"Esta lixiviação das responsabilidades históricas serve os propósitos das elites que hoje actuam como gestores indígenas da dependência neo-colonial".
Mia Couto *
África 21 Digital - 04/11/2008 - 17:32
http://www.africa21digital.com/noticia.kmf?cod=7851026
Existem poucas coisas que podem ser tão novas e recentes quanto o passado. O tempo – ou melhor a memória que dele ficou – é uma escolha permanente retrabalhada, uma página sempre e sempre actualizada.
A produção dessa encenação que é o passado africano está ainda curiosamente nas mãos de quem sempre negou a História do continente. As referências desse edifício solene, à sombra do qual repousam o sagrado e os mortos, continuam ainda hoje sendo eminentemente europeias: o colonialismo como único divisor de águas, a visão romântica de uma África pré-colonial paradisíaca e a projecção de um amanhã sem futuro. O afropessimismo é irmão gémeo da imagem de uma África pré-colonial mistificada, onde apenas reinavam harmonias e equilíbrios.
O expediente é simples: anulam-se os conflitos internos das sociedades africanas como motor da sua própria História. Partem-se as pernas aos processos que moveram os tempos e se moveram ao longo dos séculos. Numa cadeira de rodas, se coloca um corpo inerte, deficiente e desresponsabilizado. A esse corpo se dá o nome de «África» e ora se elogia ora se acusa quem faz movimentar a cadeira de rodas. A confissão de culpa dos «excessos» do esclavagismo e da dominação colonial por parte dos europeus ajuda a reiterar esta imagem de um continente inteiro menorizado, apenas e sempre vítima.
Falei da simplificação da História porque ela sugere uma sumária infantilização dos africanos. Leiam-se os compêndios escolares e escutem-se os discursos oficiais das elites africanas e não ficarão dúvidas: tudo corria bem até ao século XVI, todos os africanos eram pessoas encantadas e encantadoras, até à chegada dos europeus.
Este maniqueísmo está presente quando se julgam os crimes da escravatura: parece que do lado de África ninguém foi nunca culpado. Esta lixiviação das responsabilidades históricas serve os propósitos das elites que hoje actuam como gestores indígenas da dependência neo-colonial. O continente africano tem vários passados e os africanos têm o direito de os inventar e colocar ao serviço de um sem número de retratos do presente.
O grave é que os africanos interiorizaram estes critérios e se avaliam a si mesmos na base destes critérios de «pureza» e «autenticidade». A anulação da diversidade e o reconhecimento que afinal há muitas e várias Áfricas não serve nesta mobilização contra o mundo e os pecadores externos.
Ditadores como Mobutu e Idi Amin (e agora Mugabe) serviram-se deste apelo unitário que, nas décadas de 50 e 60, foi intensamente mobilizador para a construção das independências. Esta operação é simples.
A «maldade» e o «ódio» nascem sempre fora. Nós, africanos, somos apenas vítimas, mesmo quando somos culpados. Nós, africanos, somos irmãos, unidos por uma condição que tem mais a ver com natureza do que com a História. Porque a História essa actuou, como já vimos, por um processo de sofrimento. E esse sofrimento foi sempre infligido pelos de «fora». É por isso que ficamos sem reacção quando quem nos faz sofrer é um «nosso».
Algumas das hesitações face a Mugabe explicam-se por esta ausência de distância. Foi fácil empreender acções contra o ditador anterior na ex-Rodésia: Ian Smith era branco, filho de colono. Era um «outro». Mobilizar a opinião africana contra Mugabe é bem mais difícil. E não se trata apenas de razões políticas. É porque temos contra nós esta visão deformada do passado e mistificadora do presente.
Várias são as vozes de África que alertam para o perigo deste reducionismo. Kofi Annan dizia a propósito de Robert Mugabe: «Os africanos devem-se guardar de uma forma auto-destrutiva e perniciosa de racismo que une e mobiliza o cidadão para lutar contra os tiranos brancos, mas que serve para criar desculpas para os tiranos que são pretos».
Samora Machel criticou duramente Marrocos pela sua postura de ocupação do Sara Ocidental. «Por que razão atacamos o colonialismo quando é praticado por europeus e não o fazemos quando é praticado por africanos?» O Nobel da Literatura, Wole Soyinka, alertou também para esta auto-complacência. «Devíamos estar preocupados com a bota que nos pisa sem querermos saber da raça de quem calça essa bota».
Os africanos estão, assim, criando focos de guerrilha contra esta visão dominante empobrecedora de si mesmos. Eles questionam os pressupostos da própria «africanidade». Querem ser contemporâneos e sair da toca identitária para onde puristas os empurraram. As identidades múltiplas dos africanos e das diferentes Áfricas estão sendo forjadas neste processo.
O passado do continente, esse passado tão plural quanto os continentes que há em África, está ainda por escrever. Vive ainda no futuro.
* Mia Couto, escritor moçambicano, assina coluna na Revista África 21, edição de Outubro
Mia Couto *
África 21 Digital - 04/11/2008 - 17:32
http://www.africa21digital.com/noticia.kmf?cod=7851026
Existem poucas coisas que podem ser tão novas e recentes quanto o passado. O tempo – ou melhor a memória que dele ficou – é uma escolha permanente retrabalhada, uma página sempre e sempre actualizada.
A produção dessa encenação que é o passado africano está ainda curiosamente nas mãos de quem sempre negou a História do continente. As referências desse edifício solene, à sombra do qual repousam o sagrado e os mortos, continuam ainda hoje sendo eminentemente europeias: o colonialismo como único divisor de águas, a visão romântica de uma África pré-colonial paradisíaca e a projecção de um amanhã sem futuro. O afropessimismo é irmão gémeo da imagem de uma África pré-colonial mistificada, onde apenas reinavam harmonias e equilíbrios.
O expediente é simples: anulam-se os conflitos internos das sociedades africanas como motor da sua própria História. Partem-se as pernas aos processos que moveram os tempos e se moveram ao longo dos séculos. Numa cadeira de rodas, se coloca um corpo inerte, deficiente e desresponsabilizado. A esse corpo se dá o nome de «África» e ora se elogia ora se acusa quem faz movimentar a cadeira de rodas. A confissão de culpa dos «excessos» do esclavagismo e da dominação colonial por parte dos europeus ajuda a reiterar esta imagem de um continente inteiro menorizado, apenas e sempre vítima.
Falei da simplificação da História porque ela sugere uma sumária infantilização dos africanos. Leiam-se os compêndios escolares e escutem-se os discursos oficiais das elites africanas e não ficarão dúvidas: tudo corria bem até ao século XVI, todos os africanos eram pessoas encantadas e encantadoras, até à chegada dos europeus.
Este maniqueísmo está presente quando se julgam os crimes da escravatura: parece que do lado de África ninguém foi nunca culpado. Esta lixiviação das responsabilidades históricas serve os propósitos das elites que hoje actuam como gestores indígenas da dependência neo-colonial. O continente africano tem vários passados e os africanos têm o direito de os inventar e colocar ao serviço de um sem número de retratos do presente.
O grave é que os africanos interiorizaram estes critérios e se avaliam a si mesmos na base destes critérios de «pureza» e «autenticidade». A anulação da diversidade e o reconhecimento que afinal há muitas e várias Áfricas não serve nesta mobilização contra o mundo e os pecadores externos.
Ditadores como Mobutu e Idi Amin (e agora Mugabe) serviram-se deste apelo unitário que, nas décadas de 50 e 60, foi intensamente mobilizador para a construção das independências. Esta operação é simples.
A «maldade» e o «ódio» nascem sempre fora. Nós, africanos, somos apenas vítimas, mesmo quando somos culpados. Nós, africanos, somos irmãos, unidos por uma condição que tem mais a ver com natureza do que com a História. Porque a História essa actuou, como já vimos, por um processo de sofrimento. E esse sofrimento foi sempre infligido pelos de «fora». É por isso que ficamos sem reacção quando quem nos faz sofrer é um «nosso».
Algumas das hesitações face a Mugabe explicam-se por esta ausência de distância. Foi fácil empreender acções contra o ditador anterior na ex-Rodésia: Ian Smith era branco, filho de colono. Era um «outro». Mobilizar a opinião africana contra Mugabe é bem mais difícil. E não se trata apenas de razões políticas. É porque temos contra nós esta visão deformada do passado e mistificadora do presente.
Várias são as vozes de África que alertam para o perigo deste reducionismo. Kofi Annan dizia a propósito de Robert Mugabe: «Os africanos devem-se guardar de uma forma auto-destrutiva e perniciosa de racismo que une e mobiliza o cidadão para lutar contra os tiranos brancos, mas que serve para criar desculpas para os tiranos que são pretos».
Samora Machel criticou duramente Marrocos pela sua postura de ocupação do Sara Ocidental. «Por que razão atacamos o colonialismo quando é praticado por europeus e não o fazemos quando é praticado por africanos?» O Nobel da Literatura, Wole Soyinka, alertou também para esta auto-complacência. «Devíamos estar preocupados com a bota que nos pisa sem querermos saber da raça de quem calça essa bota».
Os africanos estão, assim, criando focos de guerrilha contra esta visão dominante empobrecedora de si mesmos. Eles questionam os pressupostos da própria «africanidade». Querem ser contemporâneos e sair da toca identitária para onde puristas os empurraram. As identidades múltiplas dos africanos e das diferentes Áfricas estão sendo forjadas neste processo.
O passado do continente, esse passado tão plural quanto os continentes que há em África, está ainda por escrever. Vive ainda no futuro.
* Mia Couto, escritor moçambicano, assina coluna na Revista África 21, edição de Outubro
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