segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Antologia crítica traça a história da literatura afro-brasileira

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A literatura afro-brasileira é “um conceito em construção”, diz o professor Eduardo de Assis Duarte, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde coordena o grupo de pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira”. Contribuição significativa para o edifício deste conceito, a coleção “Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica”, organizada por ele e recém-lançada pela Editora da UFMG, reúne, em quatro volumes, uma série de ensaios e referências biográficas e bibliográficas sobre cem escritores, dos tempos coloniais até hoje. Fruto da colaboração de 61 pesquisadores de 21 universidade brasileiras e seis estrangeiras, a coletânea procura organizar a ainda dispersa reflexão acadêmica atual sobre o tema, num percurso histórico que vai de clássicos (Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Sousa) a contemporâneos (Nei Lopes, Paulo Lins, Ana Maria Gonçalves), passando por nomes importantes esquecidos (Maria Firmina dos Reis, José do Nascimento Moraes). O trabalho do projeto pode ser acompanhado no site .


Em entrevista ao GLOBO, Duarte diz que o objetivo da antologia não é estabelecer um cânone da literatura afro-brasileira, e sim compensar omissões da crítica nacional a autores negros — e à presença da questão racial na obra de escritores consagrados (tema de outro livro do pesquisador, “Machado de Assis afrodescendente”, de 2007).

— Nossa antologia não pretende instituir um cânone, mas trazer elementos para se refletir sobre as diversas facetas desta literatura e da literatura brasileira como um todo. Não se trata de evangelizar, criar novos altares (ou novas alturas), mas de fornecer elementos para uma formação mais aberta à diversidade, sobretudo para os jovens estudantes e pesquisadores de nossa literatura — afirma Duarte, por e-mail (leia a entrevista na íntegra abaixo).

Já disponível nas livrarias, a coleção será lançada oficialmente no Rio dia 28 de novembro, segunda-feira, às 18h, no Teatro Machado de Assis da Biblioteca Nacional, com a presença de 20 escritores cariocas (ou residentes no Rio) incluídos na antologia e uma homenagem a Abdias Nascimento.


Num ensaio da coleção, você propõe um conceito de “literatura afro-brasileira”. Como defini-la?

EDUARDO DE ASSIS DUARTE: Quando acrescentado ao texto do escritor negro brasileiro, o suplemento “afro” ganha densidade crítica a partir da existência de um ponto de vista específico — afroidentificado — a conduzir a abordagem do tema, seja na poesia ou na ficção. Tal perspectiva permite elaborar o tema do negro de modo distinto daquele predominante na literatura brasileira canônica. Os traços de negrícia ou negrura do texto seriam oriundos do que a escritora Conceição Evaristo chama de “escrevivência”, ou seja, a experiência como mote e motor da produção literária. Daí o projeto de trabalhar por uma linguagem que subverta imagens e sentidos cristalizados. É uma escrita que, de formas distintas, busca se dizer negra, até para afirmar o antes negado. E que, também neste aspecto, revela a utopia de formar um público leitor negro.
Na introdução à coleção, você aponta uma omissão histórica da crítica nacional quanto a autores negros, ou quanto a essa dimensão da obra de autores reconhecidos, como Machado de Assis. A que pode ser atribuída essa omissão?
O ponto de vista afroidentificado nem sempre se explicita como em muitos autores contemporâneos. E isto também tem a ver com o público leitor de outras épocas, sobretudo do século XIX e de pelo menos metade do século XX. O próprio Machado se considera um “caramujo” a dissimular sua negrícia perante o leitor branco de seu tempo. É um capoeirista da linguagem, como já afirmou Luiz Costa Lima. Por trás da aparente superficialidade de muitos de seus contos e romances, como “Helena”, está a crítica ao discurso senhorial e à branquitude que busca naturalizar esse discurso como verdadeiro. De fato, só mais recentemente tais aspectos passaram a ser enfatizados, em função do predomínio anterior de paradigmas críticos formalistas e/ou marxistas, entre outras razões. O eurocentrismo, a assunção dos valores estéticos ocidentais como norteamento crítico relegou muitos autores negros ao esquecimento. É o caso de Lino Guedes, que deixou 13 livros publicados entre os anos 1930 e 1940 e foi ignorado pela crítica modernista e pela história literária desde então. E este é apenas um exemplo. Poderia citar Solano Trindade, Nascimento Moraes, Raimundo de Souza Dantas, entre outros.
Em 2007, você publicou “Machado de Assis afrodescendente”, e agora volta a incluí-lo na antologia, no volume dedicado aos “precursores”. Como a questão racial se coloca na obra de Machado, muitas vezes tomado como avesso às questões políticas de seu tempo?
Machado é de fato um precursor, um ancestral que deixou inúmeras lições, e não apenas para os escritores negros. Tem razão Octávio Ianni quando, num texto magistral de 1988 que fizemos questão de incluir no volume 4 da antologia, aponta-o, juntamente com Cruz e Sousa e Lima Barreto, como “fundador da literatura negra” no Brasil, sendo, portanto, “clássico duas vezes”: da literatura brasileira e da literatura negra. Ousaria dizer que o considero três vezes clássico, pois o é também da literatura mundial e, neste ponto, concordo com Harold Bloom. Machado é precursor da literatura afro-brasileira por diversas razões, conforme tentei mostrar no livro de 2007. Ressalto apenas duas, a segunda decorrente da primeira: o ponto de vista afroidentificado, não-branco e não-racista, apesar de toda a discrição e compostura do “caramujo”; e o fato de matar o senhor de escravos em seus romances, criando um universo ficcional que é alegoria do fim da escravidão e da decadência da classe que dela se beneficiou ao longo de mais de 300 anos de nossa História.
Além de Machado, você cita outros autores que se viram “encurralados entre a assunção e o recalque da afrodescendência”, como Cruz e Sousa, Lima Barreto e Maria Firmina dos Reis. Quais foram as consequências dessa posição na obra e na recepção crítica desses autores?
São inúmeras e infelizmente não há espaço para detalhar todas elas. Fico contente com a menção a Maria Firmina dos Reis, autora de “Úrsula”, primeiro romance abolicionista, publicado em 1859, e, sem dúvida, texto precursor. Firmina coloca o negro como referência moral da narrativa: nela, os brancos, quando bons, assim o são porque conseguem ser tão bons quanto o jovem escravo Túlio... E este ponto de vista, absolutamente revolucionário para o Brasil de meados do século XIX, juntamente com outros méritos do romance, não foi suficiente para retirar Firmina do mesmo esquecimento que recai sobre outros autores negros. A autora chega a se desculpar no prólogo por ser mulher de pouco estudo... Já Cruz e Sousa, apesar da militância abolicionista, dos inúmeros poemas, crônicas, cartas, e do contundente testamento literário que é o “Emparedado”, continua caracterizado por muitos como “negro de alma branca”. Em geral, dele só se lêem “Missal” e “Broquéis”. Quando digo que estão encurralados, remeto à branquitude dos conceitos e valores críticos hegemônicos, detentores do poder literário capaz de elevá-los ou deixá-los no limbo, e isto ainda hoje, em pleno século XXI. Se verificarmos atentamente, é possível que o romance “Recordações do escrivão Isaías Caminha” — onde Lima Barreto desnuda o racismo que perpetua a escravidão dissimulada —, não faça parte de nenhum programa de literatura de nossos cursos de Letras. Polêmico e provocador, Lima Barreto respondia sempre que o indagavam pela identidade étnica: “negro ou mulato, como queiram”... Resultado: morreu vendo serem-lhe fechadas todas as portas da cidade letrada.
O que há de mais singular na formação e no desenvolvimento da literatura afro-brasileira, em comparação com processos similares no resto do mundo?
Esta é uma questão complexa. Talvez o fato de os autores, sobretudo de 1930 em diante, terem a todo instante de declarar a palavra “negro” como instância de afirmação de uma identidade denegada pelo imaginário social hegemônico. Isto ocorreu também nos Estados Unidos, com o “New Negro Movement” e nos países francófonos com a “Négritude”, que assumiu a palavra “negro” como enfrentamento ao sentido pejorativo nela alocado. Tal rebaixamento decorre também do estigma que, a partir do discurso bíblico, envolve o signo “negro” no Ocidente. A transformação do negro em tabu linguístico talvez seja o mais cruel legado da escravidão. No dicionário, vemos dezenas de “sinônimos atenuantes”: preto, pardo (este adotado oficialmente pelo IBGE), marrom, moreno, bombom, chocolate... Diante disso, são inúmeros os autores a destacar a assunção pelos próprios afrodescendentes do estigma que os desqualifica a partir da cor da pele. E, diferentemente dos escritos africanos de língua portuguesa, na literatura afro-brasileira é uma constante a repetição de versos como “sou negro, meus avós foram queimados pelo sol da África”, como podemos ler em Solano Trindade.
Num dos textos da coleção, você afirma que a tese da democracia racial, no Brasil, “cristaliza a pátria como instância mítica de apagamento das diferenças”. Como a literatura afro-brasileira contesta a tese da democracia racial e que interpretações da sociedade nacional oferece em contraposição a ela?
Fico apenas num exemplo: já em 1915, em pleno São Luís do Maranhão dominado pelas oligarquias herdeiras do escravismo, o escritor negro José do Nascimento Moraes publicava seu romance “Vencidos e degenerados”, também presente na antologia. O livro se inicia às 8 da manhã do dia 13 de maio de 1888, algo raro, para não dizer inédito, no romance brasileiro. Além de toda a agitação ali ocorrida, traz, quase como crônica histórica, as reações provocadas pela nova situação na subjetividade e no comportamento de antigos senhores e dos novos homens e mulheres livres. Há cenas de crueldade e violência que nada ficam a dever a narrativas como “Cidade de Deus”, de Paulo Lins ou “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves: ex-escravos que devolvem no rosto dos antigos senhores as bofetadas que sofriam diariamente; outros que apedrejam suas mansões; outros que deixam o jantar queimando no fogão... E há brancos revoltados que se articulam para dar o troco, ou que, em desespero, investem contra os próprios filhos. Nascimento Moraes traça um panorama realista do regime servil e de sua continuidade sob novas formas de exploração, respaldadas pelo racismo, tal como previsto por Machado de Assis. E, muito antes de Gilberto Freyre, desconstrói o 13 de maio como happy end apaziguador e consagrador do mito da escravidão benigna. Hoje, escritores como Oswaldo de Camargo, Cuti, Miriam Alves, Conceição Evaristo têm na denúncia do preconceito um dos pontos centrais de seu projeto literário.
Como você interpreta a situação da literatura afro-brasileira hoje? Que temas são os mais importantes e como se dá a circulação dessas obras no mercado nacional?
Costumo dizer que, no meio acadêmico, a literatura afro-brasileira é um conceito em construção, isto é, em discussão. Na prática, ou seja, verificando-se o volume de textos acumulados todo este tempo, não há como duvidar da existência desta vertente de nossas letras, ao mesmo tempo dentro e fora da literatura brasileira, como já defendia Octávio Ianni no ensaio aqui citado. É uma produção consistente, que se afirma pela diferença. Na poesia de Oswaldo de Camargo, Éle Semog, Oliveira Silveira, Cuti, Miriam Alves, Edimilson de Almeida Pereira, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Salgado Maranhão, e Cristiane Sobral, entre outros, expressa de diversas formas a positividade do ser negro, mulher ou homem; revisita a História, celebra os ancestrais e as divindades do culto afro; e denuncia, às vezes de forma explicitamente militante, a discriminação contemporânea. Mas trata também de tópicos mais universais, situando-os em nova perspectiva, o erotismo, por exemplo. Na ficção, reproduz estas linhas de força, em especial a recuperação crítica do passado, como em “Crônica de indomáveis delírios” e “Bichos da terra tão pequenos”, de Joel Rufino dos Santos; “Ponciá Vicêncio”, “Becos da memória”, e “Insubmissas lágrimas de mulheres”, de Conceição Evaristo; “Vinte contos e uns trocados”, “Mandingas da mulata velha na cidade nova” e “Oiobomé”, de Nei Lopes; além de “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves; persiste ainda uma linhagem contundente sem se descuidar da leveza vinda do humor, a exemplo de “Contos crespos”, de Cuti, ou “Mulher mat(r)iz”, de Miriam Alves ou “Só as mulheres sangram”, de Lia Vieira. São obras que circulam majoritariamente em circuitos alternativos, infelizmente. Resta torcer para que consigam atingir maior visibilidade e, quem sabe, cumprir a utopia que os move: formar um público afrodescendente que com eles se identifique.

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