terça-feira, 5 de maio de 2009

Retrato do Descolonizado Árabe-Muçulmano e de Alguns Outros, por Inocência Mata

Retrato do Descolonizado Árabe-Muçulmano e de Alguns Outros - Um retrato catártico, de Albert Memmi.

Um livro escrito sem complexos nem temores, quase como uma necessidade de libertação, de purificação da consciência.

Por Inocência Mata

Ao publicar, em 1957, Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador (com um prefácio de Jean-Paul Sartre que a edição em português substituiu pelo de Roland Corbisier), Albert Memmi (1920 ou 1921?) entrou para a galeria da geração de intelectuais africanos cuja obra incidia sobre relações de dominação e dependência entre os homens, tendo como paradigma a relação colonial (lembre-se de Orfeu Negro, 1948, de Jean-Paul Sartre; Discurso sobre o Colonialismo, 1950, de Aimé Césaire; Pele Negra, Máscaras Brancas, 1952, de Frantz Fanon – para apenas citar três exemplos).

Este Retrato do Descolonizado Árabe-Muçulmano e de Alguns Outros é, tal como o outro retrato, o do Colonizado, uma reflexão desapaixonada sobre a psicologia do dominado, neste caso, o descolonizado-imigrante, com base nas suas observações e vivências – ele que tem uma dupla experiência de minoritário: tunisino de origem judaica e imigrante em França desde 1943, onde leccionou na Universidade de Paris.

Partindo de uma situação particular, porventura que o autor melhor conhece – o descolonizado muçulmano – Albert Memmi fala de qualquer colonizado, analisando as diversas causas do fracasso dos países descolonizados (expressão que o autor, no contexto, prefere à de «países independentes»), vinculando-o à gestão feita pelos governantes e à psicologia do descolonizado.

Com uma crueza e uma perspicácia provocatória, e recusando retratar o descolonizado como uma simples vítima do colonialismo, do neocolonialismo e do Ocidente – a que certamente o autor não iliba –, Memmi fala das mistificações da História, tão convenientes para os governantes desses países, atolados em corrupção, álibis para a constituição de «Estados do não-direito», compondo o que o autor designa como «dolorismo» (p. 36), que propicia a inércia e desvios de espírito.

Em dezasseis segmentos que compõem a primeira parte, dedicada, ironicamente, a «O novo cidadão», Albert Memmi discorre sobre as ficções e realidade do mundo descolonizado, em que a pobreza, a corrupção e a violência geraram «a grande desilusão» do «novo cidadão». Memmi descreve e define a ausência de perspectivas do descolonizado face à tripla espera que o «novo» tempo, da independência, anunciara: a espera económica, a política e a cultural. A apresentação do cenário é implacável:

Sob a influência das religiões, favorável a uma procriação sem entraves, e de uma política irresponsável, que com frequência estimula deliberadamente a natalidade, a demografia desenfreada resultante gerou uma juventude excessivamente numerosa, turbulenta e por vezes delinquente, sobretudo devido ao subdesemprego, e que não vê nenhuma outra saída além da emigração. (p. 102)

Da letargia cultural, fortalecida pela omissão e pela catalepsia dos intelectuais, «tomados pela mesma paralisia de pensamento e ação» (p. 49), se aproveita a religião, representada pelos «homens de turbante» (p. 67-71), sendo que o limite dessa marcha um Estado teocrático que da coerção passa à violência, constituindo-se essa realidade numa das mais dramáticas decepções do descolonizado (p. 71), que se torna um «candidato à partida».

A segunda parte deste livro, com dezoito segmentos, sobre «O imigrante», abre-se com «Um exílio duplamente abençoado…», seguido de «… E o duplo fracasso» que fazem a síntese da reflexão sobre a emigração sobretudo de jovens, encorajada e até activamente facilitada pelos governantes que, assim, ganham tranquilidade pois aqueles, face à impotência dos poderes para resolver os seus problemas, são os primeiros a se sentirem tentados à revolta. Memmi denuncia a emigração como moeda de troca dos governantes africanos: face a hordas de populações desesperadas e face ao Ocidente.

Como imigrante, o descolonizado começa um novo calvário, o da «integração», que Memmi define como sendo de «dupla hesitação»: a dos imigrantes em integrarem-se e do país de acolhimento em integrá-lo (p. 190). E se dessa «dupla hesitação» que resulta Memmi conclui que «decididamente, a imigração é a punição do pecado colonial» (p. 112), o autor descreve, em «O gueto, refúgio e impasse» (p. 113-117), com amarga ironia e perspicaz observação da psicologia do imigrante, a ilusão da pátria em que vive o imigrante magrebino (qualquer imigrante nestas condições, aliás), explicando os «segredos» do fracasso da integração, celebrado convenientemente por integristas (religiosos, islâmicos, identitários, autenticistas):

Compreende-se que os integristas sejam partidários do gueto; é lá que a personalidade coletiva tem mais chances de sobreviver; é lá que eles podem alimentar uma agitação permanente, propícia aos seus desígnios. (p. 115)

É no âmbito do integrismo – «acompanhado de fanatismo» (p. 139) – que Memmi insere a discussão sobre o uso do véu, em «O véu ou a mestiçagem» – discussão tão presente em França, que o autor, angustiado, transporta para uma cena mais ampla, o mundo árabe-muçulmano: angústia não apenas porque representa um terrível retrocesso no processo de emancipação da mulher («É como se as mulheres da Idade Média reclamassem o uso do cinto de castidade», p. 118), mas porque «o véu é um gueto portátil, revelador da perturbação identitária que afeta os imigrantes muçulmanos, (…) um recurso, defensivo e ofensivo, a uma outra tradição», enfim, «máquina de sobrevivência da comunidade muçulmana, imersa em universo cristão ou, o que é pior, arreligioso» (p. 119).

Do integrismo, dentro e fora, deriva o autor para a análise do conflito israelo-palestiniano, um «conflito cómodo» porque justifica muitas autarcias. E o autor é muito corajoso na exposição de uma ideia: a sobrevalorização deste conflito (comparado aos outros, é, em termos de mortes). Porquê, então, essa sobrevalorização? (i) Porque não é apenas israelo-palestiniano: é árabe-judeu, isto é, «a quase totalidade dos países árabe-muçulmanos e a maioria dos judeus no mundo» (p. 42); (ii) a fundação do Estado de Israel, de responsabilidade europeia, não é, porém, colonial, o que dificulta as razões dos árabes.

A preocupação de Albert Memmi em estudar o homem, na sua natureza, em confronto com a diferença, tem sido uma constante deste octogenário. Porém, deste livro fica um travão amargo, uma certa desilusão em relação ao género humano:

Toda a sociedade certamente é violenta. Talvez, de maneira mais fundamental, não tenhamos sabido até aqui dominar a violência que está em nós; só soubemos opor-lhe uma outra violência, em vez de considerar todo o tipo de violência fora da lei. (p.77)
Será o peso dos anos ou apenas a consciência da necessidade de um livro que estava por fazer, como lhe disse um dia um jornalista (Posfácio. p. 187)?

Este é um livro escrito sem complexos nem temores, quase como uma necessidade de libertação, de purificação da consciência. Uma catarse. Que pelo menos intelectuais e governantes africanos deveriam ler.

Retrato do Descolonizado Árabe-Muçulmano e de Alguns Outros
Albert Memmi
Tradução de Marcelo Jacques de Moraes
Civilização Brasileira
Rio de Janeiro, 2007

* Artigo publicado na edição de Abril da revista África 21

fonte:
http://www.africa21digital.com/noticia.kmf?cod=8411112&canal=403

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