segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

José Vicente Lopes (Cabo Verde) - Morabeza

O cabo-verdiano José Vicente Lopes teve sua estreia literária na revista Ponto-e-Vírgula, nos anos 1980. Contista, possui uma verve ferina ao ilustrar o ilhéu, procurando desmistificar a passividade do homem cabo-verdiano em um mundo fragmentado e assolado pela crueldade das dificuldades impostas por um país carente em estrutura e de forte desigualdade social. Suas histórias, rudes e cruas, geralmente dialogam com o fantástico.
Ricardo Riso

Morabeza
“Um navio encalhou neste Sul”
Baltasar Lopes, Os trabalhos e os dias

Aconteceu numa noite de breu e já lá se vão muitos e muitos anos. O navio dirigia-se, decidido e imperturbável, em direção à costa e, como era de se prever, encalhou. Ficou a caminho, suspenso, entre o mar e a terra.

Quando o dia clareou, a população – como sabeis, amável, hospitaleira e generosa – deu com aquele monstro de metal à entrada da pequena baía, que os pescadores ainda hoje utilizam como abrigo. Refeita da surpresa, provocada por tão inusitado espetáculo, em pouco tempo, fez-se o que se tinha que fazer com aquele “presente de Deus”.

O navio foi inteiramente pilhado, como é habitual em situações do género, sem que os tripulantes tivessem podido impedir o assalto. Aliás, deram-se por felizes quando, três dias depois, deixaram a ilha a salvo.

Volvidos tantos anos, o navio, ou melhor, o que dele hoje resta, como que para provar que o acidente realmente aconteceu, continua no lugar em que o deixaram. Vez ou outra, vem a ilha algum turista, faz perguntas sobre como aquela embarcação foi parar ali, e acaba por tirar fotografias da imagem tão surreal, essa mesma que um fotógrafo francês, deslumbrado, haveria de eternizar anos depois num célebre postal que tem corrido o mundo.

Em noites de lua cheia há quem diga que o navio ganha vida e tenta retomar a viagem. Mas eu não acredito.

Lopes, José Vicente. Morabeza. In: A fortuna dos dias. Praia: Spleen, 2007.

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