpassa o livro. Aliás, o humor é uma das armas deste escritor.

Num dos seus últimos livros, melhor dito, num dos seus mais recentes livros, O Planalto e a Estepe, o autor celebra afinal de contas o mais universal e perene dos valores: o amor. O amor unindo culturas, resistente ao tempo e à idade, esquivando ideologias, o amor como busca persistente, como sentido da vida.

Senhor Magnífico Reitor e caro amigo, creio que a nossa língua comum é mais rica e mais feliz por ter nas suas estantes livros do Pepetela, cujos méritos justificam plenamente a atribuição de um Doutoramento Honoris Causa como este que esta Universidade Morena entendeu por bem lhe conceder, e eu aqui o solicito em nome da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.

Camarada escritor, por falar em amor, morena e culturas, gostaria em breves palavras de cumprir uma missão singela que me atribuíram. Como sabe, nós, os cabo-verdianos, somos um povo de diáspora e desenvolvemos ao longo de séculos, desde os tempos dos baleeiros americanos, uma cultura de troca de afectos à distância, enviando de um país para outro, latas de atum, grogue e milho di tera. Hoje de madrugada, ao passar pelo controlo das bagagens de mão, antes daquela cena de strip tease de tirar o cinto, os sapatos e ainda assim a máquina continuar a apitar, uma jovem polícia me aguardava com um generoso sorriso. O sorriso e os restantes predicados não deixaram mal a minha auto-estima. Ao aproximar-me, no entanto, ela pediu-me que lhe trouxesse mantenhas e um abraço crioulo. Com estas palavras, considere entregues as mantenhas. E o abraço, espero dar-lhe logo após a cerimónia!

E mais não digo.

Muito Obrigado!

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Oswaldo Osório – A Sexagésima Sétima Curvatura, por Ricardo Riso


Oswaldo Osório – A Sexagésima Sétima Curvatura
Por Ricardo Riso
resenha publicada no jornal A Nação (Cabo Verde) nº 139, de 29/04/2010 a 05/05/2010, página 16.
Agradecimento especial ao amigo Tchalê Figueira pela gentileza ao enviar-me este livro, ao Prof. Manuel Brito-Semedo pela troca de impressões, ao Giordano Custódio - filho do poeta - pelas belas palavras, e principalmente ao sr. Oswaldo Osório a quem dedico esta resenha com respeito e profunda admiração.

Entre as artes, a poesia possui o poder insuperável de criar imagens através da escrita dos poetas que desbravam os “mistérios da Palavra” (p. 71). Felicita-nos ler versos de quem é compromissado com o seu ofício e canta: “sei o limite da dor e o ilimitado poder das monstruosidades inverossímeis/ que escapam aos homens e o poeta exorcisa” (p. 71), mesmo quando em tempos sombrios recorre aos irmãos do Atlântico Manuel Bandeira e Jorge Barbosa: “é adiada a Estrela da Manhã/ e um destino mais impenetrável se perfila” (p. 73). Felicita-nos a conclusão da travessia dos poemas de “A Sexagésima Sétima Curvatura” (Dada Editora, 2007), novo livro do consagrado poeta da ilha de São Vicente, Oswaldo Osório.

Nome histórico e fundamental às letras de Cabo Verde, este mindelense estreou e foi um dos fundadores da célebre e de curtíssima duração “Seló – Página dos Novíssimos”, solidificou sua veia poética em títulos como “Caboverdeamadamente construção meu amor”, “Clar(a)idade Assombrada” e “Os loucos poemas de amor e outras estações inacabadas”.

Neste “A Sexagésima Sétima Curvatura” o poeta logo revela a origem do título: “acompanhei a Terra 67 vezes ao redor do sol/ de cada vez com a duração de um ano”(p. 15); e consciente da finitude do tempo, sereno afirma que “a morte não é um pesadelo de que não se recorda/ é parte de outra realidade que começa/ mais além da que termina”(p. 69), por isso “tudo o que faço agora/ é sem pressa e devagar”(p. 56), e conforta-se em palavras, acertando-se com Cronos: “Todavia o meu aturdimento não é o medo da morte/ vem do quanto fica por viajar e conhecer”(p. 15).

Osório destaca-se pela coerência política em prol da inquestionável defesa dos desfavorecidos e revolta perante as injustiças do absurdo colonialismo ao qual foi submetido viver e, por isso, combater: “quando eu nidificava/ e amando eu sonhava/ o que na terra eu plantava/ voo futuro se chamava”(p. 53). Daí a legitimidade de versar que “por um sonho ideal/ desafiei o medo”(p. 43) para lembrar àqueles que se apropriam dos ideais de quem os possui por essência: “nunca alcançarão o tamanho do sonho que sonhámos/ mas amam tirar proveito dos seus frutos”(p. 91). Sonho de “quem olha o nascer do mundo”(p. 20) para um “homem novo” (caboverdeano) (p. 19) no qual são “abertas as portas do amanhã conquistado”(p. 21). De quem fez da utopia o sentido da vida: “construí minha vida/ com muita alegria/ e rebeldia (...)// no transcurso/ sonhos/ porque se tudo não é sonho/ não tem sentido a vida/ com alegria ou rebeldia”(p. 54).

Emocionantes os versos com o desejo incondicional do poeta em promover a comunhão entre os homens, “homens de um só tronco e de um só mundo”(p. 26), “filhos de gea a nossa mátria”(p. 27), para que “talvez um dia desconstruindo saberemos/ como o mundo e nós se construíram/ e de frente com o espelho que nos reflectia enganos/ despedaçados às nossas mãos/ a realidade apareça inteira ao nosso espírito remoçado”(p. 65).

O livro foi dividido em 3 partes com poemas que vão desde os anos 1980 e apenas 1 dos anos 1970: O Tempo e o Modo, O Tempo que Passa e O Tempo e a Curvatura da Idade, sendo que neste há generosos espaços cedidos pelo poeta para que o leitor transcreva os seus pensamentos.

Portanto, “A Sexagésima Sétima Curvatura”, em razão da deficiência visual do poeta, contou com a preciosa colaboração da família de Osório e de Manuel Brito-Semedo que também prefaciou a obra. Este livro reafirma o lugar de Oswaldo Osório entre os principais nomes da literatura de Cabo Verde, confirma o seu humanismo: “nunca me seduziu o ter/ mas apaixonou-me o ser// nunca nada consegui ter/ mas sendo consegui vencer”(p. 29); e ratifica o desejo de quem escreve “para fugir à ditadura do tempo e tentar marcar a minha época cultural com a marca da minha diferença entre os meus iguais”(p. 82). Com a inabalável qualidade de sua poesia, Oswaldo Osório vence Cronos e aguardamos o muito que ele ainda tem a nos oferecer.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Simpósio Internacional sobre Cultura e Literatura Cabo-verdianas (livro)


Texto e imagem extraídos do blog Na esquina do tempo do intelectual cabo-verdiano Manuel Brito-Semedo.

A 25 de Novembro de 1986, apresentava eu, como estreante, na altura Bacharel em Ensino de Língua Portuguesa, uma comunicação no Simpósio Internacional Sobre Cultura e Literatura Cabo-verdianas, intitulada “A Cidade do Mindelo na Ficção de António Aurélio Gonçalves”.

Quis o destino que, quase 25 anos depois, nas vésperas dos 75 anos da revista Claridade, fosse eu o “requisitado”, em substituição do organizador destas Actas, o meu Amigo Tomé Varela, para fazer a sua apresentação pública. É caso para se dizer que “o mundo tem voltas!”

Um reconhecimento especial ao Doutor Manuel Veiga que, enquanto Ministro da Cultura, tomou como propósito e se empenhou na publicação destas Actas.

Estas Actas, enquanto repositório de reflexões e de memória cultural e um acervo literário importante para os estudiosos da realidade cabo-verdiana, estiveram quase fadadas ao esquecimento, já que só agora, 24 anos depois, são dadas a lume! Foi obra!

O Simpósio Claridade serviu para, em 1986, prestar uma homenagem justa e merecida aos fundadores da Revista, tendo estado presente dois dos prinicipais, Baltasar Lopes e Manuel Lopes. Estas Actas, ainda que com este longo atraso, representam um reconhecimento à Fundação Amílcar Cabral e à Organização do Simpósio, ao mesmo tempo que constituem uma homenagem àqueles que nele tomaram parte e hoje são já desaparecidos, nomeadamente, Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Félix Monteiro, Gabriel Mariano, Teixeira de Sousa, Agostinho Rocha, Manuel Ferreira, Mário de Andrade, Henrique Santa Rita Vieira, Terêncio Anahory, Yolanda Morazzo, Abílio Duarte (então Presidente da Fundação Amílcar Cabral), Gerald Moser, Michel Laban, Renato Cardoso e Manuel Delgado.

Poderão perguntar se faz sentido esta publicação, passado este tempo todo, agora enquadrada nas comemorações dos 35 anos da independênica de Cabo Verde. A meu ver, faz sentido, sobretudo, pela qualidade e diversidde das comunicações, com perspectivas e olhares os mais diversos sobre a realidade cultural cabo-verdiana.

Algumas dessas comunicações, em texto mimeografado e conservadas como preciosidades raras, foram ou vêm sendo utilizadas e citadas apenas por um número restrito de académicos e investigadores, pelo simples facto de terem sido participantes do Simpósio Claridade. Fica, finalmente e a partir de agora, disponibilizado para todos este manancial de informações.

Ao presidir a sessão de abertura do Simpósio Internacional, Abílio Duarte, Presidente da Fundação Amílcar Cabral, augurou que esse importante evento seria “o acontecimento mais marcante do pós-Independência” e certamente o terá sido, pelo menos da I República.

O Simpósio foi, de facto, “um momento de profunda comunhão nacional” e um reconhecimento de que “a afirmação cultural é uma trave mestra para a afirmação de qualquer independência” e que “as linhas mestras da sua [do regime] política cultural não podem ser traçadas, de forma segura e viável, sem uma participação activa dos intelectuais e artistas nacionais”.

Os discursos lúcidos dos dois fundadores da Claridade, Manuel Lopes e Baltasar Lopes, então proferidos, constituem os fundamentos basilares desse movimento literário e cultural.

As Actas seguem a estrutura do Programa do Simpósio, com três módulos: Claridade, Literatura e Cultura.

Módulo 1 – Claridade – com as comunicações de Gerald Moser (“Da Claridade a Ponto & Vírgula, ou Como se Sustenta uma Revista Cultural num Meio Pequeno”), João Rodrigues (“Breve Reflexão Sobre a Literatura Cabo-verdiana”), Pierre Rivas (“Claridade: Emergência e Diferenciação de uma Literatura Nacional”), João Lopes Filho (“Alguns Aspectos da Claridade à Luz da Etnologia”), Arnaldo França (“Jaime de Figueiredo e a Claridade”), Alberto de Carvalho (“Do Classicismo-Romantismo ao Realismo da Claridade”) e Russel Hamilton (“Claridade: Entre a Originalidade Regional e a Identidade Nacional”;

Módulo 2 – Literatura – com as comunicações de Yolanda Morazzo (“Caboverdianidade e Universalidade de um Poeta”), Manuel Brito-Semedo (“A Cidade do Mindelo na Ficção de António Aurélio Gonçalves”), Jean Michel Massa (“Unidade e Diversidade na Literatura Cabo-verdiana de Hoje”), Marie Christine Hanras (“A Literatura Cabo-verdiana Vista dos Açores [através de Manuel Lopes e Pedro da Silveira]”), Pires Laranjeira (“A Recepção da Literatura e o Caso de Pão & Fonema: Problemas e Ensaio [Tímido] de Método”), Christian Veziate (“A Chuva como Elemento do Maravilhoso”), Orlanda amarílis (“Crioulo/Português, Uma Inter-relação a Considerar”), Michel Laban (”Revolta e Resignação na Ficção de dois Escritores Claridosos: Baltasar Lopes e Manuel Lopes”), Maria Elsa Rodrigues dos Santos (“Não Ser/Ser em Jorge Barbosa”), Heitor Gomes Teixeira (“As Palavras Encarceradas”), Manuel Veiga (“Símbolos e Signos em Jorge Barbosa: Uma Tentativa de Análise Semiológica”), Manuel Ferreia (“A Propósito de Duas Obras: O Escravo e Contos Singelos, Dois Autores: José Evaristo de Almeida e Guilherme Dantas, Fundadores da Ficção Cabo-verdiana”), Gabriel Mariano (“Osvaldo Alcântara – O Caçador de Heranças”) e Mesquitela Lima (“A Poética de Sérgio Frusoni [Uma Leitura Possível]”).

Módulo 3 – Cultura – Com as comunicações de Agostinho Rocha (“Os Fenómenos da Cultura e a Aculturação na Literatura de Cabo Verde: O Movimento Claridoso como Marco Milenário Nessa Literatura”), Henrique de Santa Rita Vieira (“Nova Versão da Revolta dos Escravos em 1835”), Félix Monteiro (“A Imprensa em Cabo Verde”), Nuno de Miranda (“Emigração Cabo-verdiana em Portugal”), Eutrópio Lima da Cruz (“O Peso da Música na Cultura Cabo-verdiana”), Dulce Almada Duarte (“Literatura e Identidade: Uma Abordagem Sócio-Cultural”), Mário de Andrade (“Uma Leitura Africana da Claridade”), Daniel Pereira (“Alguns Usos e Costumes da Ilha de Santiago [1762-1772]”), Fernando Augusto Albuquerque Mourão (“Elementos do Processo da Identidade Cabo-verdiana”) e Alfredo Margarido (“A Claridade e o Discurso Nacionalista, com Algumas Considerações a Respeito do seu Parentesco com o Nativismo”).

Cada um destes Módulos inclui as transcrições dos respecivos debates, que levam a fazer uma reconstituição do ambiente e da dinâmica havidos durante os trabalhos.

A Declaração Final do Simpósito sobre a Cultura e a Literatura Cabo-verdianas, comemorativo do cinquentenário da fundação da revista de artes e letras Claridade, é outra peça recuperada.

Ponho em evidência duas recomendações saídas desse fórum, pela sua pertinência e actualidade, ressalvando, embora, pequenos aspectos:

“7. Que o rico acervo documental que resulta do Simpósio mereça um tratamento cuidado e a mais ampla divulgação, pois que constituirá, no futuro, material de consulta e referência obrigatória para todo aquele que, de algum modo, se debruce sobre a realidade cabo-verdiana;

8. Que a fundação Amilcar Cabral aprofunde o trabalho ora iniciado no domínio do estabelecimento da história da cultura, da literatura cabo-verdiana, em suma, da história global de Cabo Verde, promovendo ou colaborando na promoção de:

- Institutos científicos especializados para a recolha e tratamento dos materiais necessários à história, antropologia e outras disciplinas afins;

- Um museu da imprensa cabo-verdiana, com realce para a produção cultural do Movimento Claridade;

- Um arquivo histórico nacional;

- Museus que ilustrem etapas e figuras marcantes na afirmação da cultura e do nacionalismo cabo-verdianos;

- Tradução e divulgação de textos de autores cabo-verdianos;

- Uma rede internacional de investigação e recolha do material histórico referente a Cabo Verde espalhado pelo mundo;

- O aprofundamenteo do estudo da componente africana da cultura cabo-verdiana”.

Uma última referência ao livro enquanto objecto. Como se pode constactar, o livro é visualmente muito bonito, com uma concepão da capa bem conseguida.

Termino com a opinião do Ministro Manuel Veiga na sua “Nota de Abertura”: “valeu a pena o resgate dos documentos que hoje já não pertencem apenas ao Arquivo Histórico Nacional, mas podem chegar às mãos de quantos queiram conhecer um pouco mais o papel da revista Claridade na consciencialização do povo das ilhas”.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Exposição Alumbramentos: água, cor, palavra

clique na imagem para ampliá-la

fonte: e-mail gentilmente enviado pela amiga virtual Luana Antunes Costa em 27 de abril de 2010.

domingo, 25 de abril de 2010

Manecas Cândido - Coqueiral da Zambézia (poesia)

MANECAS CÂNDIDO é um dos escritores que representa a nova geração da poesia moçambicana, publicou O Sentido das Metáforas e hoje é um dos organizadores da Associação dos Escritores Moçambicanos - AEMO. Para conhecer um pouco mais a sua poesia, clique aqui. O poema a seguir foi gentilmente enviado pelo poeta para ser publicado no blog.

Ricardo Riso

Coqueiral da Zambézia

Minha terra é riqueza
de um mar de palmar
e verde chá
reverberando lindos campos.
À noite navegamos na dança do nhambaro
até ao ébrio da nossa alegria.

Ao nascer do sol o nosso suor bago do milho maduro
e o poema cultiva horizontes de mãos futuras
e em uníssono pés descalços,
calcorreamos caminhos da infinitude
que nos propomos na meta.

De a nossa terra
revigorar na certeza de muitos amanhãs!

Resistência e Anunciação: Arte e Política Preta - Curso Edições Toró e Capoeira Angola Irmãos Guerreiros

Edições Toró e Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros convidam para o curso "Resistência e Anunciação: Arte e Política Preta”
Cinco encontros aos sábados, de 08/05 a 05/06, sempre das 14 às 18hs. Na Senzalinha (Sede do Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros). Rua Arlindo Genaro de Freitas, 692 - Jd.Saporito – Taboão da Serra/SP
Inscrições até 01/05 no sítio www.edicoestoro.net. Junto ao cartaz de divulgação e com mais detalhes deste e dos outros cursos já cultivados.
As matrículas efetuadas estarão também ali, confirmadas e acessíveis no dia 05/05.
Eis os trilhos previstos para este per-curso, totalmente gratuito, com distribuição das apostilas e certificados ao final para os 32 participantes matriculados:
08/05 – “África do Oeste: Dilemas Contemporâneos no Cinema e na Dança”, com Serge Noukoue (Pesquisador em Áudio-visual, Assessor Áudio-visual do Consulado da França, Beninense) e Luciane Silva (Pesquisadora e Educadora da Casa das Áfricas, Dançarina e Professora da FACAMP)
15/05 – “Encontros na Encruzilhada: Buscas da Literatura e das Artes Plásticas no Miolo do Século XX” – com Mário Medeiros (Sociólogo e Pesquisador da Unicamp. Autor do livro ‘Os Escritores da Guerrilha Urbana’) e Marcelo D´Salete (Artista Plástico, Quadrinhista, Ilustrador e Educador do Museu AfroBrasil)
22/05 – “Quilombos: Histórias e Sentidos, Imaginário e Arqueologia”, com Patrícia Marinho (Arqueóloga, Música e Pesquisadora de Quilombos Brasileiros) e Allan da Rosa (Historiador, Estorinhador e Educador, Angoleiro do Grupo Irmãos Guerreiros)
29/05 – “Migrações e Trajetórias Femininas: Carolina de Jesus e Lélia Gonzalez”, com Flavia Rios (Professora e Estudante de Doutorado em Sociologia na Universidade de São Paulo) e Uvanderson Vítor, o Vandão (Sociólogo Negrão e Pesquisador das Desigualdades Sócio-raciais Brasileiras. Trabalha com Inserção de Jovens no Mercado de Trabalho, em Embu das Artes.)
05/06 – “Corpoesia: Orixalidade e Jazz em Performance na Literatura da Diáspora Africana", com Sílvia Lorenso (Cria do Movimento ‘Juventude Negra e Favelada’ em BH/MG; Mestre em Semiótica pela USP, Doutoranda em Literatura e Diáspora Africana na UTexas). E Avaliação Coletiva do Curso.
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"Resistência e Anunciação: Arte e Política Preta”Pra desfrutar, questionar e escambear percepções da estética e da mocambagem de matriz afro, com suas intenções e eletricidades, carinhos e contextos.
Pra compreender alguns porquês das rodas de fortaleza e beber algumas surpresas.
Pra desenvolver pedagogias com quem pesquisa, sua e pratica. Com quem vive a questão e traz fundamentos, reflexão e vontade de esparramar.
Pra, mesmo com novas dúvidas e suas coceiras, ganhar sustança. Não arriar nas humilhações e nos farelos de cada dia.
Pra não reproduzir facinho uns quebra-cabeças cheios de quebranto, tão brilhantes na vitrine, tão sorridentes no out-door e tão fuleiros na cartilha. São quebrantos perpétuos estes nas entrelinhas da educação?

Gratuito e na quebrada, sem dever pra qualidade de outros cursos nesse mesmo naipe, que cobram diamantes pra quem quiser chegar nas turmas que quando giram, geram quase sempre pelos bairros nobres (?) de São Paulo. (E pedregoso é ouvir que nós que inventamos as barreiras, quando o que queremos é esfarelá-las).
Com tanto maio no cangote, nosso maio então, 2010, seja mês de ebulição.
Pra se inscrever é só chegar até dia 01/05/2010 ali no sítio da Toró - www.edicoestoro.net - onde está o cartaz de chamamento e a ficha de inscrição. ***
CURSO: “RESISTÊNCIA E ANUNCIAÇÃO – ARTE E POLÍTICA PRETA”Articulação Pedagógica: Allan da Rosa
Concepção e Diagramação de Cartaz e Apostilas: Mateus Subverso
Realização: Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros & Edições ToróDireção Geral: Mestre Marrom
Apoio: Nós por nós
Agradecimentos: Aos educadores que vêm na graça e na luta. E à comunidade que chega ou oferece atenção.

Fonte: Email gentilmente enviado por Allan Santos Rosa em 25 de abril de 2010.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Alcir Dias - Adrinkas e Africanidades (exposição)

A Galeria do CINE SANTA TERESA

APRESENTA
“ADINKRAS E AFRICANIDADES”
Exposição de Alcir Dias

Rua Paschoal Carlos Magno,136 - Lgo. dos Guimarães/Santa Teresa - Rio de Janeiro - RJ
De 30/04 a 28/05

SÍMBOLOS ADINKRAS

Considerado como um objeto de arte, o adinkra (adeus, em twi) constitui um código do conhecimento referente às crenças e à historia deste povo. A escrita de símbolos adinkra reflete um sistema de valores humanos universais: Família, integridade, tolerância, harmonia e determinação, entre outros. Existem centenas de símbolos e a maioria deles é de origem ancestral, sendo transmitidos de geração em geração. Muitos representam virtudes, sagas populares, provérbios ou eventos históricos. Os ganeses geralmente escolhem suas roupas para usar segundo o significado das cores e dos símbolos estampados nelas. A estampa e a cor expressam sentimentos de ocasiões específicas como festas de funerais, festivais tradicionais, ritos de iniciação como o da puberdade, casamentos, durbars etc. Alegria está relacionada a cores alegres e ao branco, enquanto que para funerais e luto predominam as cores como azul e vermelho escuro, marrom ou preto. Quando as pessoas vestem vermelho escuro ou marrom, isso significa que recém perderam um parente próximo. A cor preta ou azul escuro demonstra a dor prolongada pela perda de uma pessoa amada como os pais, filhos ou companheiro.


Fonte: e-mail gentilmente enviado pelo artista plástico Alcir Dias em 20 de abril de 2010.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Valentinous Velhinho – Tenho o Infinito Trancado em Casa, por Ricardo Riso (A Nação nº 137)


Valentinous Velhinho – Tenho o Infinito Trancado em Casa*

Por Ricardo Riso
Agradecimento especial ao poeta Valentinous Velhinho pela generosa troca de e-mails.

Valentinous Velhinho, nome literário de Valdemar Valentino Velhinho Rodrigues, nasceu em 29/05/1961 na Calheta de S. Miguel, Ilha de Santiago. Participou nos anos 1980 da Sopinha de Alfabeto, colaborou em revistas como Fragmentos e Artiletra, integrou a antologia Mirabilis – de veias ao sol. Publicou, dentre outros, os livros Relâmpagos em Terra (1995) e Tenho o Infinito Trancado em Casa (Artiletra, 2008). Este, o objeto desta resenha.
O longo conjunto de poemas de Tenho o infinito... surpreende pelo tom incisivo, provocador, visceral, insólito, assim como pelas passagens que denotam um caráter mórbido, sepulcral, por vezes escatológico, a remeter ao poeta brasileiro Augusto dos Anjos: “Quantos vermes, quantos o pó anseiam sacudir-me?/ Quero-vos só para mim, ó verme – o meu chocolate sois!” (p. 86).
Trata-se de uma poesia superior explicitada pelo cunho universal, pelas questões metafísicas e existenciais, pela obsessiva temática da loucura, da morte e do suicídio, na contínua referência aos textos bíblicos e na interminável procura para decifrar o desconhecido. Tudo submetido a uma profunda deferência à língua portuguesa e ao esmero criativo nas figuras de linguagem como hipérbato, sínquese, paradoxo, hipérbole e ironia.
Entretanto, o maior mérito do livro está na exímia recriação dos haikais. Ao se afastar do cânone ocidental, o poeta encontra na concisão extraordinários e insólitos resultados. Apropriando-se da técnica nipônica consagrada por Matsuo Bashô, a escrita corrosiva e a inusitada filosofia do eu lírico inquietante se enquadram. A morte: “Vitória mais sofrida/ Do que a do suicida/ Não há.” (p. 142); crítica à religião: “É a um Deus/ Que o abandona/ Que Cristo o espírito entrega?” (p. 152); o ignoto: “Inda mais cíclico do que tudo/ É o que sem inda/ Ter vindo está por vir.” (p. 159).
E os temas caros à poesia caboverdeana? A insularidade é subjugada à condição do poeta ao recordar o local primevo: “O mar/ Abordo da casa/ Onde nasci” (p. 163). A metapoética com o claridoso Jorge Barbosa e o brasileiro Manuel Bandeira é revista em “Sangrenta a Lua”, no qual perpetua a esperança n’“A Estrela da Manhã” (p. 186). A crítica aos rumos do país encontra lírica solução na metáfora bíblica: “Deus ao homem deu/ O desobediente Éden/ E à serpente a obediente pátria” (p. 131). O drama da seca: “É fértil a seca na terra/ Onde caiu a chuva/ E nunca mais se levantou.” (p. 145).
O cariz místico e as questões acerca da existência estão em dois blocos de poemas dedicados ao místico Angelus Silesius e a Deus que iniciam e encerram o livro, aos quais se confrontam com o etéreo: “É divino tudo o que Deus dá/ E também tudo o que Ele recebe.// Porém nada do que tem ou possui Deus/ É divino a não ser o céu e a terra.” (p. 183).
Recorrente é a exaltação à loucura, não a doentia, mas sim a dos poetas, a que expande a consciência: “Como é metafisicarnal/ A glande da Loucura, (...)/ De universos sem fim que nunca mais acabam!”, venerada pelo eu lírico: “Ó sensatos, todos os versos dos loucos/ Aqui à minha sonâmbula cabeceira os quero! Aqui!/ Eis-me aqui.” (p. 94).
Os cânones da filosofia e da literatura ocidental são prestigiados em originais citações a Goethe, Niestzche, Baudelaire, Blake, Kafka, Borges, Flaubert e, com destaque, Fernando Pessoa. Haikais e máximas inspiram-se em Pessoa: “O poeta – se não finge o poeta/ Deus não lhe perdoa nunca”. (p. 14), e no excelente “Encontro a Bordo”, no qual o eu lírico afirma que viu “uma vez só” “o poeta que dobrou Camões” (p. 108).
A longa travessia de Tenho o Infinito Trancado em Casa consolida a poiesis excepcional deste dândi da literatura de Cabo Verde, que busca em seus apocalípticos poemas sanar as dúvidas entre vida e morte para valorizar o Homem, pois “a meta dos homens procuro” (p. 173).
A poesia de Valentinous Velhinho instiga, incomoda e almeja a esperança: “A alma que volte a entrar./ Já passou o vento/ E o sonâmbulo tempo.” (p. 125).
 * Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação nº 137, de 15 a 21/04/2010, p. 18.

"Lindara" de Sonia Rosa - lançamento do livro infantil (RJ)

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sábado, 10 de abril de 2010

Vagas gratuitas - Palestra Literatura Cabo Verdiana Contemporânea

(clique na imagem para ampliá-la)


Prezados,

A Revista África e Africanidades possui 12 vagas gratuitas para a Palestra Literatura Cabo-Verdiana Contemporânea, com Ricardo Riso, no dia 12 de abril de 2010 das 15:30 às 17:00, no Largo de São Francisco nº 34 - 5º andar - sala 04 - Centro - Rio de Janeiro (ao lado da papelaria Kalunga).

Serão concedidos certificados de participação.

Para obter a gratuidade o interessado deve encaminhar e-mail com nome completo e telefone para revista@africaeafricanidades.com.br até o próximo dia 11 de abril.

Para maiores informações entre em contato pelos telefones 3903-1530 / 8513-5021/ 8513-5016.

Conheça a Revista África e Africanidades em http://www.africaeafricanidades.com.br/

Att.
Nágila Oliveira dos Santos

segunda-feira, 5 de abril de 2010

I Ciclo de Encontros da Revista África e Africanidades

Curso O Negro na História e na Sociedade Brasileira 05 e 12 / 04 das 13:00 às 15:00
Ministrante: José Barbosa da Silva Filho - Mestre em Política Social (ESS-UFF); Especialista em História do Brasil (UERJ) e Raças e Etnias (PENESB-UFF); Bacharel em História (UFF); Professor da Rede Estadual do Rio de Janeiro.
Ementa: Discutir a hipótese de que as posturas preconceituosas presentes no cotidiano do brasileiro são reforçadas no processo ensino-aprendi¬zagem, através do silêncio em torno da participação e contribuição dos negros na construção da História e da Sociedade Brasileira.
1. Processo Escravocrata Brasileiro: Causas e Consequências; 2. A Teoria do Branqueamento e o Mito da Democracia Racial; 3. A Cultura Negra e a Cultura Brasileira.
Público Alvo: Professores, coordenadores, diretores de escolas e alunos de licenciaturas e público em geral.
Investimento:
R$ 35,00 (Público em Geral)
R$ 25,00 (Professores da Educação Básica)
R$ 15,00 (Alunos de Licenciatura)

2. Literatura Infantil e o Encantamento dos Personagens Negros
15:30 às 16:50
Palestrante: Sonia Rosa – Escritora e Pedagoga
Público Alvo: Professores da Educação Básica, Coordenadores e Diretores de Escolas, Bibliotecários, Escritores de Literatura Infanto-Juvenil, Estudantes de Letras, Pedagogia, Normalistas, Contadores de Histórias, Pais e Público em geral.
Investimento:
R$ 20,00 (Público em Geral)
R$ 15,00 (Professores da Educação Básica, Pedagogos e Bibliotecários)
R$ 10,00 (Alunos de Licenciatura e Curso Normal - Nível Médio)

Palestras
12 de Abril / 2010

1. Palestra Erotismo e Consciência Social na poesia e na literatura cabo-verdiana
08:30 às 10:00
Palestrantes: Lucimar Ribeiro e Giselly Pereira (Graduandas em Letras – UFRJ)
Público Alvo: Docentes da Educação Básica, Escritores, Artistas Plásticos, Estudantes de Letras, Artes e demais interessados.
Investimento:
R$ 20,00 Público em Geral
R$ 15,00 Docentes da Educação Básica
R$ 10,00 Estudantes de Licenciaturas

2. Direitos humanos e políticas públicas de enfrentamento ao racismo: algumas considerações acerca do papel do Poder Judiciário
11:00 às 12:30
Palestrante: Vanessa Santos do Canto (Advogada e Mestre em Serviço Social)
Público Alvo: Advogados, Assistentes Sociais, Gestores, Docentes, Pesquisadores, Estudantes e Público em Geral.
Investimento:
R$ 20,00 (Público em Geral)
R$ 15,00 (Professores da Educação Básica)
R$ 10,00 (Alunos de Licenciatura, Direito e Serviço Social)

3.Palestra Cotidiano e resistência na transição do trabalho escravo para o trabalho livre
11:00 às 12:30
Palestrante: Alejandra Estevez - Doutoranda em Sociologia (UFRJ), Mestre em História Social (UFRJ) e Especialista em História da África e do Negro no Brasil (UCAM)
Público Alvo: Professores da Educação Básica e Superior, Pesquisadores, Estudantes, Representantes de Sindicatos de Trabalhadores, Representantes de Movimentos Sociais e demais interessados no assunto
Investimento:
R$ 20,00 (Público em Geral)
R$ 15,00 (Professores da Educação Básica)
R$ 10,00 (Alunos de Licenciatura)

4. Literatura Cabo-Verdiana Contemporânea: de Mirabilis aos dias atuais
15:30 às 17:00
Palestrante: Ricardo Riso – Crítico Literário, Resenhista do semanário cabo-verdiano A Nação.
Público Alvo: Professores da Educação Básica e Superior, Escritores, Críticos Literários, Pesquisadores, Estudantes de Letras e outras Licenciaturas e Público em Geral.
Investimento:
R$ 20,00 (Público em Geral)
R$ 15,00 (Professores da Educação Básica
R$ 10,00 (Alunos de Licenciatura)

5. Palestra Brinquedos cantados de matriz africana: instrumentos para a educação das relações etnicorraciais e educação psicomotora
17:00 às 18:00
Palestrante: Denise Guerra - Musicoterapeuta, Professora de Educação Física, Especialista em Psicomotricidade, Especialista em Cultura africana e afro-brasileira
Público Alvo: Professores do Ensino Fundamental, Professores de Educação Física, de Música, de Artes, Psicomotricistas, Arte Terapeutas, Musicoterapeutas e demais interessados no assunto
Investimento:
R$ 20,00 (Público em Geral)
R$ 15,00 (Professores da Educação Básica)
R$ 10,00 (Alunos de Licenciatura e do Ensino Médio)

6. Palestra A cultura do Hip-Hop na formação do olhar crítico sobre o mundo
17:00 às 18:00
Palestrante: Roberto de Oliveira – Jornalista e rapper
Público Alvo: Educadores, Pesquisadores, Animadores Culturais, Artistas, Jornalistas, Escritores, Estudantes, Representantes de Movimentos Sociais, Pais e Público em geral
Investimento:
R$ 20,00 (Público em Geral)
R$ 15,00 (Professores da Educação Básica)
R$ 10,00 (Alunos de Licenciatura e do Ensino Médio

7. Palestra Griots: Ancestralidade e Memória
17:00 às 18:00
Palestrante: Antônio Krisnas - Jornalista, Músico, Artista Plástico, Educador, Desenhista e Roteirista de Quadrinhos e Pesquisador da Cultura Afro-Brasileira
Participações Especiais: Getúlio Cortes - Cantor, Compositor e Instrumentista e Zezzynho Andrady - Fotógrafo e Produtor de Eventos de Hip-hop e Basquete de Rua.
Público Alvo: Educadores, Pesquisadores, Animadores Culturais, Artistas, Jornalistas, Escritores, Poetas, Estudantes, Pais e Público em geral
Investimento:
R$ 20,00 (Público em Geral)
R$ 15,00 (Professores da Educação Básica)
R$ 10,00 (Alunos de Licenciatura e do Ensino Médio)

Local de realização de todas as atividades: Largo de São Francisco de Paula, 34 - 5º andar - Centro – RJ

Inscrições somente pelo site: www.africaeafricanidades.com.br
(Pagamento - cartões de crédito à vista ou parcelado, boletos, depósito on-line e transferência)

Observações Gerais:
- Cada inscrição só dá acesso a uma atividade do evento.
- Ao término de todas as atividades serão fornecidos certificados de participação;
- A realização de cada atividade está condicionada ao mínimo de inscrições. Caso contrário o inscrito será antecipadamente comunicado via telefone ou e-mail sobre o interesse em realizar outra atividade do mesmo valor ou receber o valor da inscrição.
- É obrigatória a apresentação de documento de identidade com foto e comprovante de estudante ou atuação profissional de acordo com inscrição promocional de cada atividade.
- Todas as atividades possuem vagas limitadas e não serão realizadas inscrições no local do evento.
- A realização das atividades está condicionada a formação de turmas. Os inscritos serão avisados via e-mail ou telefone da confirmação da realização da mesma em no mínimo 72 horas antes da data prevista para as mesmas. Caso a atividade seja cancelado o investimento será devolvido.

sábado, 3 de abril de 2010

Vasco Martins e a celebração telúrica do Monte Verde em “run shan”

Por Ricardo Riso

Agradeço a gentileza do amigo Tchalê Figueira ao me presentear com esta pequena pérola.

Exímio compositor e pianista de formação erudita, com onze álbuns gravados – o primeiro, “Vibrações”, data de 1979, enquanto o recente “Lua Água Clara” foi lançado em 2009 –, compôs nove sinfonias além de inúmeras peças que abarcam a música tradicional de Cabo Verde, e ainda assim passeia por diferentes estilos da música. Falamos de Vasco Oliveira Martins, nascido em 12/07/1956 na cidade de Queluz, Portugal.

Filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa, aos nove anos muda-se para a ilha de São Vicente, Cabo-Verde, juntando-se à família paterna, onde concluiu o Curso Geral dos Liceus, em 1974. Foi para Portugal estudar com o compositor Fernando Lopes Graça e na França com o compositor e chefe de orquestra Henri-Claude Fantapié. Retornou a Cabo Verde em 1985 e permanece até os dias atuais.

Na poesia, Vasco Martins recebeu menção honrosa nos Jogos Florais de 12 de setembro de 1976, participou da antologia “Mirabilis – de veias ao sol”, e publicou os livros “Universo da ilha” (1986), “Navegam os olhares com o voo do pássaro” (1989), “run shan” (2008). Tem ensaios e artigos publicados no “Voz di povo”, “Voz di letra”, “Fragmentos”, entre outras publicações. Na internet, encontramos as músicas de Vasco Martins em seu site e sua poesia no blog Deserto do Sul.

run shan é um pequeno, cuidadoso e delicado livro de poesia com apenas 34 páginas, formado por poemas atribuídos ao heterônimo Vasc d’Monteverde cujo leitmotiv é o Monte Verde, ponto máximo (774 m) da ilha de São Vicente. Escorando-se em sua formação universal e no profundo conhecimento das filosofias orientais, Vasc d’Monteverde recorre ao antigo poeta chinês Li Bai e aos taoístas daquele país para justificar a apropriação de suas visões de mundo e a opção em celebrar o monte sanvicentino a partir do conceito de run shan que “significa ‘penetrar a montanha’, no sentido meditativo, contemplativo: usufruir do privilégio de estar longe da polícia geral da vida” (p. 5).

Com isso, depreendemos que há uma postura do sujeito lírico em não apenas versar o Monte Verde, mas o desejo inequívoco em revelar o seu descontentamento com o mundo que o cerca. O fato de ter a montanha como local de reflexão dos males da contemporaneidade estimula-o a buscar outras paisagens, outras sensações para acalentar o espírito, alcançar a paz interior e utilizar a força da palavra poética como condutora desse caminho: “Purificado pelas brumas do Monte Verde / Alma de poeta caminhante contemplativo / Encontro paz longe longe d’azafáma do mundo” (p. 18).

Suas preocupações existenciais e metafísicas, e o predomínio de uma visão telúrica remetem-nos ao heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro. Sendo assim, justifica-se quando deparamo-nos com a exacerbada reverência ao Monte Verde realizada por um sujeito lírico praticante dos dogmas taoístas, em uma busca pelo Todo, da fusão do Uno e do Verso, valendo-se dos paradoxos caracterizadores do Tao Te King:

(Agora entre eu e o Monte Verde
Só as nuvens que passam,
Os momentos de plenitude
São quando deixamos de ser nós
Para sermos nós) (p. 7)

O telurismo exacerbado deste heterônimo faz com que sinta pesar por ser obrigado a deixar o Monte, “Hora melancólica. Mas amanhã voltarei!” (p. 9). Porém a tristeza será passageira, pois o sujeito lírico afirma o seu certo retorno para o lugar de tempos imemoriais, ancestrais, no qual até o avançar do tempo desafia Cronos:

Ilhas como dinossauros a descansar.
Choveu e os montes têm rugas vincadas.
A terra move-se trinta quilômetros por segundo
Mas tudo parece quieto (p. 14)

O telurismo constante, o apego ao chão do Monte faz com que o sujeito lírico preste diversas homenagens à fauna – como os fililis e a águia-do-mar – e à flora – Aeonium gorgoneium – locais em diversos poemas, como neste, em que utiliza ora o nome vulgar, ora o nome científico das aves e das plantas:

Macela
Sementes de erva doce
Falco alexandrii
Sementes de endro
Aeonium gorgoneium
Coroa-de-rei
Passar iagoensis
Gestiba
Pandion halieatus
Pandion halieatus (p. 28)

Elementos da natureza como o ar e a aspiração por liberdade aparecem em vários momentos nos poemas, em líricas e tenras imagens de uma poesia comprometida com o etéreo: “Se observas os pardais do campo / É porque o teu coração anseia / Pela candura e liberdade” (p. 16). As metáforas do voo surgem, desprender-se do terreno através de uma profunda interiorização do ser a transcender em forma de poesia:

Deste único arvoredo vejo uma
Ilha suspensa: vou com ela
Pelo universo adentro talvez
Nalgum porto o meu espírito há-de acostar (p. 15)

Outro elemento da natureza é invocado, a água, para criticar a desordem da vida contemporânea e renovar os corações e as mentes dos homens, preparando-os para uma nova Era de harmonia entre os seres:

De uma secreta fonte há-de brotar
Límpida água
Fluindo depois como uma ribeira
Purificando o coração dos homens
Pacificando o coração dos homens
Restabelecendo a Era da ternura e compaixão (p. 25)

A crença inabalável nos homens faz com que recorra ao seu conhecimento universal e assim capturar o alento proposto nas composições do músico erudito finlandês Jean Sibelius e ao Buda Çâkyamuni. Tenta, com isso, recompor a sensibilidade dispersa por tanto desprezo ao próximo, dominante na ordem competitiva dos dias atuais. Almeja a mudança da mentalidade destrutiva que se apodera da Humanidade e encerra o poema com a sapiência do paradoxo:

Quando me dizem que o mundo vai mal
Já não acreditam na humanidade
E tudo caminha para um colapso
Argumento:
Ouçam a sétima sinfonia de Sibelius
Ela é a prova da magnitude espiritual
Do ser humano
Afirma a generosidade que temos em nós
Tal como Çâkyamuni anunciou.

É uma luz-farol para as boas navegações
Temperada por ela empreendemos a vida
Com alento e esperança.

Não se pode percorrer o caminho
Sem sermos o próprio caminho (p. 27)

Ao incorporar a filosofia oriental, o sujeito lírico usa expressões em sânscrito, língua dos textos sagrados indianos, para demonstrar a vontade incontestável de mudança e clama por uma visão de vida, de relação com o sagrado, com o cosmo: “Por alguns instantes somos a luz que brilha / Ávida por outra luz. // Sarvasattvapriyadarçana!* // (...) Que essa luz nos ilumine! / Que essa luz nos ilumine! / Que essa luz nos ilumine!” (p. 19)

O poema Mañjushaka, palavra em sânscrito, que significa uma flor branca que cresce no paraíso e que tem poder de afastar maus espíritos, propõe a evasão para tentar compreender a inconsequência do mundo. Lirismo ao encontro do universo, aspira a comunhão com o Todo:

Durante horas vagueio
Solitário neste Monte
Até estar no movimento do
Universo.
Com ele no coração
A mente torna-se calma e lúcida. (p. 29)

Da profunda viagem interior, novas percepções surgem e revelam, sinestesicamente, o mistério que há na natureza: “Vem da terra o cheiro / Húmido das nuvens. / A simplicidade das ervas frescas / É o segredo.” (p. 29).

Na ininterrupta procura pela harmonia, “Visto uma camisa amarela / Para condizer com a luz do fim do dia” (p. 23), o comovente e lírico poema “Sob um pé de charuteira” mostra a gradação da meditação. Da paz e tranquilidade proporcionada pelo shanti à passagem para um novo estágio de consciência, o samsara. Sinergia em êxtasiantes versos, a confluência com o Todo, o Indivisível, o Universal: “Sinto: / A montanha parece querer entrar em mim // Agora: / Azul Abril / Asa de borboleta nocturna” (p. 21)

Ao utilizar o heterônimo Vasc d’Monteverde, o poeta e músico Vasco Martins contribuiu de forma excepcional para o lirismo e o universalismo típicos da poesia cabo-verdiana. As ressignificações propostas pela inspiração na filosofia oriental demonstram prismas diferenciados que podem nos ajudar a ver, sentir, refletir uma nova forma de vida para a histeria do mundo ocidental. O canto lírico interior emanado de Vasc d’Monteverde mergulhado no cosmo da natureza, faz com que sua poesia voe livre, liberta das amarras terrenas, sendo conduzida apenas pela ilimitada imaginação criadora.

Acompanhamos os versos do poeta, “Felizes brindámos / À vida com bom vinho / Momento eterno fugaz” (p. 26), descobrimos novas sensações que fazem do Monte Verde, signo de pureza e alegria, o local onde os movimentos cósmicos se transformam para renovar o ser humano, por conseguinte, renovar o mundo que lhe coube viver. Monte Verde, local do belo, run shan, páginas de encantamento, incentivos a novas buscas existenciais, a desvendar o mistério da criação.

Monte Verde!

Já dormi em cima da tua terra limpa-macia!
Celebro-te!
Perto de ti não mais tenho dúvidas!

Que muitas gerações ainda celebrem a tua beleza.
Que te protejam dos homens e das cabras.
Continuarás então a limpar a alma
Dos que sentem o apelo das brumas e do silêncio. (p. 30)


 
* Sarvasattvapriyadarçana: do sânscrito: visão de alegria para todos os seres (Nota do escritor).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
SECCO, Carmen L. T. R. (Org.). Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Cabo Verde. Rio de Janeiro: UFRJ, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, 1999. v.2.

INTERNET
Vasco Martins. http://vascomartins.com/ Acessado em 02 de abril de 2010.
Deserto do Sul. http://desertodosul.blogspot.com/ Acessado em 02 de abril de 2010.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Artigo sobre Sangare Okapi no jornal Notícias (Moçambique)


Prezados(as),

Ontem foi publicado um artigo de minha autoria no jornal Notícias (Moçambique) a respeito do livro Mesmos Barcos ou poemas de revisitação do corpo, do poeta moçambicano Sangare Okapi, intitulado “Mesmos Barcos”: Sangare Okapi e a revisitação do corpo literário moçambicano. Para realizar a leitura do texto, clique aqui.

Agradecimento especial aos poetas Manecas Cândido e Sangare Okapi pelo apoio à publicação.

Abraços,
Ricardo Riso