Jorge Carlos Fonseca - surreal e beat
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiana A Nação, nº 224, p. A14, 15 de dezembro de 2011.
A poesia de Jorge Carlos Fonseca, atual Presidente da República de Cabo Verde, consagrou-se pela subversiva experiência com a linguagem e a palavra lapidada por um viés surrealista, absorvendo do movimento articulado por André Breton o que há de contestação à realidade vigente, na procura de transformação do mundo em investigações no inconsciente, na proposta de revolucionar a linguagem para atingir a libertação do homem a qualquer forma de opressão.
Nesse sentido, sua poesia dos livros “Silêncio Acusado de Alta Traição e de Incitamento ao Mau Hálito Geral” (1995), “Porcos em Delírio” (1998) e em diversas antologias e revistas, assume um caráter corrosivo e único no arquipélago ao ressignificar a indignação com a sociedade, ainda que boa parte de sua lírica se afaste de temas tipicamente cabo-verdianos.
Destaca-se um poema de caráter diaspórico, “Quis-te ausente, poesia interdita, para melhor abraçar a América” (de 1978, publicado em Mirabilis – de veias ao sol, antologia organizada por José Luis Hopffer Almada), sobre as deambulações do poeta por Nova York, e propõe-se um diálogo com o beatnick Allen Ginsberg (AL) nos poemas “Uivo” (U) e “América” (A), do livro “Uivo e outros poemas” (1956). Os beatnicks fizeram uma revolução na linguagem e nos valores literários, e eram contrários ao american way of life. Resgatavam Walt Whitmann, os simbolistas franceses, dentre outros. Em textos na primeira pessoa, escancaravam experimentações de diversas ordens, desde sexuais e políticas, ao farto uso de drogas em delirantes viagens ao som do jazz. Ginsberg, Jack Kerouac e W.S. Burroughs foram os grandes nomes dessa geração.
Interessante o título de Quis-te ausente... pois ao mencionar a poesia interdita o sujeito lírico de Fonseca para melhor compreender a América aproxima-se de características marcantes da literatura beatnick sem perder a sua vertente surrealista. Percebe-se a deambulação – “seventy avenue south (...)/ broadway soho Michigan” –, em seus 46 versos as imagens são colagens inusitadas, as metáforas insólitas e a difícil busca pela liberdade – “A mulher longilínea de esporas/ segue loira atenta expedita/ os golpes ágeis doridos/ michael cavin drummer contagiado/ pela dor castanha da liberdade/ momentaneamente conseguida”, enquanto em AL a recusa à ordem estabelecida: “Eu estou cheio de suas exigências malucas (...) Sua maquinaria é demais para mim” (A). JCF expõe a decadência do país: “América/ ferida todas as noites todas as madrugadas/ (...) semanalmente prostituta e lira/ diariamente virgem violentada pintura fantástica seqüestrada”, tal como em AL: “Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus” (U). Na fusão delirante jazz/sexo bem ao gosto beat em JCF: “enquanto Walter Bishop jr. fabrica/ o frio e o quente/ ora melódicos distantes sexuados/ ora desabridos irreverentes pudicamente revoltados”, e em AL, “na roupagem fantasmagórica do jazz (...) fizeram soar o sofrimento da mente nua da América” (U). A crítica social a desmascarar o sonho americano em JCF: “na escuridão igualitária/ de lobos mendigos alcoolizados/ acompanhando ternos/ os uivos violentos/ orgasmo guilhotinado/ nesta américa elegante vagabunda pulmões vitaminados?”, como em AL: “Quando poderei entrar no supermercado e comprar o que preciso só com a minha boa aparência?” e “Nem falo das minhas prisões ou dos milhões de desprivilegiados que vivem nos meus vasos de flores à luz de quinhentos sóis” (A).
O estilo ágil de Allen Ginsberg favorece a acidez poética de Jorge Carlos Fonseca diante da crise de uma “América em lágrimas” (U). Fonseca, um sujeito deslocado de seu espaço, antropofagicamente, devora características dos beatnicks e mantém intacta a voracidade de seu surrealismo. Assim encerra o vate cabo-verdiano: “confundi teu sorriso roubado e ausente/ com teus gestos fiéis e perfurantes/ (...) américa vistosa e vermelha/ estátua da liberdade solta e de cabelos ao vento”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário