Pepetela, escritor angolano, recebeu na quarta-feira - dia 28/04 - o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Algarve - Portugal.
Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos é natural de Benguela, cidade do litoral sul de Angola, onde nasceu em 1941. Licenciado em Sociologia, Pepetela participou activamente do movimento de libertação de Angola, nas fileiras do MPLA.
O seu primeiro romance, Mayombe, retrata as vidas e os pensamentos de um grupo de guerrilheiros em Cabinda, durante a luta de libertação. Da sua bibliografia fazem parte títulos como Yaka, A Geração da Utopia, A Gloriosa Família, Lueji, Jaime Bunda, Predadores, O Quase Fim do Mundo e O Planalto e a Estepe.
Além de escritor, galardoado com diversos prémios internacionais, entre eles o Prémio Camões, Pepetela é docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade Agostinho Neto, em Luanda.
A seguir o discurso de Homenagem a Pepetela proferido pelo Magnífico Reitor da Universidade de Cabo Verde, Antonio Correia e Silva, gentilmente enviado pelo escritor cabo-verdiano Filinto Elísio.
Ricardo Riso (os parágrafos 2o., 3o. e 4o. foram extraídos da revista África 21)
Homenagem a Pepetela realizada pelo Senhor Magnífico Reitor da Universidade de Cabo Verde,
Elogio de Pepetela na Cerimónia de Honoris Causa
Senhor Magnífico Reitor da Universidade do Algarve,
Senhor Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior,
Senhor Embaixador da República Popular de Angola,
Senhores Membros dos Órgãos de Governo da Universidade,
Senhor Homenageado, caro afilhado,
Minhas senhoras e meus senhores,
Consintam que as minhas primeiras palavras sejam para expressar, para lá do exercício de mera retórica de circunstância, o quão honrado me sinto em participar nesta cerimónia, mormente na posição de padrinho de um escritor que faz parte integrante das minhas referências literárias, políticas e até afectivas. Em gerações diferentes – e não posso dizer que a minha geração não tenha também as suas utopias e as distopias – ambos sofremos, lutámos e sonhámos com a África. Honrado também, Magnífico Reitor, caro amigo, Prof. João Guerreiro, por estar aqui, na Universidade do Algarve, que é prova provada de que a condição periférica nunca representou a impossibilidade de se construir a excelência científica e pedagógica das Academias. Assumindo eu a condição de Reitor de uma jovem universidade, de um país igualmente jovem e periférico, olho para a universidade que V. Excia preside como um caso inspirador e gerador de esperança.
Por estas razões, e por outras mais, que são de foro íntimo, peço-vos que relevem a emoção que me embarga a voz. Peço-vos, igualmente, que relevem a minha falta de erudição, ou mesmo o meu despreparo, para fazer um elogio à altura dos méritos do meu afiliado que, como sabeis, são muitos, mas mais do que isso, estão sempre a surpreender-nos, livro a livro, numa produtividade notável. Despreparo de que falo não é, como ocorre amiúde em circunstâncias semelhantes, um acto de retórica, uma humildade, digamos assim, vaidosa, própria de académicos, que visa, acima de tudo, agradar ainda mais o ouvinte. Não sendo eu um académico versado em estudos literários (afinal de contas sou um simples sociólogo apaixonado pela História), a literatura para mim tem uma taxonomia simples. Taxonomia que, desconfio, não colher uma grande aprovação dos estudiosos, pois ela divide toda a literatura mundial em apenas duas categorias: a) a que eu gosto; b) a que não gosto. Suspeito, por isso, que eu esteja um pouco desarmado perante uma obra literária complexa que fala do Negro e do Branco, da Paz e da Guerra, da Realidade e da Utopia, do Passado e do Presente, da África e da Europa, do Planalto e da Estepe. Que posso eu então dizer diante de uma literatura que se recusou a encerrar-se em si própria e tem a permanente ambição de reflectir os tempos e, (porque não?), de os reescrever? Com a vossa licença e complacência, queria tecer apenas palavras breves, quiçá, breves de mais acerca da obra do autor, que fui conhecendo sem qualquer pretensão académica ou outra, apenas pelo prazer da leitura, pelo deslumbramento da descoberta e pelo reconhecimento das afinidades existentes entre a realidade que ele narra e a minha história de africano, de ex-colonizado, de falante do português, para só falar destas afinidades. Então, sou a dizer-vos o seguinte:
A despeito de uma ideia que hoje faz escola, entendo que não há como desligar a escrita de Pepetela de um projecto político mais amplo, nascido na periferia do império colonial português – periferia onde eu também nasci, embora num colonialismo já tardio e agonizante, – um projecto político, dizia, que visou justamente transformar as periferias em centros, as subalternidades em protagonistas, os povos a civilizar e a assimilar em nações, os homens que eram então objecto de uma escrita que os deformava, porque produto de uma perspectiva exógena, por isso cultora de exotismos, em actores da História e também autores da escrita sobre si próprios. Como se quem quisesse ser actor da sua própria história tivesse, antes, que começar por ser autor. É que a ruptura, a primeira, consiste precisamente em passar do estatuto de povos sobre quais se escreve ao de povos que escrevem. Eis a subversão instaurada por homens como este que, aqui e agora, a morena Universidade do Algarve homenageia com a atribuição do título de Doutor Honoris Causa. Ele faz parte da subversão histórica que representou “coloniais” a escrever sobre a sua própria realidade e a partir de suas próprias vivências. Realço este criar de uma relação consigo próprio, este acto reflexivo, pois se situa nele o ponto de viragem. Não que antes dos anos 40, 50 e 60 do século XX, os coloniais não escreviam literatura de ficção com base em suas experiências pessoais e sensoriais. Estaria a faltar com a verdade e a induzir em erro se sustentasse tal tese. Fizeram-no, é verdade, contudo maioritariamente vendo a sua própria realidade com lunetas metropolitanas. A assunção da condição de escritor da periferia, a começar da periferia colonial, instaurou a subversão da relação sujeito/objecto da escrita, facto que traz embutido imediatamente outras subversões: de linguagem, de temáticas, de recepção e de públicos.
Como historiador e africano, reputo que não há como escapar deste marco zero, desta espécie de pecado ou virtude política original, já que a história, toda a história, tem pelo menos dois lados. Por mais que agora, e com isso não pretendo polemizar e nem contestar os advogados da autonomia do campo literário ou estético face à dinâmica política, se venha a dizer que literatura é literatura e política é política. Gostaria tão-somente de sublinhar, num esforço de entender devida e completamente a obra do homenageado, a intencionalidade política da sua escrita, a sua voluntária, consciente e desejada inscrição num movimento histórico. Sem isso, nada é compreensível. Mas ao dizer isso, devo igualmente realçar que a maneira como o autor se inscreve neste movimento, a relação entre a sua escrita e a intenção da desconstrução do colonialismo e da construção da nação nova não é mecânica, linear e panfletária, o que, a ser assim, comprometeria eventualmente a qualidade literária do seu texto.
Para mim, o grande potencial libertador, ou, antes disso, subversivo dos melhores escritores cabo-verdianos, angolanos, moçambicanos da Geração da Casa dos Estudantes do Império, e mesmo posteriores, não reside apenas e nem maioritariamente, como poderia parecer, no acto de denúncia das situações de opressão colonial e de desencontro do pós-independência. Mas no simples facto de terem resgatado e iluminado o que antes era periférico geográfica e literariamente, ou seja, a vida do musseque, do mocambo, das ilhas remotas, das cidades desordenadas, com as suas grandezas e misérias, a vida que antes ficava fora da moldura da escrita prestigiada, e era literal e literariamente obscena. É isso que marca a ruptura. A mudança da relação entre o que é incluído e o excluído, entre o que é digno da palavra literária e o que não o é.
Pepetela faz parte do grupo de escritores que trouxe a periferia para a literatura, mas também para a História. Aliás, um dos pressupostos do colonialismo, tornando-o viável enquanto Projecto Político é justamente a negação da História dos colonizados. É talvez por isso que a sua literatura é essencialmente histórica e, por consequência, anti-colonial. Isso em vários sentidos desta expressão. Como historiador, permitam que me debruce um pouco mais sobre este ponto de vista. O autor mergulha sucessivamente na História profunda de Angola, recriando-a literariamente. É o caso do seu livro A Revolta da Casa dos Ídolos, inspirado, segundo o próprio, numa referência fugaz existente eventualmente no Cavazzi, uma das grandes fontes da história de Angola. Mas talvez a ligação entre a literatura e história atinja maior complexidade num outro livro intitulado, Yaka. Este mergulho na História profunda, inclusive, de uma Angola pré-colonial reflecte eventualmente duas intencionalidades. Uma, consciente e buscada explicitamente, e outra, quiçá, menos consciente.
A primeira tem tudo a ver com a negação da ideia de que a história dos colonizados, a existir, só poderia ser das duas, uma: ou a narrativa dos colonizadores, isto é, dos governadores, dos traficantes de escravos, dos cobradores de impostos metropolitanos levada a cabo fora do seu território de origem, numa versão em que os africanos seriam cifras de escravos vendidos, almas a resgatar da barbárie pela acção missionária, pessoas refractárias à acção civilizadora, ou então o vazio, a repetição, a impossibilidade do movimento hegeliano. O autor mostra a África, neste caso, a Angola – ou o embrião histórico dela –, como portadora de uma história endógena. Própria. Anterior, por um lado, e simultânea, por outro, à aparição dos portugueses, portugueses que chegam, não para iniciar a história, mas sim, para serem mais um elemento a integrar-se nela. Uma história, de resto, marcada sempre, na visão do autor, pelo encontro, quando não mesmo pelo encontrão, das identidades. Todo o encontro não encobre desencontros? Esta dúvida corrosiva assalta-nos permanentemente quando percorremos os livros de Pepetela. Na luta de libertação, em Luanda pós-independência percorrida por um cão, na Geração Utopia a construção do amanhã está eivado de contradições, de horizontes nebulosos? Aliás, este é um dos traços sociológicos da sua literatura. Mas voltemos. A outra intencionalidade inscrita na busca da História, repito, quiçá inconsciente, é a procura do enraizamento, a tentativa de exorcizar a origem exógena dele próprio, numa Angola, apesar da existência de um projecto político postulador da aceitação pacífica da ideia de uma sociedade multi-racial, é traumaticamente dividida pelas fronteiras de cor, de região e de língua. Pior: numa Angola sob a ameaça espectral destas fronteiras, assentes que se encontram sobre falhas de profundidade quase tectónica. O património histórico é, por conseguinte, estratégico às intenções do escritor, pois ele une povos, criando uma genealogia comum para a Nação a construir.
Outra constante dos livros do escritor homenageado é a presença da infância como um tempo de harmonia, de confraternização inter-racial e inter-classista, tempo esse que embora desapareça com a idade, permanece contudo como referência subversiva e crítica da ordem social. O passado, individual ou colectivo, é sempre interpelador do presente.
Talvez na obra de Pepetela tudo seja História. Longínqua ou recente. Mesmo as estórias são história. As Aventuras de Ngunga e o Mayombe, este último sem dúvida o grande romance de referência sobre a Luta de Libertação Nacional, abordam um tema que tem produzido escassa produção literária nos países africanos de expressão portuguesa. Curioso, ou talvez não, contrariamente ao que se esperaria de um antigo guerrilheiro e um posterior ministro de uma Angola independente, Mayombe não é um romance épico, exaltador e apoteótico. O movimento de libertação é um campo de encontro de gente que aspira ao fim da opressão colonial, mas igualmente espaço de desencontros de personalidades, de identidades étnicas, de concepções políticas, por isso, um campo sempre minado de contradições. Com minas que, tais como as outras, são a seu modo profundamente amputantes. O inimigo, passe a expressão, não é apenas exterior, mas também interno à luta. E a luta é múltipla, multidireccional, muldimensional. Neste particular, lembro-me, li Mayombe nos meus 20/21anos e de quando o ter lido, ter-me lembrado das reflexões de Amilcar Cabral, que encarava a luta de libertação como acto de cultura, um processo de desconstrução de antigas divisões étnicas e regionais em favor de novas sociabilidades, um processo de confrontação com práticas e valores menos positivos das nossas tradições, que não boas pelo simples facto de serem populares, africanas e nossas, enfim, que encarava a Luta de Libertação como um processo de auto-crítica e de mudança cultural. A luta de libertação, se pensada deste modo, prolonga-se para lá dos actos de proclamação da independência. Além de 1975, ano do nosso contentamento, mesmo quando as dores de parto foram quase mortais. Há um pós-colonialismo que é uma espécie de encontro de águas oceânicas.
Nesta esteira, é para mim, como sociólogo, amante do fenómeno urbano, simplesmente sublime o livro “O Cão e os Caluandas”; pela sua escrita episódica, caleidoscópica, jornalística, analisando, escalpelizando a Cidade em carne viva. O livro constitui, sem dúvida, um momento alto da sua imensa obra. Permitam-me também salientar aquilo que Gabriel Garcia Marques chamaria de carpintaria. A obra possui uma carpintaria engenhosa, por isso, genialmente simples. De ossatura à mostra, pois, a narrativa é construída de modo aberto, lembrando Orson Wells em Cidadão Kane. O cão e o jornalista no seu encalço devassam a Cidade em tramas e dramas. Mas devo realçar o supremo humor que perpassa o livro. Aliás, o humor é uma das armas deste escritor.
Num dos seus últimos livros, melhor dito, num dos seus mais recentes livros, O Planalto e a Estepe, o autor celebra afinal de contas o mais universal e perene dos valores: o amor. O amor unindo culturas, resistente ao tempo e à idade, esquivando ideologias, o amor como busca persistente, como sentido da vida.
Senhor Magnífico Reitor e caro amigo, creio que a nossa língua comum é mais rica e mais feliz por ter nas suas estantes livros do Pepetela, cujos méritos justificam plenamente a atribuição de um Doutoramento Honoris Causa como este que esta Universidade Morena entendeu por bem lhe conceder, e eu aqui o solicito em nome da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.
Camarada escritor, por falar em amor, morena e culturas, gostaria em breves palavras de cumprir uma missão singela que me atribuíram. Como sabe, nós, os cabo-verdianos, somos um povo de diáspora e desenvolvemos ao longo de séculos, desde os tempos dos baleeiros americanos, uma cultura de troca de afectos à distância, enviando de um país para outro, latas de atum, grogue e milho di tera. Hoje de madrugada, ao passar pelo controlo das bagagens de mão, antes daquela cena de strip tease de tirar o cinto, os sapatos e ainda assim a máquina continuar a apitar, uma jovem polícia me aguardava com um generoso sorriso. O sorriso e os restantes predicados não deixaram mal a minha auto-estima. Ao aproximar-me, no entanto, ela pediu-me que lhe trouxesse mantenhas e um abraço crioulo. Com estas palavras, considere entregues as mantenhas. E o abraço, espero dar-lhe logo após a cerimónia!
E mais não digo.
Muito Obrigado!
2 comentários:
Obrigada pelo texto, por trazer a MINHA tão querida África, para tão perto, tão mais dentro de mim...
Venho sempre ler-te, olhar esse riso sonhada que tu nos proporciona...
Um braço!
Bonito o texto do Prof. Antonio, não?
Fico feliz pelo que é postado neste blog proporcionar este sentimento em ti.
Um abraço deste lado do Atlântico!
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