Alguns aspectos de uma escrita negro-brasileira de autoria feminina em “Só as mulheres sangram”, de Lia Vieira
Ricardo Riso, 18 de outubro de 2011.
RESUMO: Os contos de Só as mulheres sangram, de Lia Vieira, procuram revelar diversos aspectos do cotidiano dos negros, em especial o cotidiano das mulheres. Ambientados em diversos espaços, os contos traçam um panorama abrangente dessas experiências negras excluídas do cânone literário brasileiro, apresentando paradigmas ainda não assimilados pela crítica literária tradional. A presente análise aborda os dilemas de um cotidiano negro urbano e rural, a preservação de um passado negro a partir da oralidade e escora-se na importância de uma literatura negro-brasileira, de uma escrita feminina negra, assim como na questão da afetividade entre os negros tendo como suporte teórico ensaístas como Cuti, bell hooks, Miriam Alves, Fernanda Felisberto e Sueli Carneiro.
Lia Vieira, pseudônimo de Eliana Vieira, é uma autora com vasta publicação de contos e poemas editados em “Cadernos Negros”, entre outras antologias no Brasil e no estrangeiro, assim como textos de não-ficção. De sua autoria, os livros “Eu, mulher” – mural de poesias (1990) e “Chica da Silva – a mulher que inventou o mar” (2001) e agora este “Só as mulheres sangram”, sob a chancela da editora mineira Nandyala e com prefácio da escritora e ensaísta Miriam Alves.
Só as mulheres sangram é uma recolha de nove contos que desvelam, em sua maioria, o cotidiano das negras brasileiras, entre outras situações nas quais transparecem as vivências de boa parte de nós, negros, em especial as mulheres, na sociedade brasileira, proclamada de democracia racial pela ordem vigente. Trata-se de um livro que se enquadra na literatura negro-brasileira, assim definida pelo ensaísta e escritor Cuti:
A literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a palavra “negro” aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a englobaria como um todo a receber daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer. Por se tratar de participação na vida nacional, o realce a essa vertente literária deve estar referenciado à sua gênese social ativa. O que há de manifestações reivindicatórias apoia-se na palavra “negro”. (CUTI, 2010, p. 44)
Por isso, a pertinência da leitura dos contos reunidos para acompanharmos um eu enunciador negro revelador de espaços de convivência comuns a nós, distante das descrições estereotipadas apresentadas no cânone literário nacional, principalmente por conter um olhar sensível às experiências das mulheres negras. De acordo com a escritora e ensaísta Miriam Alves:
A produção textual das mulheres negras é relevante, pois põe a descoberto muitos aspectos de nossa vivência e condição que não estão presentes nas definições dominantes de realidade e das pesquisas históricas. Partindo de um outro olhar, debatendo-se contra as amarras ideológicas e as imposições históricas, propicia uma reflexão revelando a face de um BrasilAfro (destaque no original) feminino, diferente do que se padronizou, humanizando esta mulher negra, imprimindo um rosto, um corpo e um sentir mulher com características próprias (ALVES, 2010, p. 67).
Com isso, os espaços são o presídio, o morro, a favela, a rua, o interior etc., apresentados por um viés que procura protagonizar a mulher negra, a relação com a afetividade, seus dramas e seus anseios, a luta para manter-se em um mundo opressor, tanto na questão racial quanto na questão de gênero. Luta que vai além do feminismo tradicional (de mulheres brancas), que não considerou as especificidades vivenciadas pelas mulheres negras duplamente subordinadas na sociedade, ser mulher e ser mulher negra. A respeito da não contemplação da mulher negra no movimento feminista, Miriam Alves afirma que:
as lutas e reivindicações femininas conquistaram alguns patamares do direito de cidadania plena, mas não consideraram as questões de raça, consequentemente de preconceito e discriminações, como também das desigualdades entre classes sociais.(...)
A militância feminista negra se distinguiu das bandeiras que impulsionaram o chamado movimento feminista brasileiro, pois para ela seriam outros os obstáculos a superar, em oposição à mentalidade de muitas mulheres brancas para as quais o conceito da feminilidade estava relacionada à brancura e à pureza, as quais não contemplavam as mulheres negras que tinham (e têm) que se desvencilhar de uma variedade de estigmas que correlacionam a cor e a trajetória histórica com inferioridade (...) (pp. 60-61)
Alves complementa que uma das lutas do movimento feminista era com a ruptura da imagem da mulher dona-de-casa, frágil e dedicada ao bem-estar da família, reivindicando outros papéis na esfera pública e a participação no mercado de trabalho. Sendo assim:
Torna-se compreensível porque a questão de identidade racial não fez parte do agenciamento feminista e não abrangeu a totalidade de mulheres, justamente as que já faziam parte do mercado de trabalho, em empregos e subempregos, mal remunerados e sem garantias trabalhistas, trabalhando como empregadas domésticas ou babás. (2010, pp. 62-63)
É essa condição diferenciada das mulheres negras jamais demonstrada nos livros consagrados de nossa literatura que fazem dos textos produzidos por essas autoras negras fundamentais, pois apresentam novos paradigmas ao emergir um mundo oprimido por séculos de repressão revelados no ato da escrita, conforme afirmar Fernanda Figueiredo:
Escrever, para estas mulheres, é ‘ultrapassar’ uma percepção única da vida; é construir mundos e neles apreender, discutir, apontar, enfim, serem agentes imprescindíveis à vida. As vozes-mulheres negras, são, portanto, as vozes, agora audíveis, não somente a própria voz, as vozes ancestrais silenciadas por séculos de exclusão. (...) Elas soltam as mãos e os olhares em seus teares, formando, aos poucos, nova roupagem para a literatura brasileira: a literatura afrobrasileira de autoria feminina. O papel das escritoras é escrever e inscrever a memória do povo negro pelo olhar de dentro; um olhar que recusa as omissões que a sociedade brasileira, sob a égide do mito da democracia social e racial, impôs e ainda impõe à população afrobrasileira (FIGUEIREDO, 2009, p. 105. Apud: ALVES, p. 66).
É na reconfiguração literária do ser feminino negro que outros espaços dedicados à afetividade revelam-se. Uma experiência comum às mulheres negras é a infeliz ambientação em presídios. Ainda que em um espaço rude e marginal, a afetividade da mãe a sua filha permanece intacta como vemos na pequena narrativa de “Por que Nicinha não veio?” Em um presídio, mãe presta solidariedade à filha presa, a segurança e o apoio aos quais precisaria para cumprir a pena, e assim as duas partilham os poucos momentos de união:
Só um alívio entre tantas outras iguais a fazia sobrevivente: a visita de Nicinha, sua mãe. Nicinha jamais fizera julgamento do seu gesto, nunca censurara ou se referira ao acontecido.
Trazia sempre palavras confortadoras, revistas, novidades que ali não tinham eco...
Mas fazia bem o jeito bom de querer que a mãe lhe passava.
Única amiga, cumpriam juntas a pena. Uma dentro, outra fora das grades. Não faltava nunca. Tinha sempre uma “coisinha especial”. (VIEIRA, 2011, p. 10)
Entretanto, o sistema carcerário é cruel, insensível aos sentimentos das pessoas, ou cabe a pergunta: uma presidiária negra possui sentimentos? A frieza parece ser o desdobramento natural para a total ausência de compaixão ao acontecimento seguinte, o motivo da visita não realizada de Nicinha:
Em seu armário, um bilhete pregado:
“Nicinha não virá mais. Foi atropelada no percurso até aqui.
Mais informações na Administração.” (VIEIRA, 2011, p. 11)
O rompimento abrupto da relação afetuosa seguido da desumanidade do gesto revela a maneira como essas mulheres negras são tratadas. Cumpre-se a pena determinada pela justiça, entre outras penas, tais como a da cor da pele, a de ser mulher negra e a de ser pobre. Injustiças e crueldades que também estão na narrativa de “Foram Sete”, na qual a violência sexual à mulher negra, no caso uma menina entrando na adolescência, é demonstrada. Infelizmente, uma situação comum às mulheres negras, tratadas como objeto sexual a serviço do homem branco, ou como muito bem esclarece Sueli Carneiro: “a apropriação sexual das mulheres do grupo derrotado é uns dos momentos emblemáticos de afirmação da superioridade do vencedor” (CARNEIRO, 2003, p. 49. Apud: EVARISTO, 2007, p. 24). A narrativa revela uma cena hedionda que vem desde os tempos da escravidão, aqui representada pelo personagem Safa-Onça: “Já outro (dia) clareava, com seu Safa-Onça em minha cabeça. Branco, macho e rico, seu passatempo era descabaçar menininhas. Assim falavam todos, assim sabiam todos, assim calavam todos” (p. 55).
Para além do abominável gesto de pedofilia, contudo, desvela-se um problema de nossa sociedade: a inércia da população diante de crimes contra à criança e ao adolescente, principalmente quando negros. Justiça que precisou ser feita pela personagem Flor de Liz escorada em seu guia protetor afro-brasileiro, o Seu Sete, desferindo sete facadas no facínora. Flor de Liz é uma dessas mulheres fortes que sempre procurou se manter “limpa, linda e jovem para sobreviver na cidade grande, principalmente no morro” e de como era importante a escolha dos companheiros, nem sempre considerando o amor. Assim imaginava os maridos para suas protegidas: “de preferência PM, para cuidar de nós todas. E Aruanda seria para um enfermeiro dali, bem perto, do Souza Aguiar, que consulta era difícil e remédio nem se fala e, do jeito que havia doença neste mundo, somente uma peixadinha dessa para aliviar” (p. 54). A narradora demonstra o quanto é difícil a vida para uma casa somente de mulheres negras, pobres, e a necessidade de ter homens que as protejam e garantam acesso facilitado à saúde, pensamento prático, pois notórias são as precárias condições de nossos hospitais públicos. Nesse ponto, percebemos a urgência de uma postura que induz a mulher negra, em razão de encontrar-se nas camadas inferiores da sociedade, a optar por uma suposta estabilidade e conforto a um relacionamento calcado na afetividade. Postura que lembra o passado escravocrata dos negros na diáspora, como bem investigou a ensaísta negra Fernanda Felisberto que discorre sobre a descrença no amor entre os negros (2011, p. 113), tendo como suporte teórico a feminista negra norte-americana bell hooks:
O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar. Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, "feridos até o coração", e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor. (hooks, 2002,p.1)
Essa incapacidade de amar e o desejo sexual voltam a aparecer por um outro viés em “A paixão e o vento”, no qual um já veterano sambista sente uma irresistível atração por uma jovem passista de sua escola de samba, porém procura combater a sua libido em razão de conhecê-la desde criança e também evitar uma relação extraconjugal. Entretanto, o homem não resiste à tentação e parte para a consumação do ato:
“Sabe, num é por nada, mas achava que tu era uma criança.” Os olhos iam acompanhando-o, estreitando, enquanto Ritinha ia tirando as peças, um corpo desconhecido, embora já o tivesse visto e sentido diversas vezes, mas só que agora parecia diferente, real, tentação sedutora na brejeirice dos anos, viu-a nua, tesão, a ânsia de extravasar o gozo prometido... Bira puxou-a contra seu corpo, rolaram sobre o carpete macio, refez o quadro, a menininha tropeçando na quadra, o sorriso-criança. Ela pediu baixinho, “Faz gostoso, Bira”. A paixão dele era tão grande que, após tanto tempo, se convertera em fogo. Quis fazer... No dia em que finalmente se deram a conhecer, de suas entranhas brotou uma língua flamejante que reduziu o membro tão esperado a um montinho de cinzas.
***
Levantou-se da cama, foi à janela e, do parapeito, com carinho, começou a soprá-las ao vento... “Bira, você brochou...” Ele vestiu a roupa em silêncio, falou para o moço da portaria: “Vê lá o que a menina quer.” Subiu seu morro. No caminho, vendeu o tamborim... (VIEIRA, 2010, pp. 14-15)
Percebe-se que a narrativa subverte o imaginário a respeito das(os) negra(os) tanto na sociedade quanto (principalmente) na literatura canônica, como seres de libido incontrolável e sempre aptos para as relações sexuais. Dessa maneira, ao expor um negro que falha no momento da relação, a ponto de ao final se desfazer do objeto que os unia, e uma negra sedutora e bela que não consegue satisfazer o seu desejo, o(a) narrador(a) de Lia Vieira rompe com maestria essas personagens reais e literárias pré-determinadas, estabelecidas em nossas mentes.
Entretanto, retornaremos à questão da repressão de emoções afetivas entre negros e negras. Em sua tese de doutorado, Fernanda Felisberto, dentre outros assuntos, investiga a repressão de emoções em famílias negras em textos literários afro-estadunidenses e negro-brasileiros que remete à perpetuação desse sentimento como estratégia de sobrevivência ao sistema escravocrata. Felisberto recorre à análise de bell hooks:
A prática de se reprimir os sentimentos como estratégia de sobrevivência continuou a ser um aspecto da vida dos negros, mesmo depois da escravidão. Como o racismo e a supremacia dos brancos não foram eliminados com a abolição da escravatura, os negros tiveram que manter certas barreiras emocionais. E, de uma maneira geral, muitos negros passaram a acreditar que a capacidade de se conter emoções era uma característica positiva. No decorrer dos anos, a habilidade de esconder e mascarar os sentimentos passou a ser considerada como sinal de uma personalidade forte (...) Muitos negros têm passado essa idéia de geração a geração: se nos deixarmos levar e render pelas emoções, estaremos comprometendo nossa sobrevivência. Eles acreditam que o amor diminui nossa capacidade de desenvolver uma personalidade sólida. (hooks, 2002, p.4)
Da repressão afetiva à violência. O tema da violência contra a criança negra será aprofundado em “Operação Candelária”, conto que resgata a chacina da Candelária, ocorrida em 1993 e que deixou oito menores mortos. O conto revela a barbárie orquestrada pela alta sociedade e uma organização clandestina pronta para “mostrar de uma vez por todas que sabemos proteger nossas instituições” (VIEIRA, 2011, p. 49). Choca a incerteza da impunidade: “em breve, tudo aquilo não seria mais que notícias que logo deixariam as páginas dos jornais para se transformarem numa lembrança ou talvez numa lição, ou ainda num alerta” (p. 44). Ou ainda a tranquilidade irritante de um executor preparando-se para a ação: “Passa a mão pela face barbuda e gordurosa, vai atender ao telefone, mas o aparelho já emudeceu. Dirige-se ao banheiro e, com a indiferença de alguém que não tem nada urgente a cumprir, faz a barba” (p. 50). Essa tragédia revela a maneira como a alva elite brasileira e a polícia pensam a respeito de direitos humanos: “Agora, naquele momento, fazia-se necessária outra demonstração de força. Se, em 1988, os políticos defendiam os chamados Direitos Humanos, em 1992, a ladainha incluía algo: o Estatuto da Criança e do Adolescente” (p. 46). Inferimos que a ferocidade diante dos menores negros é um projeto elaborado com requinte, mostrando que nossas crianças negras devem ser mortas indiscriminadamente pelas forças de segurança e assim encher os negrotérios, um providencial neologismo inserido em poema de Éle Semog que aqui reproduzimos:
No meu país tão democrático,/ tão religioso e tão caridoso/ toda criança negra/ é um anjo vestido de morte./ De zero aos dezessete anos/ são precoces condenados/ para entrar no céu./ Para confirmar não precisa/ perder tempo perguntando a Deus/ é só olhar nos jornais/ ou ir ver a cor das mães/ nas portas dos negrotérios (SEMOG, 2010, p. 52)
Direito à vida, direito à terra como em “Rosa Farinha”, conto ambientado na zona rural de São Pedro d’Aldeia (RJ). A personagem-título é uma mulher-guerreira, conselheira na transmissão da sabedoria oral e líder de sua comunidade na Fazenda Campos Novos. Assim é descrita Rosa Farinha:
Temperamento marcante, vitalidade contagiante, irradiando uma convincente autoridade natural. Seus traços aristocráticos (...) refletem uma fascinante gama de sentimentos: tristeza e dor, alegria e beleza, coragem e esperança. (...)
Vinham para contar-lhe suas mágoas, pedir-lhe conselhos, ouvir-lhe os ensinamentos (...). Era muito simples o que ela ensinava. Dizia que somos maiores do que pensamos e a resistência é o caminho para romper os grilhões. Mas o que mais impressionava não era a doutrina, e sim a mulher, sua benevolência, a grandeza de alma, a determinação. (VIEIRA, 2011, p. 34-35)
Neste conto, há a preocupação na preservação da aprendizagem oral através dos provérbios que Tia Nilzimar herdou da avó – “Serviço de casa é tarefa de formiga: nunca aparece e nunca termina” (p. 36), do conhecimento das plantas medicinais, da preservação do passado escravocrata da família – “É curioso ver tia Mariazinha (assim chamamos tia Nilzimar) e vó Rosa na intimidade. Compartilham as mesmas histórias de engenho, de escravos forros, de passeios em carro de boi, de festas do estrudo, de pastorinhas” (p. 36) –, o cuidado ao resgatar a história dos nossos antepassados negros que foram deslocados para aquela região, traficados pelo porto de Búzios, e de como eram as relações sociais em um quadro marcado pela desigualdade:
Vó Rosa conta histórias ouvidas do desembarque clandestino de escravos na Enseada de Búzios. (...) Os mangues ofereciam boa lenha e os escravos aproveitavam para vendê-la a muita gente. Aceitavam alimentos e aguardentes em troca da lenha, que ia abastecer a cidade do Rio de Janeiro, cujos compradores aproveitaram este comércio por muito tempo. (p. 37)
O engessamento das classes sociais impunha um cotidiano imutável: “As tarefas ficavam estreitamente delimitadas e separadas. A discriminação racial e as distâncias sociais intransponíveis dividiam os mundos coexistentes e superpostos, a garantir a partilha desigual de direitos e deveres” (p. 38).
Contudo, o conto demonstra como a solidariedade marcou essa comunidade de negros e como as mudanças através do tempo foram alterando a rotina da região. A chegada do progresso e suas “melhorias” modificaram os meios de subsistência dessas famílias, triste e comum realidade de diversas áreas quilombolas da Região dos Lagos, espaço do conto, e conforme atestamos nessa passagem de Vó Rosa:
Tudo hoje é dividido. As únicas coisas que ainda se tem em comum são as casas da farinha e alguns poços d’água. Há cinquenta anos, a nossa fonte de alimentação era o peixe do brejo, era gambá, tatu, lagarto, que dava muito. Houve devastação e a coisa foi acabando. As coisas pioraram depois da obra de saneamento. Antes, tinha banana, laranja, quiabo, maracujá, mas o principal era a mandioca. Quando a lavoura estava ruim, a gente se refugiava na salina; quando o tempo melhorava, a gente voltava para a roça. (pp. 38-39)
Entretanto, a atuação de Vó Rosa destacava-se na defesa intransigente da sua terra. Corajosa, enfrentava milícias, tropeiros e coronéis com a ajuda de sua comunidade e escorando-se na cultura de sua gente “manifestando-se em cantos de vida e liberdade”. E assim criava a sua história pessoal, passava a vida e o seu projeto de viver inserido nessa batalha ininterrupta:
Vó Rosa tem passado a maior parte de sua vida nessa luta, tendo sido desafiada e desafiando (...) As ofertas e tentativas de intimidação não têm fim. Como se vive em permanente defensiva? O que a distingue não é apenas o seu carisma pessoal. A beleza desta velha senhora está no engajamento apaixonado e na vontade inquebrantável de uma mulher que se propôs um alvo político: o sistema comum de posse da terra, baseado na descendência dos antigos, seus usos e costumes. (p. 40)
Outra mulher de fibra é retratada no conto “Maria Déia”. Agora, no espaço urbano, no centro do Rio de Janeiro, as questões relacionadas à população negra e à terra são demonstradas pelo lado perverso das remoções de comunidades inteiras a favor do sempre discutível replanejamento urbano e quem são os favorecidos. A nós, negros, jamais. O espaço do conto é no antigo Morro do Santo Antônio, onde hoje abriga “o BNDES, o prédio da Petrobrás, a Caixa Econômica Federal e a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro”.
Tragédias urbanas que não são levadas em consideração pelo nosso cânone literário, mas que a narrativa de Lia Vieira denuncia o desprezo das autoridades em relação à comunidade que ali vivia – “Não haveria diálogo. Estava tudo decidido”. (p. 64), as promessas dos políticos para convencer a população a ir para um lugar distante e a imprensa associada ao poder político apoiando a mentira – “conseguiram fazer-nos atravessar os noventa quilômetros de estrada esburacada. (...) Chamavam-se conjuntos residenciais. Noticiário na imprensa, do grande projeto do Governador.” (p. 67) –; as condições deploráveis reveladas de imediato à comunidade – “Uma pregação ideológica do engenheiro responsável sobre o nosso lar não desfez a impressão patética; dos rostos anuviados, corriam lágrimas. Construções inacabadas, quatro ou cinco andares de tijolos, nem praça, nem capela, nem água, nem privada” (p. 67). Ou seja, nada diferente do que acontece nas metrópoles brasileiras, mas que somente uma representante da literatura negro-brasileira como Lia Vieira é capaz de expor, de tocar o dedo na ferida e jamais deixá-la cicatrizar ao mostrar a faxina étnica que sempre acompanhou os “desenvolvimentos” urbanos das nossas cidades.
Por outro lado, a narrativa demonstra o re-enquadramento da população negra no espaço urbano carioca, “que o problema apenas podia ser resolvido com a ocupação das terras de outros morros” (p. 68). As comunidades passam a organizar-se à revelia do poder público: “Muitos anos vividos num gênero de vida em comum, sem ter que prestar contas a ninguém, sem obedecer a nenhuma autoridade que não fosse do seu meio. O tempo nos ensinara” (p. 68-69). Maria Déia casa-se com o líder comunitário Greg, que com sua habilidade e percepção associa-se a lideranças religiosas, contraventores, assistentes sociais etc., passa a exercer a segurança local com mão-de-ferro e comanda o tráfico de drogas: “O homem da Fortaleza podia tudo o que desejasse. Tornou-se polêmico, revolucionário, excomungado, inimigo das autoridades, políticos... A quem subornava com grossas propinas para obter as benfeitorias para a comunidade” (p. 70). Tudo sob os olhos de Maria Déia, que, para ela, “suas obras estão acima destas pequenas nuances e eu, como parte envolvida, me abstenho de julgamento” (p. 70). Aliás, como bem assinala o conto, Maria Déia foi o nome dado por sua mãe em homenagem ao casal de cangaceiros Lampião e Maria Bonita. Lampião, um líder que em dado momento da vida tinha apoio dos poderes políticos e religiosos do Nordeste, e tão controvertido quanto Greg. E ao expor a defesa ao seu amor, Maria Déia conduz nossa reflexão do quanto é difícil julgar diante das atrocidades vivenciadas pela comunidade negra carente, abandonada pelos órgãos públicos.
Ainda no conto, chega-se ao combate ao tráfico e seu marido Greg é morto pela polícia, na confusão, com o corpo morto do marido ao seu lado, Maria Déia desnuda a hipocrisia e a invasão de privacidade da imprensa, que adora mostrar a desgraça dos pobres: “Nada de choro e baboseiras! Alteou a voz, deixando a todos atônitos. É isso o que eles querem. Beber nossas lágrimas” (p. 73). Hipocrisia que norteou o enterro de seu esposo por meio das anônimas coroas de flores:
O enterro parou a cidade. Coroas de flores foram enviadas por bicheiros, pastores, umbandistas, comerciantes, políticos, chefões de outros morros e de outros Estados: todas sem identificação. O cortejo se estendeu por quilômetros. Panos pretos nas janelas em sinal de luto. Netos, filhos, afilhados que chegavam perto de cem. Tanta gente para dar o último adeus ao benfeitor, rostos exauridos de sofrimento e admiração. O céu encoberto onde se via uma profusão de fogos de artifício. Isolaram aquela morte. Lançaram-lhe um monte de abafo. Enterro anônimo coberto por um só programa de TV (p. 73).
Assinaláveis os contos “Provas para o capitão” e “He Man”, nos quais outros aspectos que envolvem a difícil rotina dos negros são apresentados. No primeiro, tendo como recurso para desvendar a história a polifonia narrativa, um negro é acusado e condenado injustamente por um assassinato. Sua pena: a cor da pele. A narrativa deixa clara a postura da polícia durante as investigações ao lidar com os negros no diálogo entre o detetive e seu subordinado:
– E o negro?
– Já está preso. Trata-se de um pobre diabo e está muito assustado. Mostrou-se dócil. Não creio que tenha ousado...
– Jamais acredite em nada, tenente... muito menos num negro. Se ele faz cara de infeliz, chora e suplica... são sempre teatrais. Compreendeu o que eu estou dizendo?
– Sim, capitão. É isso mesmo. (76-77)
Em “He Man”, o drama passa-se na noite de Natal. Alijado do consumo exacerbado e estimulado pela intensa propaganda em todos os meios de comunicação durante esse período do ano, um jovem negro decide furtar uma casa para conseguir presentes para sua família. O rapaz frustra-se com todos os cômados da casa trancados, apesar de estar em seu interior: “As lágrimas correm, não é choro verdadeiro, é mais como se fosse um peso insuportável, uma desesperança que queima” (p.18). Na saída, avista uma espada do He Man e a leva para o pequeno da família. É a exposição da desigualdade, da vida perversa fora do consumo, do fracasso de não poder ter e da falta de oportunidades que a maioria negra se enquadra e que são os estimuladores ao crime.
E é assim, atenta aos dilemas contemporâneos submetidos aos negros, preocupada em preservar na literatura o passado dos nossos antepassados negros por meio de sua “herança-memória”, assim como buscar na árdua luta diária de mulheres a afetividade para encarar a vida e em diversas outras situações as quais somos expostos, que as narrativas de Lia Vieira comprometem-se em subverter os códigos estabelecidos em nossa sociedade, por conseguinte, em nossa literatura, deslocando e estremecendo as certezas de uma sociedade injusta, desigual e racista, e que uma autêntica representante das mulheres negras escritoras insiste em revelar. E em incomodar... Assim são os contos de “Só as mulheres sangram”.
BIBLIOGRAFIA:
ALVES, Miriam. BrasilAfro Autorrevelado – literatura brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América latina a partir de uma perspectiva de gênero. Apud: EVARISTO, Conceição. Literatura negra. Rio de Janeiro: CEAP, 2007.
CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
FELISBERTO, Fernanda. (Escre)vivências na Diáspora: escritoras negras, produção editorial e suas escolhas afetivas. Uma leitura de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Maya Angelou e Zora Neale Hurston. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Letras/Literatura Comparada, Universidade Estadual do Rio de Janeiro/Faculdade de Letras, 2011. (Tese de Doutorado)
FIGUEIREDO, Fernanda Rodrigues de. A mulher negra nos Cadernos Negros: autoria e representações. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduaçao em Letras/Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais/Faculdade de Letras, 2009. (Dissertação de Mestrado). In: ALVES, Miriam. BrasilAfro Autorrevelado – literatura brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
SEMOG, Éle. Tudo que está solto. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2010.
VIEIRA, Lia. Só as mulheres sangram. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
hooks, bell. “Vivendo de amor”. IN: WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maysa; EVELYN C. (Org.). O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas Editora / Criola, 2006. IN: FELISBERTO, Fernanda. (Escre)vivências na Diáspora: escritoras negras, produção editorial e suas escolhas afetivas. Uma leitura de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Maya Angelou e Zora Neale Hurston. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Letras/Literatura Comparada, Universidade Estadual do Rio de Janeiro/Faculdade de Letras, 2011. (Tese de Doutorado)
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