Como todo artista que se vale do expressionismo, o homem, com todos os seus desejos, angústias, dúvidas, perversões e anseios ocupa lugar de destaque em suas realizações plásticas, revelando um mundo de desarranjo, incerto, inquieto e devorador. É latente a presença da desilusão do homem contemporâneo, tornando sua obra atemporal e de difícil compreensão para seus pares, fato comum a artistas como Goya, Egon Schiele, Francis Bacon, Willem de Kooning, Lucien Freud, Leon Kossof, Frank Auerbach Geog Baselitz e principalmente o brasileiro Iberê Camargo. Artistas que mergulharam nas profundezas do âmago humano, desmascarando a incompreensão e a incomunicabilidade do tempo que lhes coube viver.
Esse homem em crise encontra-se em conflito no olhar do observador quando se depara com as soluções plásticas concebidas por Bonfanti. Sua gestualidade agressiva, solta, em pinceladas espaçadas e densas em total descompromisso com a forma da figuração humana e insubmissa ao contorno, exige que o espectador retire do corpo da pintura, da matéria pictórica, essa figuração e recrie-a, se necessário for, em sua mente. É nessa tensão latente, proporcionada por figuras ora fantasmagóricas, ora beiram a abstração, que a pintura de Bonfanti cresce, surpreende e se equipara aos maiores nomes da história da Arte, porque consegue extrair as sensações que desnudam as inquietações do homem, nos conduzindo à busca de nossa essência, a tentar descobrir o enigma da nossa existência.
Por isso, não há em Bonfanti preocupações com modismos, em seguir novas tendências ou experimentalismos opacos, ocos, inconsistentes, efêmeros, pois Bonfanti é fiel a si mesmo, é fiel à pintura. Sentimos verdade e entrega do artista diante de sua produção.
24.08.2005 - auto-retrato - óleo sobre tela - 40 x 35 cm*
Em um rápido resumo, vemos um Bonfanti expressando trabalhos sombrios, figuras híbridas, horríveis e surrealizantes, assustadoras como as criadas por Hieronymus Bosch ou H. R. Gigger. Retratam um período de predomínio das trevas da ditadura simbolizados plasticamente por meios em que o preto e o branco sobressaem, como o nanquim, a água-forte e a xilogravura. A cor, quando surge, revela-se como na série “Doenças Tropicais”: figuras deformadas, escatológicas, hediondas como foram aqueles anos marcados por mentes e corpos obliterados por um regime de exceção.
25.09.1979 – nanquim - 53 x 76 cm*
O início dos anos 1980 já revela uma fase de colorido intenso, exagerado, alegre, erótico e de forte figuração em diálogo com o kitsch e o fauvismo. Em alguns momentos o óleo bastante diluído lembra a aquarela, enquanto seus desenhos em pastel seco são livres e leves. Em contraste com o terror da década anterior, os anos 1980 são impregnados pela renovação dos ares trazidos pelos exilados políticos da ditadura que começam a retornar ao país em 1979, por causa da Lei da Anistia. Logo, havia uma esperança de dias melhores, uma certa euforia com o fim da ditadura, agonizante e inócua, sem razão para continuar e perpetuar seu poder opressor. O que culmina com o "retorno à pintura" e o clima festivo da mostra “Como vai você, Geração 80?” no Parque Lage e com os comícios gigantescos pelas “Diretas Já!” nas principais capitais do país, ambos em 1984.
01.10.1980 - pastel seco - 64 x 81 cm*
É no decorrer dos anos 1990 que a pintura de Bonfanti começa a adquirir linguagem própria. Sua pintura começa a ganhar em emoção e lirismo na mesma proporção em que a figura humana passa a ficar cada vez mais fragmentada, densa e tensa. Essa figuração começa a ganhar em impessoalidade devidos aos rostos despersonalizados. Com esse recurso, o artista expõe o homem coletivo, o homem comum. Há uma presença constante de um erotismo que beira a perversão, em cores escuras, em tons baixos de vermelho e azul, principalmente. Figuras próximas da abstração, brutalizadas, expressões que navegam da dor ao prazer.
Seus trabalhos recentes apresentam pinturas com pinceladas soltas, espaçadas e agressivas, que não preenchem a tela completamente, porém intensas nas áreas atingidas. Demonstram, inclusive, um paradoxo, pois se há um descompromisso com a forma, há um certo e sutil rigor em tratar a figuração humana ou o seu autorretrato. Estes são um capítulo à parte em sua obra, pois são exaustivamente trabalhados em releituras constantes, numa tensão permanente entre figura e fundo. Seus rostos diluem-se nas pinceladas, tornam-se impressões, onde ganham destaques os olhos do artista - a região de maior impacto cromático -, de massa pictórica e excessiva gestualidade.
Gianguido Bonfanti fascina por trilhar e mostrar os obscuros caminhos de nossas contradições. Viver é difícil, entretanto, percorrer a sua trajetória pictórica, sentir a entrega incansável ao seu ofício reafirma a vontade de se estar vivo, mesmo que seja apenas para acompanhar a sua luta incessante com a pintura e a vida. É a consagração de um artista que busca decifrar o enigma da existência humana.
Gianguido Bonfanti – 1969/2009
Paço Imperial. Praça Quinze, 48, Centro, 2533-4407. Terça a domingo, 12h às 18h. Grátis. Até 5 de julho.
*Todas as imagens foram retiradas do site de Bonfanti: http://www.gianguidobonfanti.com
3 comentários:
de Bonfanti- bonfanti@centroin.com.br ocultar detalhes 11:27 (4 horas atrás)
para Ricardo Riso- risoatelie@gmail.com
data 01/06/2009 11:27
assunto Re: Exposição no Paço
Caro Ricardo,
Fiquei surpreso pela qualidade do seu texto, devo dizer que mesmo entre os nomeados críticos de arte não é comumu texto pertinente à obra como o seu. E os elogios são de grande peso, o que me enche de de energia para continuar a caminhada plástica.
Fiz uma pequena correção no texto, pois o número de obras expostas ultrapassa três centenas.
Grande abraço.
Gianguido
----- Original Message -----
From: Ricardo Riso
To: Gianguido Bonfanti
Sent: Monday, June 01, 2009 10:04 AM
Subject: Exposição no Paço
Prezado Bonfanti,
visitei sua exposição no Paço Imperial ontem à tarde. Fiquei encantado com sua obra, novamente, o que motivou a escrever o texto que segue abaixo para sua apreciação e publicado no meu blog - http://ricardoriso.blogspot.com . Já o conheço do período que estudei no Parque Lage (2000/2004) e fui aluno do João Magalhães.
Assim que puder, comprarei o catálogo da mostra.
Um grande abraço,
Ricardo Riso
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Estive hoje no Paço (ainda bem, pois a exposição termina no domingo) e fiquei impactada. Confesso que não conhecia a obra deste MAGNIFICO artista - vibrante e, em alguns momentos, desconfortável (nos coloca diante de nossa obscuridade).
Adorei a fase VERMELHOS.
Vou voltar amanhã, preciso ver novamente aqueles quadros.
Marta Cardim
Prezada Marta, a obra de Bonfanti é fantástica e pouca divulgada, ainda, infelizmente. Um artista vigoroso como ele não pode ter tão pouca visibilidade.
Sábado estarei lá também e no domingo haverá um concerto de música clássica às 12h para encerramento da exposição.
Abraços,
Ricardo Riso
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